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Uma Questão em Aberto

No documento A Felicidade na Ética de Kant (páginas 103-105)

O LUGAR POSITIVO DA FELICIDADE NA ÉTICA DE KANT

5. Uma Questão em Aberto

A ideia de uma esperança na participação de uma felicidade justamente merecida coloca-nos perante uma questão importante, não só porque é uma questão polémica, mas porque o facto de ser polémica não é inconsequente para o nosso objecto de estudo: onde e quando será possível participar na felicidade?

Quando se refere ao soberano bem, o autor ora diz dele que é realizável num mundo inteligível ou num mundo futuro63, ora diz que é realizável neste mundo (no

mundo natural)64. Deste modo, ao apresentar respostas completamente distintas e

incompatíveis à questão enunciada e, por conseguinte, ao impossibilitar-nos de determinar espacio-temporalmente o soberano bem, Kant só nos deixa uma alter- nativa, nomeadamente, a de decidir acerca da legitimidade das duas hipóteses colo- cadas em função da sua maior ou menor compatibilidade com o sistema filosófico que nos propõe. Esta tarefa vêmo-la feita, com rigor, por Victoria Wike no seu estudo Kant on Happiness in Ethics65.

Na opinião de Wike, existem pelo menos três razões que justificam uma preferência pela hipótese de o soberano bem se realizar num mundo futuro:

1. Em primeiro lugar, uma tal possibilidade é mais plausível para a razão teó- rica que, embora não possa objectivamente decidir se o soberano bem é ou não possível neste mundo, considera impossível conceber uma perfeita cone- xão entre moralidade e felicidade no mundo natural66;

2. Em segundo lugar, a tese mediante a qual o soberano bem se realiza fora deste mundo satisfaz um interesse da razão prática67;

62 É justamente porque vemos a religião, em Kant, como um lugar de esperança (que a moral, só por si, não é), que não podemos subscrever nesta matéria a opinião (perfilhada, por exemplo, por Cassirer [1918] 444) segundo a qual a religião se reduz à moral. Veja-se, a este propósito, Palmquist (1992) 129-148.

63 Cf., por exemplo, CRP, Ak III, 526 (A811/B839 [643]); CRPr, Ak V, 115 (134); Religião, Ak VI, 161 (163).

64 Cf., por exemplo, CRPr, Ak V, 122 (141); T&P, Ak VIII, 279 (62); Religião, Ak VI, 5 (13). 65 Cf. Wike (1994) 155-159.

66 Cf. CRPr, Ak V, 145 (164). 67 Cf. CRPr, Ak V, 145-146 (164-165).

3. Finalmente, a referida possibilidade parece ser inteiramente compatível com a identificação que Kant, por vezes, estabelece entre soberano bem e

reino de Deus68.

Efectivamente, estas razões parecem fortalecer a opção por um soberano bem que não se realiza neste mundo69. E se a estas razões acrescentarmos o signifi-

cado da antinomia da razão prática (a qual traduz precisamente as dificuldades intrínsecas à possibilidade de uma relação entre a moralidade e a felicidade neste

mundo), a nossa confiança numa tal opção aumenta inevitavelmente. Todavia – e é

por isso que dizemos ser polémica a determinação espacio-temporal do soberano bem –, a própria possibilidade de o soberano bem se realizar num mundo futuro coloca-nos perante uma questão complexa: se o soberano bem fosse realizável num mundo inteligível, como é que a felicidade (um dos elementos do soberano bem), enquanto sentimento físico, se poderia realizar num tal mundo? Fará sentido falar da ocorrência de sentimentos físicos e, por conseguinte, da presença do corpo num mundo exclusivamente inteligível?70

A resposta a esta questão, Kant não a dá explicitamente. Podemos apenas suspeitar que ela está relacionada com a distinção, feita pelo autor, entre a felicidade compreendida como sentimento físico e a “felicidade moral”. De qualquer forma, se a realização do soberano bem num mundo inteligível implicasse apenas a experiência de uma felicidade moral, então um tal conceito de soberano bem também seria com certeza diferente daquele que está em causa na antinomia da razão prática.

68 Cf. CRPr, Ak V, 127-128 (146-147). A identificação estabelecida por Kant entre o soberano bem e o reino de Deus parece suportar a tese segundo a qual o soberano bem se realiza fora deste mundo, uma vez que o próprio autor identifica também o reino de Deus com o mundo inteligível (cf. CRPr, Ak V, 137 [156]).

69 Para a discussão em torno do problema da determinação espacio-temporal do soberano bem, decidimos apresentar a posição adoptada por Victoria Wike (posição que podemos equacionar nestes termos: embora os textos kantianos nos permitam pensar, também, a possibilidade do soberano bem neste mundo, a tese da realização do soberano bem fora deste mundo é mais facilmente concebível), uma vez que ela tem a virtude de nos colocar perante dificuldades que enriquecem, particularmente, uma reflexão sobre o problema da felicidade na filosofia de Kant. De qualquer modo, não podemos deixar de sublinhar o interesse da posição defendida por Yovel (1980) sobre esta mesma matéria. Segundo este autor, se nas suas primeiras críticas, Kant tende a pensar o soberano bem como algo que apenas se realiza num mundo futuro, a partir da terceira crítica esta concepção muda – o soberano bem e o mundo actual deixam de corresponder a dois diferentes mundos, para passarem a corresponder a dois diferentes estados de um mesmo mundo, ou seja, o soberano bem torna-se num objectivo histórico: “History is the process in which the highest good should be realized, and in which the free, formative activity of practical reason remolds the given world into a new, moral world” (Yovel [1980] 31; cf. também 72). Apesar de a mudança nos textos de Kant, a que se refere Yovel, ser discutível (veja-se, por exemplo, a este propósito, Religião, Ak VI, 161 [163]), a sua leitura tem também o seu interesse, já que este estudioso, ao sublinhar a importância das relações entre os conceitos de soberano bem e de história, acaba por nos falar de um Kant mais convencido da exequibili- dade do soberano bem neste mundo.

70 Estas perguntas acabam por ser variantes de uma outra: como são compatíveis os conceitos de felici- dade e de imortalidade da alma?

CAPÍTULO 4

O SIGNIFICADO FUNDAMENTAL DO SOBERANO BEM

Dissemos já que a obra kantiana que trata o problema da possibilidade do soberano bem de um modo mais sistemático é a Crítica da Razão Prática1. Toda-

via, dissemos também que a Crítica da Faculdade de Julgar oferece um contributo importante para a compreensão do significado de um tal problema2. Embora não

existam diferenças significativas na abordagem desta temática numa e noutra obra, poderemos dizer que só na terceira crítica a pertinência de uma reflexão sobre o problema da possibilidade do soberano bem é verdadeiramente justificada. Efecti- vamente, só na Crítica da Faculdade de Julgar a necessidade de uma reflexão sobre o problema da possibilidade do soberano bem é explicitamente assumida como necessidade de dar cumprimento a um propósito de sistematicidade da filoso- fia, a qual corresponde, por sua vez, a uma exigência da subjectividade. Isto não significa que na Crítica da Razão Prática não se possam detectar alguns elementos que nos permitam adivinhar, já aí, a presença de uma preocupação de ordem siste- mática3. Todavia, só a Crítica da Faculdade de Julgar vem tornar essa preocupa-

ção mais clara e esclarecer, simultaneamente, a sua natureza.

1. A Verificação da Validade da Lei Moral e a Sua Relação com a Reflexão sobre

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