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A Verdadeira Justificação da Necessidade de uma Reflexão sobre o Problema do Soberano Bem

No documento A Felicidade na Ética de Kant (páginas 109-114)

O LUGAR POSITIVO DA FELICIDADE NA ÉTICA DE KANT

2. A Verdadeira Justificação da Necessidade de uma Reflexão sobre o Problema do Soberano Bem

É a terceira Crítica que nos permite compreender melhor quais são, de facto, as verdadeiras razões que justificam a necessidade de uma reflexão sobre o pro- blema da possibilidade do soberano bem. Se, aí, uma tal necessidade não decorre de qualquer tentativa de reforçar a legitimidade da lei moral, de onde decorre? A resposta a esta questão, a ser inteligível, não pode ser facultada de modo imediato.

Ao fazer do soberano bem o fim final da razão pura11 na sua faculdade prá-

tica e ao fazer de um tal fim a justa distribuição da felicidade dos seres racionais de acordo com o mérito moral desses mesmos seres, Kant acaba por fazer coincidir a solução do problema da possibilidade do soberano bem com a solução daquela que julgamos ser a questão fundamental da terceira crítica. Deste modo, cumpre-nos, em primeiro lugar, proceder à identificação dessa que é a questão fundamental da

Crítica da Faculdade de Julgar e, em segundo lugar, apresentar as razões pelas

quais consideramos a solução do problema da possibilidade do soberano bem como sendo, simultaneamente, a solução da questão referida.

É precisamente no segundo capítulo da introdução da terceira crítica que o autor formula, com alguma clareza, o propósito que, nessa obra, quer ver realizado:

“Ainda que na verdade subsista um abismo intransponível entre o domínio do conceito de natureza, enquanto sensível, e o do conceito de liberdade, como suprassensível, de tal modo que nenhuma passagem é possível do primeiro para o segundo (por isso mediante o uso teórico da razão), como se se tratas- sem de outros tantos mundos diferentes, em que o primeiro não pode ter qualquer influência no segundo, contudo este último deve ter uma influência sobre aquele, isto é, o conceito de liberdade deve tornar efectivo no mundo dos sentidos o fim colocado pelas suas leis e, por consequência, a natureza tem de ser pensada de tal modo que a legalidade da sua forma concorde pelo

11 Pensar o soberano bem enquanto fim final da razão pura prática significa pensar o soberano bem enquanto aquele fim que constitui simultaneamente a unificação de todos os fins da razão pura num sistema (cf. Religião, Ak VI, 5 [13]) e a condição fundamental da possibilidade desse mesmo sistema de fins (cf. CFJ, Ak V, 434 [364]).

menos com a possibilidade dos fins que nela actuam segundo as leis da liber- dade.”12

A leitura desta passagem permite-nos, por um lado, identificar como pro- blema fundamental da Crítica da Faculdade de Julgar o problema da unidade da legislação da natureza com a legislação da liberdade ou, o que vai dar no mesmo, o problema da unidade da razão teórica com a razão prática13. Mas, por outro lado,

permite-nos também compreender que qualquer tentativa que vise estabelecer uma adequação entre o domínio do conceito de natureza e o domínio do conceito de liberdade passa inevitavelmente, segundo Kant, pela necessidade de se pensar a própria natureza de um modo muito particular, mais especificamente, “de tal maneira que a legalidade da sua forma concorde pelo menos com a possibilidade de fins que nela actuam segundo as leis da liberdade”, como se a própria natureza fosse habitada por uma qualquer vontade de se ajustar aos fins colocados pelas leis da liberdade. Pensar essa vontade na natureza significa justamente pensar uma finalidade (Zweckmässigkeit) da natureza. O homem pensa uma causa inteligente do mundo que produz intencionalmente, segundo fins, os fenómenos da natureza.

