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20º Congresso Brasileiro de Sociologia. 12 a 17 de julho de UFPA, Belém - PA. Comitê de Pesquisa: CP17 Educação e Sociedade

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20º Congresso Brasileiro de Sociologia

12 a 17 de julho de 2021

UFPA, Belém - PA

Comitê de Pesquisa: CP17 – Educação e Sociedade

Capital urbanístico e reprodução social: desigualdades urbanas e educacionais a partir do Exame Nacional do Ensino Médio em Joinville/SC

Charles Henrique Voos1

1 Cientista Social (UNIVALI), Mestre em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade (UFSC) e Doutor em Sociologia (UFRGS). Professor da Faculdade Guilherme Guimbala. E-mail: charleshenriquevoos@gmail.com.

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1. Introdução

Considerando a grande expansão do ensino superior provocada nos anos 2000 e 2010 pelos governos Lula e Dilma, e o fortalecimento do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), ocorrido no mesmo período, a grande oportunidade de acesso ao ensino superior público e, em partes, privado, no Brasil, passou a ser via Enem.

Assim, todos os anos, milhões de candidatos se submetem às provas, sonhando com os melhores postos universitários. Porém, como assinalou Pierre Bourdieu, principal marco teórico deste estudo, o sistema de ensino tende a reproduzir as desigualdades sociais presentes fora da escola. Com a grande quantidade de candidatos que fazem as provas do Enem anualmente, o acesso aos indicadores socioeconômicos e o cruzamento com as notas obtidas podem trazer uma comprovação de que os melhores resultados são alcançados por aqueles que possuem vantagens sociais em relação à escolaridade dos pais, sexo e, sobretudo considerando o nosso recorte, vantagens em relação ao modo de vida urbano.

Queremos, assim, relacionar essas prerrogativas presentes no campo da sociologia da educação com aqueles presentes nas discussões da questão urbana. Em outras palavras, pretendemos mostrar, com um recorte feito a partir de candidatos residentes em Joinville/SC, terceira cidade mais populosa do sul brasileiro, com quase 600 mil habitantes, como alguns elementos urbanos podem ajudar (ou não) na construção de um capital urbanístico, teoria adaptada aos capitais do já citado Bourdieu, para construir a afirmação de que acumular “qualidade de vida urbana” pode trazer melhores resultados, em correlação direta às outras categorias sociais usualmente utilizadas. Essa hipótese será testada com a população de Joinville, a qual vive em cidade segregada e com suas principais políticas urbanas locais atendendo grupos historicamente poderosos, comparando o seu desempenho no Enem aos detentores das melhores moradias e dos melhores acessos às vantagens e disposições necessárias para os melhores desempenhos acadêmicos.

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2. Por uma aproximação ao conceito de capital urbanístico

Mike Savage (2011), em seu texto denominado “The Lost Urban Sociology

of Pierre Bourdieu [A Perdida Sociologia Urbana de Pierre Bourdieu, em tradução

livre]”: aponta que a Sociologia Urbana vive um dilema, pois está mais apegada a conceitos de outras áreas (ou de seus antigos esquemas conceituais) do que aos “frameworks” populares da Sociologia. Um caminho apontado por Savage seria a aproximação com Pierre Bourdieu, que possui uma via teórica poderosa para reinterpretar e “recarregar” a Sociologia Urbana com novas análises sobre a estratificação social nas cidades, mas ainda é um caminho “marginal” nos estudos urbanos, devido ao pouco esforço do próprio Bourdieu em produzir conteúdo sobre o urbano.

Porém, Loic Wacquant (2017), a partir das provocações do próprio Savage, mostra alguns caminhos importantes para aqueles interessados em revisitar Bourdieu e articular suas ideias com a questão urbana. Na comunicação “Bourdieu viene a la ciudad: pertinencia, principios, aplicaciones”, evidencia-se como as primeiras obras de Bourdieu sobre suas pesquisas na Argélia trazem elementos essenciais para a questão, visto que as obras “establecen que todas las estructuras sociales y mentales tienen correlatos espaciales y condiciones de posibilidad; que la distancia social y las relaciones de poder están expresadas en y reforzadas por la distancia espacial”; além de “que la cercanía al centro de acumulación de capital [...] es un determinante clave de la fuerza y la velocidad del cambio social” (WACQUANT, 2017, p. 289). Anos mais tarde, em 1991, Bourdieu publicou um

paper (que foi traduzido para o Português no ano de 20132 com o título “Espaço físico, espaço social e espaço físico apropriado”) com as principais ideias contidas em um pequeno capítulo (“Efeitos de lugar”) do reconhecido livro “A miséria do Mundo”. Já apontamos a nossa leitura sobre este capítulo em outras oportunidades (VOOS, 2019; 2020a; 2020b), mas há alguns elementos que necessitamos

