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Argumentos que Sustentam a Impossibilidade Moral do Princípio da Felicidade

No documento A Felicidade na Ética de Kant (páginas 55-72)

Se o que está agora em causa é a análise da argumentação kantiana contra a possibilidade de a felicidade constituir o fundamento de um sistema moral, impõe- -se, em primeiro lugar, saber o que é um sistema moral, determinando o seu lugar e a sua função no interior daquilo que Kant, na Crítica da Razão Pura, designa por sistema da razão pura3.

Na Arquitectónica da Razão Pura, encontramos sistema definido nos seguin- tes termos:

1 Veja-se, adiante, na p. 60 e na n. 12, uma clarificação da noção de princípio.

2 Na sua obra Kant on Happiness in Ethics (1994), Victoria Wike aborda a rejeição kantiana do eudemo- nismo mediante a consideração, não de dois, mas de quatro aspectos diferentes. Tal como nós, começa por fazer um estudo dos argumentos kantianos que invalidam a possibilidade moral do princípio da felicidade. Depois, a sua via é outra, uma vez que opta por analisar os seguintes pares de opostos: inclinação versus dever, legalidade versus moralidade e, finalmente, imperativos hipotéticos versus imperativos categóricos. Embora a análise destas oposi- ções fortaleça, na exacta medida em que confirma, a argumentação dirigida pelo nosso autor contra a possibilidade moral do princípio da felicidade, não a situamos, no âmbito de um estudo da rejeição kantiana do eudemonismo, ao nível da própria argumentação, pois julgamos que uma tal análise constitui mais uma depuração dos corolários da própria rejeição do que um outro caminho para provar que a felicidade cai fora do domínio da moralidade.

“Ora, por sistema entendo a unidade de conhecimentos diversos sob uma ideia. Esta é o conceito racional da forma de um todo, na medida em que nele se determinam a priori, tanto o âmbito do diverso, como o lugar respectivo das partes.”4

Esta definição aponta para um conjunto de características fundamentais. Estamos perante um sistema quando:

1. o sentido de cada elemento depende da sua relação com a totalidade dos elementos;

2. obtemos sempre o mesmo resultado, operando quer um movimento pro- gressivo (da parte para o todo) quer um movimento regressivo (do todo para a parte);

3. a alteração de uma das partes produz, como consequência, contradições na totalidade;

4. os princípios são determinados de modo legítimo e as demonstrações ela- boradas de forma rigorosa.

Unidade, totalidade e conclusividade são, por conseguinte, as exigências fundamentais sem as quais não é possível pensar um sistema.

Determinadas as suas condições formais, importa agora dilucidar o conteúdo do sistema em causa (a saber, o sistema da razão pura):

“A metafísica divide-se em metafísica do uso especulativo e metafísica do uso prático da razão pura e é, portanto, ou metafísica da natureza ou metafí-

sica dos costumes. A primeira contém todos os princípios da razão, derivados

de simples conceitos […], relativos ao conhecimento teórico de todas as coi- sas; a segunda, os princípios que determinam a priori e tornam necessários o

fazer e o não fazer.”5

A leitura desta passagem permite-nos concluir que o sistema da razão pura é o produto da unidade estabelecida entre dois subsistemas, nomeadamente, o da razão teórica e o da razão prática. A função deste último é, justamente, conferir um carácter de necessidade e de universalidade aos princípios que regulam a acção humana.

4 CRP, Ak III, 538-539 (A832/B860 [657]): “Ich verstehe aber unter einem Systeme die Einheit der mannigfaltigen Erkenntnisse unter einer Idee. Diese ist der Vernunftbegriff von der Form eines Ganzen, so fern durch denselben der Umfang des Mannigfaltigen sowohl, als die Stelle der Theile untereinander a priori bestimmt wird.”

5 CRP, Ak III, 544 (A841/B869 [663]): “Die Metaphysik theilt sich in des speculativen und praktischen Gebrauchs der reinen Vernunft und ist also entweder Metaphysik der Natur, oder Metaphysik der Sitten. Jene enthält alle reine Vernunftprincipien aus blossen Begriffen […] von dem theoretischen Erkenntnisse aller Dinge; diese die Principien, welche das Thun und Lassen a priori bestimmen und nothwendig machen.”