Ora, qual a faculdade humana que pensa uma tal causa do mundo inteli- gente? O conceito de uma finalidade da natureza, enquanto conceito mediador entre os conceitos de natureza e de liberdade, é dado por aquela faculdade humana a que Kant chama faculdade de julgar reflexiva. Kant define a faculdade de julgar

em geral como sendo a faculdade de pensar o particular como contido no univer-

sal14. Se o universal já é dado, então a faculdade de julgar subsume o particular sob

o universal dado (pelo entendimento) e, deste modo, o particular é determinado. Trata-se da faculdade de julgar determinante, a qual se limita a subsumir o particu- lar num universal dado15. Se o universal não é dado, ou seja, se apenas for dado o

particular, então a faculdade de julgar vai ter de encontrar o universal que lhe cor-

12 CFJ, Ak V, 175-176 (57, trad. corrigida): “Ob nun zwar eine unübersehbare Kluft zwischen dem Gebiete des Naturbegriffs, als dem Sinnlichen, und dem Gebiete des Freiheitsbegriffs, als dem Übersinnlichen, befestigt ist, so dass von dem ersteren zum anderen (also vermittelst des theoretischen Gebrauchs der Vernunft) kein Übergang möglich ist, gleich als ob es so viel verschiedene Welten wären, deren erste auf die zweite keinen Einfluss haben kann: so soll doch diese auf jene einen Einfluss haben, nämlich der Freiheitsbegriff soll den durch seine Gesetze aufgegebenen Zweck in der Sinnenwelt wirklich machen; und die Natur muss folglich auch so gedacht werden können, dass die Gesetzmässigkeit ihrer Form wenigstens zur Möglichkeit der in ihr zu bewirkenden Zwecke nach Freiheitsgesetzen zusammenstimme.”

13 Com efeito, pensar a dupla possibilidade de a vontade ser exclusivamente determinada pela lei moral e de se satisfazer, por aí, plenamente com o curso da natureza, implica, na realidade, pensar a possibilidade de um acordo da razão que determina a natureza (razão teórica) com a razão que põe a lei (razão prática) (cf. Alquié [1966] 125).

14 Cf. CFJ, Ak V, 179 (60). 15 Cf. CFJ, Ak V, 179 (60).

responde. Trata-se da faculdade de julgar reflexiva, a qual subsume o particular sob um princípio que ela própria cria para si mesma16.

O princípio da finalidade da natureza contido pela faculdade de julgar refle- xiva é, deste modo, um princípio puramente subjectivo: por ele o sujeito nada acrescenta à natureza, mas apenas a si próprio, ou melhor, ao seu julgamento sobre a natureza e amplia, ainda que de um modo estritamente reflexivo, a ciência para lá dos limites impostos pela faculdade de julgar determinante17.

É enquanto pensa a natureza de um modo muito especial, ou seja, como se ela fosse dotada de uma finalidade, que Kant estrutura a sua terceira Crítica em duas grandes partes (Crítica da faculdade de julgar estética e Crítica da faculdade de julgar teleológica), as quais se ocupam, respectivamente, da demonstração de uma finalidade da natureza formal ou subjectiva e da demonstração de uma finali- dade da natureza real ou objectiva18, compreendendo esta última dois momentos, a

saber, uma teleologia física19 e uma teleologia moral20. Mostrar que existe uma

finalidade da natureza real ou objectiva significa mostrar que na natureza tudo fun-

16 Cf. CFJ, Ak V, 179 (60). Esta distinção entre as duas competências da faculdade de julgar encontra-se muito próxima da distinção proposta na CRP, Ak III, 428-429 (A646/B674-A647/B675 [535-534]) entre o uso apodíctico (constitutivo) e o uso hipotético (simplesmente regulador) da razão. Sobre o uso hipotético da razão, que é o que aqui nos interessa particularmente, diz-nos Kant o seguinte: “O uso hipotético da razão, com funda- mento em ideias admitidas como conceitos problemáticos, não é propriamente constitutivo, ou seja, não é de tal natureza que, julgando com todo o rigor, dele se deduza a verdade da regra geral tomada como hipótese […]. É pois unicamente um uso regulador da razão, isto é, serve, na medida do possível, para conferir unidade aos conhecimentos particulares e aproximar assim a regra da universalidade” (“Der hypothetische Gebrauch der Vernunft aus zum Grunde gelegten Ideen als problematischen Begriffen ist eigentlich nicht constitutiv, nämlich nicht so beschaffen, dass dadurch, wenn man nach aller Strenge urtheilen will, die Wahrheit der allgemeinen Regel, die als Hypothese angenommen worden, folge […]. Sondern er ist nur regulativ, um dadurch, so weit als es möglich ist, Einheit in die besonderen Erkenntnisse zu bringen und die Regel dadurch der Allgemeinheit zu nähern”) (CRP, Ak III, 429 [A647/B675 (536)]).

