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O Conceito de Felicidade

No documento A Felicidade na Ética de Kant (páginas 42-55)

Na Crítica da Razão Prática, Kant escreve:

“O homem é um ser de carências na medida em que faz parte do mundo sen- sível e, a este respeito, a sua razão tem certamente uma missão indeclinável à luz da sensibilidade, que é a de se preocupar com o interesse da mesma e de fazer para si máximas práticas, em vista da felicidade desta vida e, se possí- vel, também da de uma vida futura.”89

A escolha desta passagem para abrir a secção que agora desenvolveremos não é injustificada: por um lado, ao descrever o ser humano como um ser de carên- cias e, por conseguinte, ao caracterizar a razão humana como uma razão que

87 CRPr, Ak V, 34 (46): “Nun ist freilich unleugbar, dass alles Wollen auch einen Gegenstand, mithin eine Materie haben müsse […].”

88 MCDV, Ak VI, 385 (19): “Eine jede Handlung hat also ihren Zweck […].”

89 CRPr, Ak V, 61 (75, trad. corrigida): “Der Mensch ist ein bedürftiges Wesen, so fern er zur Sinnenwelt gehört und so fern hat seine Vernunft allerdings einen nicht abzulehnenden Auftrag, von Seiten der Sinnlichkeit, sich um das Interesse derselben zu bekümmern und sich praktische Maximen, auch in Absicht auf die Glückselig- keit dieses und wo möglich auch eines zukünftigen Lebens, zu machen.”

naturalmente se vê confrontada com a necessidade de responder aos interesses da (sua) sensibilidade, esta passagem equaciona de um modo absolutamente claro a relação que unifica as secções anteriores, a saber, a relação, inevitável no homem, entre os apetites e a razão; por outro lado, ao fazer da felicidade o princípio dinamizador da razão sensível, isto é, o princípio que, a limite, promove um inte- resse geral pelo prazer, esta mesma passagem justifica a conveniência de uma reflexão sobre o conceito de felicidade na medida em que, implicitamente, faz dele o conceito que mais adequadamente coroa a tarefa de uma analítica da razão prá- tica empírica: enquanto faz parte de um mundo sensível, o homem não pode sub- trair-se à procura da sua própria felicidade.

O facto de fazer da felicidade, como sugere o referido excerto, o princípio subjacente à conduta de uma razão empiricamente determinada vincula Kant a uma certa compreensão desse conceito, ou seja, pressupõe, da parte do autor, a atribuição de um significado próprio ao conceito de felicidade. Deste modo, levantam-se imedia- tamente duas questões: O que entende Kant por felicidade? Poder-se-á dizer que, na obra deste filósofo, o conceito de felicidade sempre teve o mesmo significado?

Decidimos organizar a resposta à nossa primeira questão em dois momentos distintos. No primeiro, propômo-nos identificar aquele que nos parece ser o aspecto essencial da noção kantiana de felicidade; no segundo momento, procuraremos desdobrar esse mesmo aspecto nos seus elementos constitutivos fundamentais. Adoptamos este procedimento metodológico apenas porque, muito embora as defi- nições kantianas de felicidade que consideramos centrais não partam de diferentes pressupostos e, portanto, sejam na sua generalidade concordes, elas nem sempre sublinham um mesmo elemento no conceito.

A felicidade, reduzida à sua expressão mais simples, não é senão, para Kant, o estado no qual tudo ocorre segundo o nosso desejo e vontade90, ou seja, o estado

no qual se efectiva a total adequação entre aquilo que o ser humano quer que aconteça e aquilo que de facto acontece. Assim, a felicidade repousa inevitavel- mente numa perfeita harmonia entre os fins que o homem se propõe realizar e o curso da natureza, já que, para a sua consecussão, na natureza91 tudo deve ocorrer

segundo o desejo de um tal ser.

Resta, pois, determinar de um modo mais particular os elementos compreen- didos por uma tal harmonia. Ora, julgamos serem três os elementos fundamentais constitutivos da noção kantiana de felicidade.