Assim, por sistema moral devemos entender um conjunto de leis morais absoluta e necessariamente válidas para todos os seres racionais e, por conseguinte, válidas (também) para o homem na exacta medida em que este é um ser racional6.

Mas de que modo se justifica esta exigência segundo a qual as leis morais devem valer para todos os seres racionais e não apenas para os homens? Efectivamente, para o nosso autor, uma lei só pode valer moralmente, ou seja, só pode constituir fundamento de uma obrigação, se for dotada de uma necessidade absoluta e esta última apenas pode ser garantida sob a condição de se procurar o motivo da refe- rida obrigação a priori nos conceitos da razão pura. Não há outra forma, segundo Kant, de impedir que os nossos costumes fiquem sujeitos a toda a sorte de perver-

são7.

Explicitadas as exigências (de absoluta necessidade e universalidade) a que deve obedecer um sistema moral, estamos em condições de dar início à análise da argumentação kantiana contra a possibilidade de a felicidade constituir a base desse mesmo sistema.

A obra onde Kant faz uma apresentação mais sistemática dos argumentos dirigidos contra a possibilidade anteriormente referida é a Crítica da Razão Prá-

tica. De qualquer modo, julgamos que esse esforço de sistematicidade nem sempre

se traduz em resultados efectivos. E isto por várias razões: para além de utilizar uma linguagem pouco clara, o autor nem sempre identifica os pressupostos dos seus raciocínios, estabelecendo relações entre proposições que só a ele parecem óbvias; acresce-se a isto o facto de alguns dos argumentos se encontrarem disper- sos e, por conseguinte, a sua exposição não obedecer a uma ordem perfeitamente transparente8. Assim, e numa tentativa de clarificação, optámos por não seguir

passo a passo a exposição kantiana da referida argumentação, preferindo antes identificar-lhe os seus momentos fortes e articulá-los, a nosso modo, num todo organizado. Do nosso ponto de vista, uma tal argumentação acaba por resolver-se, fundamentalmente, em duas diferentes séries, a saber, uma primeira série centrada na análise das propriedades daquilo a que Kant chama os princípios práticos mate- riais e uma segunda série centrada na análise das propriedades do próprio desejo de felicidade. Para cada uma delas, o procedimento metodológico a adoptar será o seguinte: apresentação, exposição detalhada e discussão dos argumentos.

Passemos, então, à apresentação das teses fundamentais que constituem aquela que dissemos ser a primeira série de argumentos:

6 Cf. FMC, Ak IV, 408 e 411 (47 e 50). 7 Cf. FMC, Ak IV, 390 (27).

8 Repare-se, por exemplo, que as considerações sobre os princípios práticos materiais são feitas no segundo e no terceiro parágrafos da Analítica e só são retomadas, depois, no parágrafo oitavo da mesma.

1. Todos os princípios práticos materiais são empíricos. 2. Os princípios práticos empíricos não podem ser leis práticas.

3. Os princípios práticos materiais são todos da mesma espécie e classificam- -se sob o princípio geral da felicidade pessoal.

4. Logo, o princípio geral da felicidade pessoal não fornece leis práticas9.

A exposição mais detalhada deste conjunto de argumentos obriga a fazer alguns esclarecimentos terminológicos prévios.

Tivemos já ocasião de verificar que a faculdade de desejar é, segundo Kant, uma faculdade de produzir objectos10. Na Lógica, o autor diz das proposições práti-

cas que são aquelas proposições que “enunciam a acção que torna possível um objecto e que se apresenta como a condição necessária deste último”11. Os princí-

pios práticos constituem precisamente uma das espécies de proposições práticas. No seu sentido mais estrito, um princípio prático é uma proposição prática primeira – proposição prática fundamental não derivada de outras proposições práticas ainda mais fundamentais. Mas um princípio prático pode também ser definido, apenas, nos termos de uma proposição que expressa uma determinação geral da vontade

que contém em si mesma uma série de regras práticas (uma outra espécie de propo-

sições práticas)12. O que é, então, uma determinação geral da vontade? Qual a com-

petência das regras contidas por uma tal determinação? Segundo Beck, a expressão kantiana determinação da vontade significa duas coisas, pelas quais, aliás, a von- tade não é uma volição indefinida, mas sim uma volição direccionada para algo, quer dizer, uma volição intencional: determinação da vontade significa simulta- neamente causa determinante de uma acção (ou motivo de acção) e decisão