2 Bourdieu, 2013.

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referenciar novamente, sobretudo na articulação entre a publicação original e a compilada para o livro.

Acreditamos, com isto, que estes documentos sejam os registros mais específicos deste autor sobre assuntos que envolvem a questão urbana, pois é destacado que cada pessoa se caracteriza (BOURDIEU, 2013, pp. 133-134):

pelo lugar em que está situado de maneira mais ou menos permanente: o domicílio [...]; e ele se caracteriza pela posição relativa que suas localizações temporárias [...] e, sobretudo, permanentes (endereço privado e endereço profissional) ocupam em relação às localizações dos outros agentes. Ele caracteriza-se também pela posição que ocupa (juridicamente) no espaço, através de suas propriedades (casas, apartamentos ou escritórios, terras para cultivar, explorar ou construir etc.), que são mais ou menos espaçosas ou, como se diz às vezes, “space consuming” (a ostentação do espaço apropriado sendo uma das formas por excelência da ostentação do poder).

Com isso posto, assegura que “o lugar e o local ocupados por um agente no espaço físico apropriado constituem excelentes indicadores de sua posição no espaço social”, e as estruturas do espaço físico apropriado socialmente “constituem uma das mediações através das quais as estruturas sociais se convertem em sistemas de preferências e em estruturas mentais” (idem, ibidem). Ou seja, a cidade é um vetor importante para a consolidação de um determinado habitus, outro conceito fundamental na obra bourdieusiana, especialmente para a incorporação de capital cultural, como veremos adiante, graças à “inscrição imperceptível, nos corpos, das estruturas da ordem social ocorre certamente”, e “através dos deslocamentos e dos movimentos do corpo, das poses e das posturas corporais que essas estruturas sociais convertidas em estruturas espaciais organizam e qualificam socialmente” (idem, p. 135).

É neste momento que surge um conceito pouco explorado pelo próprio Bourdieu, além dos demais pesquisadores no assunto. Ao relatar que a sociedade, um “espaço abstrato constituído pelo conjunto dos subespaços ou dos campos [...] dos quais cada um deve sua estrutura à distribuição desigual de uma espécie particular de capital”, pode ser interpretado sob a maneira como ocorre a distribuição dos diferentes tipos de capitais, os quais servem “simultaneamente, como instrumentos e objetos de lutas no conjunto dos campos”, o autor sinaliza que

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“os lugares e as posições do espaço social reificado ou do espaço físico apropriado, devem a sua raridade e o seu valor ao fato de serem um dos objetos de lutas de que os diferentes campos são o lugar”, considerando que “marcam ou asseguram uma vantagem mais ou menos decisiva nessas lutas” (idem, pp. 136-137).

A capacidade de dominar o espaço apropriado, notadamente apropriando-se (material ou simbolicamente) dos bens raros (públicos ou privados) que aí se encontram distribuídos, depende do capital possuído. O capital permite manter a distância pessoas e coisas indesejáveis e, ao mesmo tempo, aproximar-se das pessoas e coisas desejáveis, minimizando assim o dispêndio (notadamente de tempo) necessário para delas se apropriar. Inversamente, aqueles que são desprovidos de capital são mantidos à distância, seja física ou simbolicamente, dos bens socialmente mais raros, e condenados a conviver com as pessoas ou bens mais indesejáveis e menos raros. A ausência de capital leva ao seu paroxismo a experiência da finitude: ela acorrenta a um lugar. Inversamente, a posse do capital garante, além da proximidade física (residência) em relação aos bens raros, a quase ubiquidade que torna possível o domínio econômico e simbólico dos meios de transporte e de comunicação (BOURDIEU, 2013, p. 137).