1. Ficou já estabelecido que o homem é um ser racional, mas que é também um ser sensível; sob esta sua última condição ele vê-se dotado de uma multiplici-

90 Cf. CRPr, Ak V, 124 (143); MCDV, Ak VI, 480 (131).

91 O conceito kantiano de natureza nem sempre tem o mesmo sentido. Neste caso específico, trata-se do conceito empírico de natureza, o qual diz respeito à ordem e à unidade dos fenómenos espacio-temporalmente determinados.

dade de desejos, de inclinações, de apetites, etc.92, que naturalmente quer ver

satisfeitos e com cuja satisfação não visa apenas salvaguardar a sua sobrevivência, mas, mais do que isso, visa também garantir qualidade à sua própria vida; pois, não basta o mais elementar para o satisfazer93. A felicidade é precisamente, segundo

Kant, a satisfação de todos os nossos apetites e inclinações94. Ela não se cumpre

com a satisfação deste ou daquele apetite em particular, mas exige, antes, a satisfa- ção de todos os nossos apetites, de todas as nossas inclinações. Elevada ao seu máximo expoente, a felicidade reclama o preenchimento absoluto daquilo que podemos designar de carência da inclinação humana em geral e, por conseguinte, ela implica o poder de satisfazer a totalidade dos nossos desejos. Mas será fácil identificar essa totalidade? Não. Segundo Kant, a felicidade é um conceito da imaginação e, enquanto tal, ela diz respeito a um ideal de completude que em si mesmo é indeterminável, pois não é possível a um ser racional e finito estabelecer de um modo absolutamente claro e rigoroso aquilo que realmente quer ou aquilo que realmente o faz feliz: se a felicidade é o estado no qual se realiza a satisfação completa das nossas inclinações, tudo aquilo que o seu conceito contém é necessa- riamente obtido da experiência; ora, não é possível determinar com segurança absoluta a totalidade empírica de uma série infinita de consequências que nos faria feliz95. Isso seria tarefa para um ser omnisciente.

2. O conceito de felicidade não compreende exclusivamente a ideia de uma satisfação completa dos nossos apetites. Com efeito, uma coisa é satisfazer um apetite, quer dizer, dar-lhe resposta, concretizá-lo; outra coisa é o efeito que resulta dessa satisfação, dessa resposta ou concretização. Assim, a felicidade é também a

soma do agrado96 proveniente da satisfação da totalidade dos apetites e inclinações.

Vejamos, agora, aquilo mesmo que parece estar implicado na ideia de uma soma de agrado.

Na Crítica da Razão Pura, Kant define a felicidade como sendo “a satisfação de todas as nossas inclinações (tanto extensive, quanto à sua multiplicidade, como

intensive, quanto ao grau e também protensive, quanto à duração)”97. Posteriormente,

na Crítica da Razão Prática e, em particular, no contexto da defesa kantiana da tese segundo a qual o prazer (enquanto causa do desejo) é sempre da mesma espécie, a multiplicidade, o grau e a duração voltam a surgir, agora explicitamente apresen- tados, como sendo os critérios em função dos quais optamos por este ou por aquele

92 Veja-se a este propósito a secção 2. do cap. 1 deste trabalho e, em particular, p. 32.

93 Na FMC, Ak IV, 393 (31), Kant faz referência a alguns conteúdos concretos da felicidade (como sejam, por exemplo, o poder, a riqueza e a honra) que provam bem que o homem não se satisfaz com o mais elementar.

94 Cf. CRP, Ak III, 523 (A806/B834 [640]); FMC, Ak IV, 399 (37). 95 Cf. FMC, Ak IV, 418-419 (56-57).

96 Cf. FMC, Ak IV, 399 (37).

97 CRP, Ak III, 523 (A806/B834 [640]): “Glückseligkeit ist die Befriedigung aller unserer Neigungen (sowohl extensive der Mannigfaltigkeit derselben, als intensive dem Grade und auch protensive der Dauer nach).”

prazer. Aliás, tivemos já oportunidade de verificar que a afirmação da impos- sibilidade do cálculo hedonístico se regular por critérios qualitativos se impõe como uma espécie de corolário inevitável da referida tese98. Assim, dizer da felicidade que

é uma soma de agrado significa compreender a experiência da felicidade como sendo, a limite, a experiência do mais intenso e duradouro agrado99.

3. Para pôr termo a esta espécie de decomposição da noção kantiana de feli- cidade que temos vindo a desenvolver, é necessário acrescentar aquele que julga- mos ser o terceiro elemento fundamental a reter do conceito em causa. A felici- dade, para Kant, não é apenas a satisfação de todas as inclinações e a soma do agrado que provém de uma tal satisfação; é também, sublinhe-se, a consciência100