9 Para a formulação desta série de argumentos baseámo-nos sobretudo nas seguintes passagens: CRPr, Ak V, 21-22, 27, 34 e 36 (31-33, 38, 46 e 49); FMC, Ak IV, 442 (79).

10 Cf., supra, pp. 18-23.

11 Lóg., Ak IX, 110: “[…] praktische Sätze hingegen sind die, welche die Handlung aussagen, wodurch, als nothwendige Bedingung desselben, ein Object möglich wird.” Diferentemente das proposições práticas, que enunciam regras de acção, as proposições teóricas limitam-se a enunciar um conhecimento. A propósito da afirma- ção kantiana segundo a qual as proposições práticas, à excepção das proposições práticas que dizem respeito à liberdade sob leis, diferem das proposições teóricas apenas na sua forma e não no seu conteúdo (embora nem todas as proposições teóricas sejam convertíveis em práticas), Beck (1960) observa com pertinência, e em desacordo com o autor, que também as proposições práticas morais se identificam, do ponto de vista do seu conteúdo, com proposições teóricas: “If we maintain, more successfully than Kant did, the distinction between imperative and law, a morally practical imperative (i.e., the categorical imperative) will correspond to the moral law, which is a theoretical statement about the freedom of rational beings in general” (77n3).

12 Cf. CRPr, Ak V, 19 (29). Num sentido estrito, a expressão “princípio prático” refere-se a proposições práticas fundamentais não derivadas de outras proposições ainda mais fundamentais. E, do ponto de vista da sua filosofia moral, a preocupação de Kant é precisamente a de determinar e de justificar o princípio prático mais fundamental ou, se se quiser, o princípio prático supremo. De qualquer modo, Kant utiliza muitas vezes a expres- são “princípio prático” num sentido mais relativo: nesses casos, embora não se esteja a referir ao princípio prático supremo, está a referir-se a proposições práticas que expressam uma determinação geral da vontade que contém em si mesma uma série de regras. Sobre esta distinção entre um sentido estrito e um sentido relativo do conceito kantiano de princípio, veja-se Paton (1947) 59.

tomada. Assim, o aspecto essencial de uma proposição que expressa uma determi-

nação geral da vontade é o de que ela se refere a uma disposição estável e dura- doura da vontade13. Quanto às regras contidas pela determinação geral da vontade,

compete-lhes precisamente indicar o que é correcto fazer de acordo com o próprio princípio14.

Fixado o significado do conceito de princípio prático, cumpre-nos conside- rar em particular os princípios práticos materiais, uma vez que são estes que estão em jogo na nossa série argumentativa.

Um princípio prático material é aquele que pressupõe uma matéria da facul- dade de desejar como fundamento de determinação da vontade, entendendo-se aqui por matéria da faculdade de desejar um objecto cuja realidade é desejada15. E o que

é que isto quer dizer? Isto quer dizer que o que faz um princípio prático ser mate- rial não é a sua referência a um objecto de desejo (pois como foi já aqui subli- nhado, tem de haver um objecto de desejo para que haja acção)16, mas é a sua

referência a um objecto de desejo como factor determinante da vontade. Ou seja: um princípio prático material é aquele que é adoptado para orientar uma conduta

apenas por causa da sua referência a um objecto de desejo.

Estamos, agora, em condições de iniciar a exposição daquela que designá- mos como “primeira série argumentativa”.