Resulta, então, uma “estrutura da distribuição espacial dos poderes”, a qual representa a forma objetivada de um estado das lutas sociais que Bourdieu denominou como “os lucros do espaço”. Mesmo retirando este conceito (e todo os parágrafos explicativos dele) do livro “A miséria do mundo”, podemos encontrar nisso um caminho para investigação.

Considerando que “a dominação do espaço é uma das formas privilegiadas do exercício da dominação, e a manipulação da distribuição dos grupos no espaço foi sempre colocada a serviço da manipulação dos grupos”, Bourdieu manifesta a possibilidade de uma métrica desta dominação de determinados grupos sobre outros. Em outras palavras, seriam as “medidas externas” destes lucros. Surge a necessidade de elencarmos um capital (mesmo que Bourdieu assim não tenha feito) diferenciado, simbólico, que remonta à capacidade de acumular os meios necessários para a vida urbana, ou ainda, acumular “direito à cidade”, no sentido exposto por Lefebvre (1968), e se afirma “na incorporação insensível das estruturas da ordem social através da experiência prolongada e indefinidamente repetida das distâncias espaciais nas quais se afirmam distâncias sociais” (BOURDIEU, 2011,

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p. 162), visando distinção social e disposições vantajosas na reprodução intergeracional para si e seus herdeiros.

A primeira iniciativa nesse sentido partiu de Centner (2008, p. 197, tradução livre), cuja perspectiva bourdieusiana dos capitais culminou na utilização do termo “capital espacial”3, uma forma de capital simbólico “em um campo onde o espaço material está em jogo”. Porém, entendemos a importância deste termo, ao mesmo tempo em que é necessária uma virada conceitual. A partir do próprio Centner (idem, p. 198), quando contrasta que “existem muitos casos na vida social, no entanto, onde o espaço não está em jogo, ou pelo menos não está muito em questão”, entendemos que o acúmulo não está apenas no espaço em si, mas em seus efeitos, assim como Bourdieu apontou em “Efeitos de lugar”, sendo que esses efeitos são oriundos da (re)produção do espaço urbano, um ato urbanístico da vida humana. Ou seja: a questão “é a capacidade não apenas de vencer negociações sobre o controle do espaço, mas também a capacidade de moldar os momentos, locais e termos dessa manobra”, visando “determinar quando o acesso é questionável ou não [...] assim, permite mais do que a entrada em um lugar; permite a elaboração de definições sobre seu uso e reformulação” (CENTNER, idem, ibidem). É por este motivo que lançamos mão do conceito de capital urbanístico para designar o acúmulo de meios necessários para a vida nas cidades, e a conexão com todas as outras formas tradicionais de capitais, pois estamos nos reportando às relações sociais que moldam o espaço. Reiterando a questão, asseguramos novamente por meio de Bourdieu (2013, pp. 140-141):

Dentre todas as propriedades que a ocupação legítima de um lugar pressupõe, há aquelas – e não são as menos determinantes – que só se adquire pela ocupação prolongada desse lugar e a frequentação contínua de seus ocupantes legítimos: este é o caso, evidentemente, do capital social de relações (e muito particularmente, dessas relações privilegiadas que são as amizades de infância ou de adolescência), ou de todos os aspectos mais sutis do capital cultural e linguístico, como as maneiras corporais e os sotaques etc. É o conjunto dos traços que conferem todo o seu peso ao lugar de nascimento (e, em menor grau, ao lugar de residência).

3 Spatial capital, no original.

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Como o habitus interfere na produção do habitat e o habitat na produção do

habitus (BOURDIEU, idem, p. 139), é natural que as cidades sejam receptáculos

escamoteadores dos capitais necessários, principalmente do capital cultural, o qual tomaremos com mais detalhes de agora em diante. Pinçon-Charlot e Pinçon (2018, p. 119, tradução livre) expõem, a partir desta perspectiva de Bourdieu, que grandes famílias, geralmente aquelas de posição de destaque social, “possuem um poder econômico e social que é também um poder sobre o espaço. Eles têm os meios para traduzir distâncias sociais em distâncias espaciais”. Em adição, o espaço urbano seria uma projeção das disputas sociais sobre a cidade e seus bairros, e por isso é importante o quesito localização (um lugar ao invés do outro), pelo acúmulo do “valor diferencial” de um determinado local.