17 Cf. CFJ, Ak V, 180 e 186 (63 e 69).

18 Noções como as de finalidade da natureza objectiva e finalidade da natureza subjectiva devem ser compreendidas sempre já dentro dos limites da simples subjectividade, pois o que está em jogo desde o início da terceira crítica é uma finalidade da natureza subjectiva (quer dizer, concebida pela faculdade de julgar reflexiva) que pode, nesta sua condição, ser subjectiva, quando é julgada pelo sentimento de prazer, ou objectiva, quando é julgada pelo entendimento e pela razão (cf. CFJ, Ak V, 193 [79]).

19 A teleologia física é a tentativa, levada a efeito pela razão, de deduzir a causa suprema da natureza e as suas qualidades a partir dos fins desta última (os quais só podem ser conhecidos empiricamente). Cf. CFJ, Ak V, 436 (365-366). A teleologia física, ao considerar o par matéria não-viva versus seres vivos organizados (para cuja explicação a causalidade mecânica não parece ser suficiente), pode justificar o conceito de uma causa inteligente do mundo como um conceito subjectivo capaz de explicar a possibilidade dos fins da natureza (cf. CFJ, Ak V, 456 [388)], mas não consegue determinar este conceito, nem de um ponto de vista teórico, nem de um ponto de vista prático. De um ponto de vista prático, não consegue, justamente porque se trata de uma teleologia física, quer dizer, de uma teleologia que procede a partir da consideração dos fins da natureza. De um ponto de vista teórico, também não consegue determinar o conceito de uma causa inteligente da natureza, porque os dados em que se apoia são empíricos.

20 A teleologia moral é a tentativa, levada a efeito pela razão, de deduzir a causa suprema da natureza e as suas qualidades a partir do fim moral de seres racionais na natureza (o qual pode ser conhecido a priori). Cf. CFJ, Ak V, 436 (366).

ciona como se uma inteligência produzisse intencionalmente, segundo fins, os ele- mentos que a constituem.

Será precisamente a teleologia moral, com o conceito de soberano bem por si transportado, que facultará a prova mais segura para a demonstração de uma finali- dade real da natureza a favor da faculdade de julgar prático-reflexiva e que permi- tirá, também, determinar praticamente o conceito de uma causa inteligente do mundo (condição para a fundação de uma teologia)21.

Uma vez identificada com maior precisão a questão que preside à Crítica da

Faculdade de Julgar e apresentada nos seus aspectos principais a estrutura da obra

correlativa às exigências daquela, cabe-nos agora mostrar por que razão dizemos da solução do problema da possibilidade do soberano bem (enquanto fim final da razão pura como faculdade prática) que ela representa simultaneamente o passo a dar em direcção ao estabelecimento da unidade da dupla legislação da razão. Deve- remos, para isso, centrar a nossa atenção nos elementos constitutivos do soberano bem: a felicidade e a moralidade.

A felicidade é, de acordo com a definição proposta na Crítica da Faculdade

de Julgar, o conjunto de todos os fins possíveis para o homem mediante a natureza

exterior e interior ao homem22 ou, dito de outro modo, e numa tentativa de explici-

tar esta definição à luz de outras por nós já conhecidas, a satisfação de todos aque- les fins do homem que apenas se podem objectivar através da natureza (seja a natu- reza no homem ou fora dele). Por conseguinte, a felicidade é aquela parte constitu- tiva do soberano bem cuja possibilidade depende da natureza23, já que ela só se

realiza com base numa espécie de sentido de conveniência da natureza em relação aos fins que o homem se propõe realizar24.

Mas a felicidade não é o único elemento constitutivo do conceito de sobe- rano bem. Este representa a distribuição da felicidade dos seres racionais segundo o critério da moralidade posta em exercício por tais seres. Se a felicidade, tal como ela é compreendida pelo conceito de soberano bem, é distribuída condicionalmente, isto é, uma vez posta a moralidade, então, a possibilidade disso mesmo que o con-

21 Cf. CFJ, Ak V, 481 (415). Muito embora a teleologia moral permita uma determinação prática do conceito de uma causa inteligente do mundo (Deus) e faculte, desse modo, a condição de possibilidade de uma teologia (compreendida enquanto conhecimento de Deus e da sua existência), importa sublinhar que essa determinação é simplesmente subjectiva. Não é por acaso que, depois de proceder à demonstração da existência de Deus, Kant faz algumas observações acerca da natureza de uma demonstração. Uma demonstração destinada a convencer pode ser de duas espécies: ou é uma prova que estabelece o que o objecto é em si e, neste caso, funda-se em princípios suficientes para a faculdade de julgar determinante ou é uma prova que estabelece o que o objecto é para nós e, neste caso, funda- -se em princípios suficientes apenas para a faculdade de julgar reflexiva (cf. CFJ, Ak V, 462-463 [396]).

