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O Que Faz do Soberano Bem um Problema?

No documento A Felicidade na Ética de Kant (páginas 83-86)

O LUGAR POSITIVO DA FELICIDADE NA ÉTICA DE KANT

1. O Que Faz do Soberano Bem um Problema?

É na Dialéctica da Crítica da Razão Prática que Kant se propõe resolver explicitamente o problema da possibilidade do soberano bem (summum bonum ou

höchstes Gut) de um mundo possível, dito de outro modo, o problema de um justo

acordo, traduzido sob a forma de uma justa proporção, da felicidade (Glückselig-

keit) do ser racional com a moralidade (Sittlichkeit) que esse mesmo ser põe em

exercício2.

1 Embora a CRPr seja a obra onde Kant faz o tratamento mais sistemático do problema do soberano bem, a CFJ, em particular o apêndice intitulado “Metodologia da Faculdade Teleológica”, oferece a este propósito matéria muito importante. Dizemos “muito importante” já que ela nos vai permitir compreender o referido problema no seu verdadeiro significado. Referências menores ao problema do soberano bem ocorrem, também, na Liç. Ét., na CRP, na T&P e na Religião.

2 Cf. CRPr, Ak V, 110 (130); CFJ, Ak V, 450 (381); CRP, Ak III, 528 (A814/B842 [645]); T&P, Ak VIII, 279 (62); Religião, Ak VI, 5 (13). Nem todas as definições de soberano bem são idênticas. Por exemplo, algumas passagens referem-se ao soberano bem para um mundo possível e outras ao soberano bem para um indivíduo; umas vezes, Kant fala-nos de felicidade pessoal, outras, fala-nos de felicidade universal. Além disso, Kant distin- gue o soberano bem derivado (cujos elementos constitutivos são a moralidade e a felicidade) de um soberano bem originário (existência de Deus) (cf. CRPr, Ak V, 125 [144]). De qualquer modo, uma coisa é certa: 1. o soberano bem (no seu sentido derivado, que é aqui o que está em causa) é uma combinação entre virtude e felicidade na qual a felicidade é o elemento condicionado; 2. o soberano bem é tratado, por Kant, como sendo um fim simultanea- mente individual e social (quando o autor pretende sublinhar a dimensão especificamente social do soberano bem utiliza o termo Weltbeste).

Se por felicidade deveremos, aqui, entender o estado no qual se realiza a total adequação entre aquilo que o ser humano deseja que aconteça e aquilo que realmente acontece3, por moralidade deveremos, precisamente, compreender a

condição que torna um ser digno de felicidade – só é digno de ser feliz aquele ser cuja conduta é produto de uma conformidade total das suas intenções (Gesinnun-

gen) à lei moral, por respeito para com a lei4.

O simples reconhecimento dos elementos que integram o soberano bem permite-nos, desde já, atestar uma dupla exigência que este mesmo conceito impli- citamente parece encerrar: é necessário, para a realização da moralidade, que a vontade deixe exclusivamente determinar-se pela lei moral; mas é também necessá- rio, para a consecussão de uma felicidade proporcional àquele mérito, que o curso da natureza satisfaça uma tal vontade.

Uma vez identificados os elementos constitutivos do soberano bem e as exi- gências que o seu conceito contém, impõe-se, em primeiro lugar, responder à seguinte questão: o que faz do soberano bem e, portanto, dos seus elementos, res- pectivamente, um problema e uma relação problemática?

A resposta a esta questão tem de começar pela apresentação do ponto de partida da reflexão kantiana sobre o soberano bem. Quer na Crítica da Razão Prá-

tica, quer na Crítica da Faculdade de Julgar, o ponto de partida da reflexão sobre

o soberano bem é o mesmo: a lei moral obriga, como objecto ou fim necessário a

priori da nossa vontade5, à realização do soberano bem, isto é, obriga ao fomento

de um estado no qual felicidade e moralidade coexistam harmoniosamente6.