As modalidades de transmissão e reprodução de posições dominantes surgem como uma preocupação constante - muitas vezes autoconsciente, às vezes latente - em ambas as práticas de segregação e agregação do espaço urbano através do papel simbólico da grife espacial [...] A gestão de bens simbólicos (nome, endereço, imagem e assim por diante) e as formas múltiplas e específicas de aprendizagem indispensáveis à vida na alta sociedade (transmitidas por meio de festas, bailes e clubes selecionados, e aprimoradas na gestão de relações com os "comuns" [...]) convergem para assegurar a transmissão bem-sucedida de um patrimônio composto não apenas de herança material, mas também de outras formas de raro capital cultural ou social que requerem herdeiros capazes de recebê-los e fazer uso deles (PINÇON-CHARLOT e PINÇON, idem, p. 123).

A contribuição dessas construções, segundo os autores (idem, p. 124), para a reprodução social ocorre por meio “das várias formas de aprendizagem que o ambiente urbano proporciona constantemente”, como fora de “um aprendizado inconsciente e despercebido, ocorrendo sem o conhecimento dos jovens ou de seus pais. Cada peregrinação pela cidade é um caminho de iniciação, pois revela constantemente o sistema de semelhanças e diferenças”, o qual “nos ensina a decifrar a linguagem dos tijolos e da argamassa, das vitrines, das roupas, dos comportamentos corporais, acentos - enfim, tudo o que proclama continuamente distâncias e desigualdades”. Ao estar na cidade, com suas diferenças e contrastes, aprende-se a diversidade do mundo social e seu lugar nele. Para aqueles grupos sociais que estiveram reclusos em bairros nobres desde a infância, “isso significa ter experimentado o privilégio de pertencer às categorias dominantes, ao

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internalizar, por meio de práticas específicas em espaços urbanos reservados, os modos de ser e as disposições (habitus) peculiar à sua categoria social”, pois “o bairro onde você reside expressa e reforça sua identidade social e de classe”.

O espaço acabou se tornando um dos principais veículos por meio do qual a transmissão opera e se inscreve no tempo. Mais precisamente, assim como a transmissão de posições sociais privilegiadas - e, portanto, de boa ‘fortuna’ em vários sentidos - depende de espaços específicos, também se beneficia de uma temporalidade particular. A preeminência social é afirmada no espaço e no tempo, e sua reprodução pressupõe uma inscrição excepcional em ambas as dimensões. Assim como podemos falar de poder sobre o espaço, podemos caracterizar as famílias mais ricas também por seu poder sobre o tempo. Por mais que essas famílias desfrutem dos benefícios de uma "superfície" ampliada, tanto espacial quanto socialmente: elas estendem seu ser ao longo de um "período" que não é comum, mas se estende por gerações sucessivas (idem, ibidem).

Em mais um brilhante jogo de palavras, Bourdieu expõe em “Futuro de

Classe e a Causalidade do Provável”, que esse poder “dá o monopólio de certos

possíveis” a alguns grupos, em detrimento de outros. A herança de capital urbanístico dos grupos mais favorecidos e que possuem melhores condições de vida nas cidades, assim, constrói-se como um “conjunto de direitos de preempção sobre o futuro, sobre as posições sociais passíveis de serem ocupadas” (como é o caso dos locais ocupados durante as trajetórias escolares). A cidade, portanto, mostra como “o futuro é apropriado [...] futuro apropriado dos outros” (BOURDIEU, 2015, pp. 106-108).

Diante de tais evidências da segregação socioespacial nas cidades brasileiras, e seja qual for o recorte apresentado, vale lembrar que, para Bourdieu (2015, p. 46), “cada família transmite a seus filhos, mais por vias indiretas que diretas, um certo capital cultural e um certo ethos, sistema de valores implícitos e profundamente interiorizados” que definem, dentre outras questões, as atitudes frente à escola e ao próprio capital cultural, sendo este uma “herança cultural”, responsável “pela diferença inicial das crianças diante da experiência escolar e, consequentemente, pelas taxas de êxito”.