22 Cf. CFJ, Ak V, 431 (360).

23 Cf. T&P, Ak VIII, 283n (trad. port. in A Paz Perpétua e Outros Opúsculos, p. 67n5).

24 A este propósito convém ter presente a argumentação apresentada por Kant com vista a mostrar que esse sentido de conveniência da natureza, compreendido enquanto fomentador da felicidade humana, é completamente infundado, ou seja, convém ter presente a argumentação pela qual o autor procura mostrar que, se a natureza tem alguma finalidade em relação ao homem, essa finalidade não é primeiramente a felicidade (cf. CFJ, Ak V, 430 [359]).

ceito de soberano bem representa deixa claramente resolver-se na possibilidade da adequação do curso sensível da natureza – do qual depende a felicidade enquanto aquela parte do soberano bem que é empiricamente condicionada – aos fins da liberdade25.

Neste momento estamos, então, autorizados a equacionar o resultado defini- tivo da discussão em torno da verdadeira justificação da necessidade de se pensar o problema do soberano bem e a retirar as suas principais implicações:

1. A necessidade de uma reflexão sobre o problema da possibilidade do soberano bem não é senão uma exigência da subjectividade para o estabelecimento da unidade da dupla legislação da razão, na exacta medida em que a indagação acerca de uma tal possibilidade representa simplesmente o esforço do sujeito (de um sujeito entregue a si mesmo) a favor da construção de um sistema de fins da razão pura enquanto sistema que realiza a unidade da razão consigo mesma.

2. É precisamente porque a necessidade de se pensar a possibilidade do sobe- rano bem se impõe como exigência da pura subjectividade que vemos um tal pro- blema ser reconduzido, na Crítica da Faculdade de Julgar, ao espaço de uma teleologia (em particular, de uma teleologia moral) enquanto espaço de uma sim- ples reflexão subjectiva que é incapaz de determinar objectivamente o dado. Efec- tivamente, o âmbito da Crítica da Faculdade de Julgar não é mais o da determina- ção, mas o da reflexão. Na terceira crítica deixamos de estar perante um sujeito que procura fixar o que as coisas são para passarmos a estar perante um sujeito que projecta o como se as coisas fossem. Quando Kant atribui à teleologia a tarefa da demonstração de uma finalidade da natureza real e objectiva, essa realidade e objectividade não são mais a realidade e objectividade de que trata a Crítica da

Razão Pura, mas uma realidade e objectividade originariamente subjectivas, quer

dizer, pensadas por uma faculdade de julgar simplesmente reflexiva.

3. A solução do problema da possibilidade do soberano bem, ou seja, a dou- trina kantiana dos postulados é, na Crítica da Faculdade de Julgar, um corolário indispensável de uma exigência da subjectividade humana. Com a terceira crítica, o movimento da fé moral nos postulados, originado na Crítica da Razão Prática, não só se confirma a si mesmo, como vê esclarecida a sua própria natureza – um movimento subjectivo que não alcança senão um pensamento subjectivo26.

25 Os termos constitutivos do soberano bem são de tal modo reconvertíveis nos termos constitutivos daquela que dissemos ser a questão fundamental da terceira crítica (a questão da unidade da razão), que Rousset (1967) chega mesmo a apresentar como projecto fundamental da terceira Crítica o problema da realidade objectiva teórica do soberano bem ou, o que vai dar no mesmo, o problema da realidade objectiva teórica das ideias postula- das pela razão no seu uso prático (cf. 556-557), problema que Kant não chega a resolver, uma vez que a teleologia natural não pode dar às ideias práticas uma realidade objectiva que ela própria não possui, na sua condição de simples reflexão subjectiva (cf. 559-561).

No documento A Felicidade na Ética de Kant (páginas 109-114)