3 Cf., supra, p. 45.

4 Cf. CRPr, Ak V, 124 (144).

5 A propósito da afirmação kantiana segundo a qual o soberano bem constitui um fim necessário a priori da vontade, podemos imediatamente colocar as seguintes questões: se o soberano bem constitui um fim necessário da vontade e se um fim é sempre um fundamento de determinação da vontade (cf. CRPr, Ak V, 58-59 [73]), cons- titui, também, o soberano bem um fundamento de determinação da vontade? E pode o soberano bem constituir um fundamento de determinação da vontade sem ao mesmo tempo resultar dessa possibilidade a heteronomia da vontade? A resposta kantiana a estas questões parece problemática. Não é, aliás, sem razão que, se por um lado, encontramos passagens onde Kant se refere ao soberano bem como fundamento de determinação da vontade (cf. CRPr, Ak V, 109-110 [128]), por outro, encontramos passagens onde nega uma tal possibilidade (cf. CRPr, Ak V, 109 [127]). De qualquer forma, se identificarmos os diferentes pontos de vista segundo os quais o autor faz estas duas afirmações (aparentemente) contraditórias, é possível encontrar uma saída coerente para as questões enuncia- das. Na nossa opinião, Wike (1994) identifica perspicazmente esses pontos de vista: “By itself, as object of the will, the highest good is not the determining ground of the will. No object, not even the highest good, by itself, can act to determine the will without resulting in heteronomy. However, together with the moral law, because it con- tains the moral law and is an object dictated by the moral law, the highest good is a determining ground of the will. There is no real contradiction here if it is recognized that the highest good is understood diferently when it is said not to be a determining ground than it is when said to be a determining ground” (136).

6 Cf. CRPr, Ak V, 114 (133); CFJ, Ak V, 450 (381). A discussão em torno dos fundamentos desta obriga- ção e, mais precisamente, a demonstração da insuficiência da justificação kantiana para a afirmação segundo a qual a lei moral obriga ao fomento do soberano bem só posteriormente (no quarto capítulo) será abordada. E isto por duas razões: em primeiro lugar, porque se trata, do nosso ponto de vista, da questão mais polémica da temática do soberano bem, merecendo assim uma atenção especial; e, em segundo lugar, porque uma tal discussão irá ter

Mas ficou estabelecido na Analítica da Crítica da Razão Prática que a união existente entre as duas determinações constitutivas do soberano bem não pode ser conhecida analiticamente7, quer dizer, não pode ser conhecida segundo o princípio

de identidade “como se, por exemplo, aquele que busca a sua felicidade se encon- trasse já nesta sua conduta, pela simples resolução destes conceitos, virtuoso, ou como se aquele que obedece à virtude se encontrasse já ipso facto, pela consciência de uma tal conduta, feliz”8. Com efeito, a procura da felicidade e o exercício de

uma conduta virtuosa deixam resolver-se, do ponto de vista de Kant, em acções em si mesmas irredutíveis, relevando a especificidade de cada uma dessas acções da especificidade das máximas adoptadas. As máximas da virtude e as máximas da felicidade são heterogéneas e incorrem frequentemente, no sujeito, em conflito manifesto9.

Se a ligação entre os dois elementos constitutivos do soberano bem não pode ser analítica, ela tem de conceber-se como uma ligação sintética, quer dizer, como uma ligação possível segundo o princípio da causalidade10. Mas se, para Kant, essa

ligação é reconhecida como sendo necessária a priori (já que a lei moral obriga à realização do soberano bem), perguntar pela possibilidade do soberano bem signi- fica, imediatamente, indagar acerca da possibilidade de uma síntese a priori da moralidade com a felicidade. É precisamente o facto da dupla impossibilidade (ainda que aparente) de realização de uma tal síntese que nos coloca no centro daquilo a que Kant chamou a antinomia da razão prática. Dizemos “dupla impossibilidade”, uma vez que essa síntese, enquanto relação de causa e efeito, pode ser positivamente pensada de dois modos diferentes; e dizemos dupla impos- sibilidade “aparente”, uma vez que a antinomia acaba por ser solucionada.