Quando um sujeito adopta um princípio prático material, o fundamento de determinação da sua vontade é a representação de um objecto cuja realidade é desejada e, por conseguinte, a relação dessa mesma representação ao sujeito. A relação da representação de um objecto ao sujeito, enquanto relação que desenca- deia o acto de determinação da faculdade de desejar para a produção do objecto,

13 Cf. Beck (1960) 78. Kant distingue princípios práticos objectivos (a que dá o nome de leis) de princí- pios práticos subjectivos (a que dá o nome de máximas), dependentemente do facto de a determinação geral da vontade expressa pelo princípio ser válida, respectivamente, para a vontade de todos os seres racionais ou apenas para a vontade do sujeito que adopta o princípio (cf. CRPr, Ak V, 19 [29]). Note-se, todavia, que o termo “máxima”, sem ser considerado nesta sua relação de oposição com a noção de lei, surge outras vezes com um significado mais abrangente, dizendo respeito a qualquer tipo de proposição prática ou a qualquer regra de acção em geral. Ver, por exemplo, CRP, Ak III, 527 (A812/B840 [644]).

14 Na CRPr, Ak V, 20 (30), Kant define regras práticas como proposições que prescrevem as acções que servem como meio para a realização das nossas intenções. É, aliás, por este motivo que as regras são consideradas, pelo nosso autor, como um produto da razão, pois só a razão nos pode facultar o conhecimento dos meios apro- priados para a realização de um fim. As regras, diz ainda Kant, na sua relação com seres cuja vontade não é apenas determinada pela razão, convertem-se em imperativos. Todavia, porque uma tal definição de regras práticas não integra a possibilidade da existência de regras incondicionais, naturalmente subsumidas em princípios incondicio- nais (possibilidade que apenas pode ser legitimada por uma analítica da razão prática pura), preferimos definir regras como sendo proposições práticas que expressam o que é correcto à luz de um certo princípio (cf. Beck [1960] 79-80).

15 Cf. CRPr, Ak V, 21 (31). 16 Cf., supra, p. 43.

chama-se prazer na existência do objecto17. Todavia, não é possível saber a priori,

isto é, independentemente da experiência, se um objecto dá prazer, desprazer ou se não dá nem uma coisa nem outra18 – só através de uma experiência efectiva da

sensibilidade do próprio sujeito é que este pode saber se um sentimento de prazer ou de desprazer surge com a presença do objecto. Logo, todos os princípios práti- cos materiais são empíricos.

Uma vez que os princípios práticos materiais são empíricos, fácil é concluir que não podem constituir leis práticas, pois nenhum princípio prático empírico pode ser considerado uma lei. Com efeito, para que um princípio prático possa ser considerado uma lei, ele tem de ser absoluta e necessariamente válido para todos os seres racionais. O facto de a validade de um princípio prático material depender de uma condição que apenas pode ser empiricamente conhecida (a saber, a condição subjectiva de receptividade a um prazer ou desprazer) coloca-o imediatamente no plano da contingência e da particularidade e impossibilita-o, justamente porque lhe subtrai os requisitos de necessidade e de universalidade, de valer como lei. Mesmo que a experiência nos mostrasse que o prazer não varia de sujeito para sujeito (o que não é o caso, pois frequentemente verificamos que aquilo que dá prazer a um sujeito A não dá prazer a um outro sujeito B), ela nunca poderia garantir de modo absoluto que um certo objecto desse prazer a todos os sujeitos.

Para terminarmos a exposição do percurso conducente ao estabelecimento da conclusão da nossa primeira série argumentativa (a saber: o princípio geral da feli- cidade não fornece leis práticas), e demonstrada a impossibilidade de os princípios práticos materiais serem leis, resta-nos apresentar as razões kantianas mediante as quais os princípios práticos materiais se devem classificar sob a designação do princípio geral da felicidade.