O autor quer dizer, com isso, que a escola legitima as desigualdades sociais (“distribuídas” a partir do controle do solo por alguns grupos, como já exposto) e

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“sanciona” o que as heranças culturais (também desigualmente distribuídas entre as gerações) determinam ao longo da escolaridade, sobremaneira das crianças e adolescentes. A parte desta herança mais rentável na vida escolar é o que Bourdieu denomina como “cursus”, uma gama de aptidões sobre a escolarização e pela “cultura livre” adquirida nas experiências fora da escola (ou seja, escamoteadas e articuladas pelo capital urbanístico, como vimos), hierarquizada em valores conforme a origem social dos pais das crianças que comporão as próximas gerações. Em outras palavras, “as crianças e sua família se orientam sempre em referência às forças que as determinam” (BOURDIEU, 2015, p. 54).

De certo modo, as dificuldades enfrentadas pela maioria da população mais pobre serão maiores, exigindo maiores esforços e que, somente assim, poderão ser convertidas em apoio familiar, levando em consideração a baixa taxa de “sucesso” escolar das famílias menos favorecidas, julgadas anteriormente em algum momento de suas vidas pela mesma escola que perpetua valores das classes mais privilegiadas. E se o único elemento que uma criança que vive na periferia de uma cidade qualquer for a “boa vontade cultural vazia” dos seus pais, resta a ela ser forçada a “tudo esperar e a tudo receber da escola” quando assim, na verdade, esta última torna-se uma instituição que conserva a ordem social por não democratizar os privilégios distribuídos nos contextos urbanos (idem, pp. 57-63).

A “função mistificadora” da escola seria, para finalizar, um caminho que levaria “os membros das classes desfavorecidas no destino que a sociedade lhes assinala” (pelo acúmulo de capital urbanístico mais dificultado em relação às outras classes, impossibilitando uma construção mais diversificada de capitais necessários para a ascensão social), percebendo a trajetória escolar no sistema de ensino como uma “inaptidão natural”. Pelo contrário: “não é senão efeito de uma condição inferior, e persuadindo-os de que eles devem o seu destino social [...] à sua natureza individual e à sua falta de dons” (idem, p. 65), gerando um circuito de poder e desigualdades, pois “é o que mantém as relações entre os agentes para além da criação contínua das interações ocasionais” (idem, p. 107) e reproduz

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temporalmente os grupos sociais que terão mais facilidade de acesso aos melhores postos escolares.

3. Desempenho de moradores de Joinville/SC no Enem (2017-2019)

Para ilustrar o que discorremos anteriormente, foi preciso recorrer a um momento importante da vida acadêmica dos jovens brasileiros: a aplicação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Criado em 1998, tornou-se uma política ampliada nos anos 2000, com a criação do ProUni e do Sisu, nos governos Lula. Nos últimos três exames com os micro dados liberados pelo Inep (2017 a 2019), foram mais de 17 milhões de candidatos presentes. Ao todo, o exame é dividido em cinco grandes áreas (Ciências da Natureza, Ciências Humanas, Linguagens e Códigos, Matemática e Redação), com notas atribuídas de forma autônoma entre si de 0 a 1000 pontos (LIMA et. al., 2019). A seguir mostraremos dados específicos da Redação, mas ressaltamos a necessidade de estudos comparativos envolvendo todas as áreas do conhecimento avaliadas.

A partir disso, os dados foram tratados nos programas SPSS (versão 20) e

Power BI e, levando em consideração o grande universo de dados, foi necessário

fazer um recorte a partir da variável “município de residência”4 dos candidatos para alguma cidade em específico, visando cumprir com os objetivos deste trabalho de articular urbanização e trajetórias escolares. Escolhemos, assim, a cidade de Joinville, em Santa Catarina, com quase 600 mil habitantes, a qual já analisamos o seu processo de segregação socioespacial em outras oportunidades (VOOS, 2016).

Com isso, criamos uma amostra com 17.340.358 resultados, ou seja, candidatos presentes ao exame em 2017, 2018 e 2019 no Brasil todo, e 29.582 que residiam em Joinville. Porém, identificamos um grande número de candidatos que

4 A lista de variáveis socioeconômicas respondidas pelos candidatos está disponível em http://download.inep.gov.br/microdados/microdados_enem2019.zip. Acessado em 30 Mai 2020.

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não informaram algumas condições socioeconômicas, e a amostra pode variar conforme os cruzamentos.