Se considerarmos a primeira hipótese (tese), isto é, a possibilidade de o desejo de felicidade ser motivo de máximas da virtude, logo verificamos como ela cai por terra à luz do que ficou estabelecido na Analítica da Crítica da Razão Prá-

tica: referimo-nos especialmente ao desenvolvimento da argumentação kantiana

contra a possibilidade de a felicidade constituir princípio de um sistema moral11. uma função capital na nossa apreciação do problema da possibilidade do soberano bem e na determinação do seu significado fundamental.

7 Veja-se a este propósito a nossa análise da crítica kantiana à moral epicurista (cf., supra, pp. 74-76). 8 CRPr, Ak V, 113 (132, trad. corrigida): “[…] dass etwa der, so seine Glückseligkeit sucht, in diesem seinem Verhalten sich durch blosse Auflösung seiner Begriffe tugendhaft, oder der, so der Tugend folgt, sich im Bewusstsein eines solchen Verhaltens schon ipso facto glücklich finden werde […].”

9 Cf., supra, p. 61, n. 13, sobre a noção de máxima.

10 Cf. CRPr, Ak V, 111 (130): “Duas determinações unidas necessariamente num conceito devem estar conexas como princípio e consequência, e sem dúvida, de tal modo que ou esta unidade é considerada como analítica (conexão lógica) ou como sintética (conexão real), aquela segundo a lei da identidade, esta de acordo com a lei da causalidade” (“Zwei in einem Begriffe notwendig verbundene Bestimmungen müssen als Grund und Folge verknüpft sein, und zwar entweder so, dass diese Einheit als analytisch (logische Verknüpfung) oder als synthetisch (reale Verbindung), jene nach dem Gesetze der Identität, diese der Causalität betrachtet wird”).

Efectivamente, as máximas que regulam uma conduta exclusivamente orientada para a procura da felicidade pessoal não são morais e, por consequência, não podem, como tal, garantir o valor moral dessa conduta. Se considerarmos a segunda hipótese (antítese), ou seja, a possibilidade de a máxima da virtude consti- tuir em si mesma a causa eficiente da felicidade, também esta parece revelar-se inconsistente, já que “toda a conexão prática das causas e dos efeitos no mundo, como resultado da determinação da vontade, não se regula pelas intenções morais da vontade”12, mas, ao invés, deixa regular-se pelas leis da natureza. A experiência

mostra-nos que o homem mais honesto é muitas vezes o mais infeliz.

Agora, uma vez depurado o conjunto das razões que justificam, por um lado e realmente, a impossibilidade de uma ligação analítica entre os dois elementos constitutivos do soberano bem e, por outro lado, a impossibilidade de uma conexão sintética dos mesmos, convém assinalar o seguinte: a generalidade das razões refe- ridas parece gozar de um denominador comum, o qual deixa reduzir-se, em última instância, à heterogeneidade e conflitualidade existentes (ao nível dos fundamentos sobre os quais repousam) entre a moralidade e a felicidade. Ora, isto pode signifi- car (e falamos agora de um ponto de vista exterior ao sistema) que, a limite, as dificuldades emergentes no momento em que se trata de pensar a possibilidade da relação entre as duas determinações que o conceito de soberano bem procura unir resultam do lugar vazio que a fundação da moral kantiana, nos termos em que foi pensada pela Analítica da Crítica da Razão Prática, reservou à felicidade. Com efeito, a intenção de Kant aí, onde se tratava de estabelecer os alicerces de um sis- tema moral, sempre foi a de instaurar peremptoriamente uma ruptura entre morali- dade e felicidade, mostrando inclusivamente que o esforço por se ser virtuoso decorre de um processo de autocontenção que o sujeito moral exerce sobre a sua tendência, enquanto ser finito, para fazer das inclinações motivos de determinação da sua vontade.

Nesta ordem de ideias, querer pensar a possibilidade do soberano bem passa necessariamente pela determinação de uma estratégia capaz de viabilizar o acesso à união a estabelecer entre duas ordens prévia e propositadamente separadas.

No documento A Felicidade na Ética de Kant (páginas 83-86)