desse mesmo agrado acompanhada da certeza da sua durabilidade101. Ter

consciência do agrado que resulta da satisfação da totalidade dos nossos apetites significa ter consciência do preenchimento absoluto da carência da inclinação e, portanto, ter consciência de nada precisar, quer dizer, da nossa auto-suficiência. Todavia, a consciência do agrado produzido pela satisfação das nossas inclinações só é inteiramente feliz se, ao mesmo tempo, estiver convencida de que esse mesmo estado de agradabilidade é duradouro. Ao fazer da ideia de uma agradabilidade ininterrupta uma exigência reclamada pelo próprio conceito de felicidade, o nosso autor força-nos a reconhecer duas coisas: por um lado, força-nos a reconhecer os limites ou mesmo a insuficiência incontornável da nossa melhor experiência do prazer, pois, por mais prolongada e intensa que esta seja, ela nunca satisfará o requisito de ininterruptabilidade imposto pelo ideal102 kantiano de felicidade; por

outro lado, obriga-nos a afastar qualquer concepção de felicidade que a identifique com êxtase; a felicidade não é um êxtase, mas um prolongamento do estado de agradibilidade; uma soma de agrado obtida mediante a satisfação da totalidade das nossas inclinações não pode confundir-se, segundo o nosso autor, com uma soma de momentos extáticos103.

As definições do conceito de felicidade que nos são propostas por Kant parecem, deste modo, envolver três diferentes registos: o registo da acção propria- mente dita (acção pela qual se satisfaz o apetite), o registo do resultado da acção

98 Cf., supra, pp. 31-32.

99 Não falamos aqui da experiência do agrado mais facilmente repetível justamente porque a ideia de um agrado infinitamente durável dispensa só por si a necessidade da sua repetição.

100 Cf. CRPr, Ak V, 22 (32). Rotenstreich (1979), numa frase feliz, explicita bem esta noção de consciên- cia presente na definição kantiana de felicidade: “Happiness is not an opaque situation but a kind of understanding that a situation is agreable” (42). Ora, porque só um ser racional tem consciência e porque a felicidade pressupõe a consciência, poderemos dizer que esta definição acaba por limitar o estado de felicidade a seres racionais.

101 Cf. CRPr, Ak V, 22 (32); FMC, Ak IV, 418 (56); MCDV, Ak VI, 387 (22).

102 Não é por acaso que Rotenstreich (1979) nos fala de uma “utopia da felicidade” em Kant: “[…] he [Kant] presented a sort of utopia of happiness, which amounts to a harmony between the worthy man and a con- stant state of affairs” (51, itálico nosso).

(uma vez satisfeito o apetite, espontaneamente é gerada a sensação de agrado que se obtém com tal satisfação) e o registo da consciência do resultado da acção (cons- ciência do agrado que sentimos em relação ao estado em que nos encontramos).

O desenvolvimento da resposta à nossa primeira questão, além de nos auto- rizar a qualificar de hedonista a concepção kantiana de felicidade (a procura da felicidade é a procura do prazer), permite-nos ainda compreender a própria felici- dade como não sendo mais do que um todo absolutamente empírico; na verdade, a análise que aqui fizemos mostrou-nos que ela não contém em si mesma nenhum elemento que não seja viabilizado pela experiência: a satisfação de inclinações, o agrado e a consciência do agrado são elementos empiricamente dependentes.

Cumpre-nos agora saber se, segundo Kant, a felicidade sempre foi assim considerada.

A colocação desta pergunta pede uma referência à Reflexão 7202104, a qual

terá sido escrita logo a seguir à primeira Crítica (pelo menos é o que pensa L. W. Beck)105. Não podemos ignorar esta reflexão justamente porque ela nos prova que

Kant nem sempre pensou a felicidade do mesmo modo. Efectivamente, nela, o autor defende ideias que, posteriormente, aquando da formulação da teoria da autonomia da vontade, abandonará em definitivo e que, portanto, não sugerem ainda uma descrição da felicidade como um todo exclusivamente empírico. Aqui, Kant distingue forma e matéria da felicidade e, sobre isso, diz-nos: “A matéria da felicidade é sensível, mas a sua forma é intelectual”106. É precisamente na explicita-

ção da forma ou condição a priori (como lhe chama também) da felicidade que o autor manifesta ter desta última um conceito que é ainda uma síntese de elementos intelectuais e sensíveis. Em que consiste, então, a dimensão intelectual deste con- ceito kantiano não definitivo de felicidade?

“A felicidade não é a maior soma de agrado, mas o prazer de estar contente com a consciência do seu próprio poder. Pelo menos esta é a condição formal essencial da felicidade, embora seja necessário outro material (enquanto pro- veniente da experiência).”107

Esta passagem é extremamente curiosa. E é-o por duas razões. Por um lado, porque a definição negativa de felicidade que aqui nos é apresentada (a felicidade não é a maior soma de agrado) corresponde precisamente àquela que posterior-

104 Refl. 7202, Ak XIX, 276-282. 105 Cf. Beck (1960) 215.

106 Refl. 7202, Ak XIX, 276: “Die Materie der Glückseeligkeit ist sinnlich, die Form derselben aber ist intellectuel […].”