As razões que justificam a classificação dos princípios práticos materiais sob a designação do princípio geral da felicidade resultam basicamente da análise de dois conceitos fundamentais, designadamente, o conceito de prazer e o conceito de felicidade19. Mas uma vez que essa tarefa já foi por nós realizada, basta agora cha-

mar os aspectos relevantes, da referida análise, para a nossa argumentação. Ficou, então, estabelecido que (1) o prazer, na sua relação com a faculdade de desejar, é

17 Cf. CRPr, Ak V, 21 (31-32). Ao chamar, no teorema I da Analítica da Crítica da Razão Prática, à rela- ção entre a representação de um objecto e o sujeito, enquanto relação pela qual a faculdade de desejar é determi- nada à produção do objecto, prazer na existência do objecto, Kant parece sugerir uma certa identitificação entre o prazer na existência do objecto e o prazer que é causa do desejo, como se todo o prazer na existência de um objecto fosse o prazer que é causa do desejo. Todavia, convém aqui recordar que o prazer na existência do objecto que se relaciona com a faculdade de desejar como causa da sua determinação constitui, de acordo com o que já aqui analisámos, apenas uma das modalidades do prazer prático ou, o que é o mesmo, do prazer na existência do objecto (cf., supra, p. 27). A outra modalidade do prazer prático é o prazer que se tem na existência de um objecto, mas que é apenas efeito, e não causa, do desejo.

18 Cf., supra, p. 28.

sempre um prazer na existência de um objecto20 e que (2) o prazer na existência de

um objecto considerado enquanto causa do desejo é um prazer que se oferece atra- vés dos sentidos – prazer a que o nosso autor dá o nome técnico de “agrado”21. Por

outro lado, quando procedemos à apreciação da noção kantiana de felicidade, veri- ficámos que esta se define (também)22 como sendo a soma do agrado que provém

da satisfação das nossas inclinações23. Assim, uma vez que os princípios práticos

materiais são, precisamente, proposições práticas que se baseiam na procura do prazer (desse prazer que, na sua condição de coisa procurada, se chama agrado), eles classificam-se sob o princípio geral da felicidade pessoal24. Ora, se os princí-

pios práticos materiais não podem constituir leis práticas e se eles se classificam sob o princípio geral da felicidade pessoal, pode concluir-se que o princípio geral da felicidade não fornece25 leis práticas.

Terminada a exposição daquela que dissemos ser a primeira série argumen- tativa, queremos agora discutir alguns dos problemas que a seu propósito podem colocar-se.

É no parágrafo segundo da Analítica da Crítica da Razão Prática que Kant afirma a tese segundo a qual os princípios práticos que pressupõem uma matéria da faculdade de desejar como fundamento de determinação da vontade, ou seja, os

20 Cf., supra, p. 27. 21 Cf., supra, p. 30.

22 Dizemos “também” porque Kant dá outras definições de felicidade. 23 Cf., supra, p. 46.

24 É precisamente no teorema II da Analítica da Crítica da Razão Prática, teorema onde surgem apresentadas as principais razões que justificam a classificação dos princípios práticos materiais sob o princípio geral da felicidade pessoal, que Kant identifica este último com o princípio do amor próprio (Prinzip der Selbs- tliebe), entendendo-se por amor próprio “a benevolência acima de tudo para consigo mesmo (philautia)” (“Diese ist […] die der Selbstliebe, eines über alles gehenden Wohlwollens gegen sich selbst (philautia)”) (CRPr, Ak V, 73 [89]). Sendo o amor próprio uma das formas que o egoísmo pode assumir, ao dizer-nos, no referido teorema, que os princípios práticos materiais se classificam sob o princípio geral do amor próprio ou da felicidade pessoal, Kant sugere uma concepção egoísta de felicidade (contra a qual, aliás, no artigo intitulado “Kant’s Theory of Moral Sensibility. Respect for the Moral Law and the Influence of Inclination” se insurge Reath [1989] 292n161, argu- mentando que o princípio do amor próprio é simplesmente o princípio de agir a partir do mais forte desejo e que a acção feita com base no amor próprio não precisa de ser egoísta). Apesar de não estarmos interessados em desen- volver aqui a temática do egoísmo (pois interessa-nos sobretudo analisar a argumentação dirigida pelo filósofo contra as morais da felicidade), gostaríamos, todavia, de chamar a atenção para o facto de ela nos permitir apontar uma grave inconsistência na analítica kantiana da razão prática empírica (cf. Beck [1960] 100-102): como é possí- vel compatibilizar, por um lado, a tese segundo a qual todas as máximas materiais são máximas de amor próprio e, por conseguinte, máximas egoístas, com o reconhecimento, por outro lado, de que em alguns homens existe um

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