107 Refl. 7202, Ak XIX, 276: “Glückseeligkeit ist eigentlich nicht die (grösste) Summe des Vergnügens, sondern die Lust aus dem Bewustseyn seiner Selbstmacht zufrieden zu seyn, wenigstens ist dieses die wesentliche formale Bedingung der Glückseeligkeit, obgleich noch andere materiell (wie bey Erfahrung) erforderlich sind.”

mente será a definição kantiana definitiva de felicidade e que já aqui analisámos. Por outro lado, porque aquilo que o autor aqui diz ser a condição formal da felici- dade, entendida como condição de possibilidade da própria felicidade (e que não é senão uma definição moral de felicidade), converter-se-á posteriormente em algo que Kant excluirá do conceito (empírico) de felicidade, fazendo questão em subli- nhar a sua absoluta diferença. Referimo-nos ao conceito kantiano de autocontenta- mento (Selbstzufriedenheit). Vejamos, pois, em que consiste, nos seus aspectos fundamentais, este autocontentamento108.

As considerações elaboradas pelo filósofo a este propósito são relativamente simples. Todos nós sentimos um certo tipo de satisfação quando temos consciência de que agimos moralmente bem. É precisamente a esse contentamento que acom- panha a consciência do dever cumprido, ou que acompanha a nossa experiência da moralidade, que Kant dá o nome de “autocontentamento”. O autocontentamento não é senão a aprovação interior que sentimos em relação aos actos que praticamos e que julgamos serem moralmente correctos. O autocontentamento é, enfim, o contentamento com a nossa própria pessoa.

Se, na Reflexão 7202, o autocontentamento constitui a condição formal da felicidade e, portanto, constitui um elemento intrínseco ao próprio conceito de feli- cidade, na Crítica da Razão Prática, a sua pertença ao mesmo é explicitamente posta de lado109. Na Crítica da Razão Prática, o autocontentamento é apenas um

análogo da felicidade que em nada se deve confundir com esta e isso porque, enquanto este último termo designa uma satisfação positiva, uma satisfação que resulta do preenchimento de uma carência, aquele outro designa apenas uma satis- fação negativa, quer dizer, uma satisfação que é a simples consciência de nada se precisar ou, se se quiser, a simples consciência de uma certa espécie de auto- -suficiência: não de uma auto-suficiência que poderia decorrer da satisfação total da globalidade das nossas carências (pois, uma vez satisfeitas todas as carências, nada mais seria desejado ou apetecido)110, mas uma auto-suficiência que é produto

da nossa experiência de independência em relação ao poder das inclinações. Mesmo quando, mais tarde, na Doutrina da Virtude, Kant se permite chamar feli- cidade moral ao contentamento que acompanha a conduta virtuosa, deixa claro que se trata de uma forma de felicidade que nada tem que ver com o conceito mais

108 Cf., supra, p. 29 e n. 38 (distinguimos aí dois tipos de prazer prático e, a esse propósito, fizemos uma referência ao prazer que é simplesmente efeito do desejo; dissemos que este último era designado por Kant de múltiplas formas, entre as quais constava o termo “autocontentamento”).

109 Cf. CRPr, Ak V, 118 (137, trad. corrigida): “A própria liberdade torna-se deste modo (isto é, indirecta- mente) capaz de um gozo que não pode chamar-se felicidade […]” (“Die Freiheit selbst wird auf solche Weise (nämlich indirect) eines Genusses fähig, welcher nicht Glückseligkeit heissen kann […]”).

empírico da mesma111. Chega inclusivamente a reconhecer o carácter autocon-

traditório de uma tal designação.

Em suma: aquilo que inicialmente constitui a forma e a matéria de uma mesma ideia – a ideia de felicidade – resultará, na lição final de Kant, em duas ideias absolutamente distintas, respectivamente, autocontentamento e felicidade. Dito de outro modo: aquilo que começa por ser apenas a matéria da felicidade acaba por ser, depois, a felicidade na sua totalidade. Aliás, e como tão bem nota S. M. Shell, o facto de Kant enfatizar a descontinuidade entre felicidade e autocon- tentamento permite-nos afastar qualquer leitura que procure ver na teoria moral deste autor um eudemonismo da autonomia112, como se a conduta da vontade

autónoma ou, o que é o mesmo, o exercício da moralidade fosse o meio para a rea- lização da felicidade. É certo que só a moralidade proporciona o autocontenta- mento, mas o autocontentamento não é, segundo Kant, a felicidade e, mesmo que fosse, ele não seria nunca o fim da acção moral, mas apenas o seu corolário ou consequência inevitável, pois fazer da felicidade, mesmo de uma felicidade moral, fim do agir significa inviabilizar desde logo qualquer valor moral a esse mesmo agir113. É certo, também, que só o exercício da moralidade nos torna dignos da

felicidade fisicamente compreendida, mas o mérito de ser feliz não é o mesmo que a felicidade114.

Depois de, através da resposta à segunda questão formulada no início desta secção, termos dado conta das oscilações semânticas sofridas pelo conceito kan- tiano de felicidade e de termos procedido à distinção entre este mesmo conceito e o de autocontentamento, estamos em condições de equacionar aquela que é, do nosso ponto de vista, a tese fundamental estabelecida por Kant em matéria de felicidade: ainda que a felicidade não seja o fim último da existência humana, ela constitui indubitavelmente um fim real para todos os homens.

Embora não encontremos nenhuma passagem na obra de Kant onde o autor apresente e justifique esta tese na sua totalidade, ela pode, com legitimidade, ser- -lhe atribuída. Com efeito, se procedermos à sua decomposição verificamos que ela resulta da junção de duas afirmações específicas, a saber: (1) a felicidade não é o fim último da existência humana; (2) a felicidade constitui um fim real para todos os homens. A primeira afirmação podemos encontrá-la na Fundamentação da

Metafísica dos Costumes e, ainda que de uma forma menos explícita, na Crítica da

111 Cf. MCDV, Ak VI, 377 (9). 112 Cf. Shell (1980) 76. 113 Cf., adiante, p. 75.

Faculdade de Julgar115; a segunda afirmação encontramo-la bem manifesta, por

exemplo, na Fundamentação e na Crítica da Razão Prática116.

Avancemos, agora, na análise e discussão da argumentação kantiana que sustenta as afirmações discriminadas.

É no contexto da demonstração da tese segundo a qual o verdadeiro destino da razão (prática) é a produção de uma vontade boa em si mesma que Kant estabe- lece, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, que a felicidade não é o fim último da existência humana, constituindo, aliás, a própria prova desta afirmação um dos momentos fundamentais da referida demonstração. Mas a nós importa-nos sobretudo saber em que razões sustenta o autor uma tal afirmação. O argumento kantiano, exposto na referida obra, a favor da impossibilidade de a felicidade cons- tituir um tal fim pode ser descrito do seguinte modo: se o verdadeiro fim da natu- reza117 num ser dotado de razão e vontade fosse a felicidade, a natureza não teria

escolhido a razão como governante da nossa vontade, pois a razão não é apta para indicar à vontade os meios para a felicidade. A natureza teria escolhido o instinto. Todavia, a natureza escolheu a razão – com efeito, a razão foi-nos dada como faculdade prática, isto é, como faculdade que deve influenciar a vontade. Ora, se num ser organizado não se encontra nenhum órgão que não seja o mais conve- niente e adequado ao fim a que se destina118, então o fim da natureza num ser

dotado de razão e vontade não é a felicidade119.

Uma primeira análise deste argumento permite-nos desde logo verificar que uma das suas premissas fundamentais é a inaptidão da razão para indicar à vontade os meios para a felicidade (ou, formulando noutros termos, a superior aptidão do instinto natural para o cumprimento da referida tarefa). Mas como justificar esta premissa? Que tipo de razões poderemos alegar para explicar uma tal inaptidão? A resposta parece ser óbvia para Kant:

“Observamos de facto que, quanto mais uma razão cultivada se consagra ao gozo da vida e da felicidade, tanto mais o homem se afasta do verdadeiro contentamento; e daí provém que em muitas pessoas, e nomedamente nas

115 Cf., respectivamente, FMC, Ak IV, 395-396 (33-34) e CFJ, Ak V, 430-431 (359-360).

116 Cf., respectivamente, FMC, Ak IV, 399 (37), 415-416 (53-54) e CRPr, Ak V, 25 (36); ver também

T&P, Ak VIII, 208 (trad. port. in A Paz Perpétua e Outros Opúsculos, p. 61) ; MCDV, Ak VI 387 (22), 480 (131).

117 Neste argumento somos confrontados com uma concepção teleológica de natureza, segundo a qual a natureza é pensada como um sujeito e, por conseguinte, como algo que se propõe fins a atingir.

118 Encontrar um órgão que não seja adequado ao fim a que se destina é uma possibilidade absurda, por-

No documento A Felicidade na Ética de Kant (páginas 42-55)