Quanto à escolaridade dos pais, o questionário apresentou sete categorias (Tabela 1), além da opção “não sei”, a qual excluímos. Ao todo, surgiram 50 combinações (Gráfico 1) entre as escolaridades dos pais e das mães. Em que pese a falta de evidências para verificação da opção “nunca estudou”, as dez maiores médias nacionais da redação foram conquistadas por candidatos com pais ou mães do grupo “G”, ou seja, com pós-graduação completa, o nível máximo do questionário, cenário muito semelhante a Joinville – nove das dez médias. Na contramão, todas dez piores médias foram provenientes de pais ou mães do grupo “A” ou “B”.

Tabela 1 – Escolaridade dos pais ou responsáveis Grupo Descrição

A Nunca estudou.

B Não completou a 4ª série/5º ano do Ensino Fundamental.

C Completou a 4ª série/5º ano, mas não completou a 8ª série/9º ano do Ensino Fundamental.

D Completou a 8ª série/9º ano do Ensino Fundamental, mas não completou o Ensino Médio.

E Completou o Ensino Médio, mas não completou a Faculdade.

F Completou a Faculdade, mas não completou a Pós-graduação.

G Completou a Pós-graduação.

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Gráfico 1 – Média de Nota da Redação Por Escolaridade do Pai, Escolaridade da Mãe e Ano da Prova

Fonte: Elaborado pelo autor a partir dos micro dados do Enem 2017, 2018 e 2019.

Na mesma direção, o questionário indagou os candidatos sobre a ocupação dos pais, dividindo-a também em grupos (Tabela 2), sendo que excluímos a opção “não sei”. Essa é uma situação importante, pois o emprego que o pai ou a mãe possui pode proporcionar acessos a determinados espaços da cidade, sobretudo aqueles mais exclusivos e reprodutores do capital cultural legitimado, bem como o contrário: pode prender, acorrentar ou trazer experiências de finitude, como vimos anteriormente a partir das provocações de Bourdieu. Pode também facilitar o acesso a lugares com maior capital urbanístico (enquanto outros acessam raramente ou para servir como massa trabalhadora nestes lugares).

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Tabela 2 – Ocupação dos pais ou responsáveis Grupo Descrição

A Grupo 1: Lavrador, agricultor sem empregados, bóia fria, criador de animais (gado, porcos, galinhas, ovelhas, cavalos etc.), apicultor, pescador, lenhador, seringueiro, extrativista.

B Grupo 2: Diarista, empregado doméstico, cuidador de idosos, babá, cozinheiro (em casas particulares), motorista particular, jardineiro, faxineiro de empresas e prédios, vigilante, porteiro, carteiro, office-boy, vendedor, caixa, atendente de loja, auxiliar administrativo, recepcionista, servente de pedreiro, repositor de mercadoria.

C Grupo 3: Padeiro, cozinheiro industrial ou em restaurantes, sapateiro, costureiro, joalheiro, torneiro mecânico, operador de máquinas, soldador, operário de fábrica, trabalhador da mineração, pedreiro, pintor, eletricista, encanador, motorista, caminhoneiro, taxista.

D Grupo 4: Professor (de ensino fundamental ou médio, idioma, música, artes etc.), técnico (de enfermagem, contabilidade, eletrônica etc.), policial, militar de baixa patente (soldado, cabo, sargento), corretor de imóveis, supervisor, gerente, mestre de obras, pastor, microempresário (proprietário de empresa com menos de 10 empregados), pequeno comerciante, pequeno proprietário de terras, trabalhador autônomo ou por conta própria.

E Grupo 5: Médico, engenheiro, dentista, psicólogo, economista, advogado, juiz, promotor, defensor, delegado, tenente, capitão, coronel, professor universitário, diretor em empresas públicas ou privadas, político, proprietário de empresas com mais de 10 empregados.

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Entre as 25 combinações que surgiram a partir das respostas (Gráfico 2), as dez melhores médias são de candidatos com pais que ocupam empregos nos grupos “D” e/ou “E”, postos com maior distinção social, prestígio e dinâmica urbana. Evidencia-se, assim, como o posto laboral dos pais pode ser tão importante quanto a escolaridade, mesmo que as duas situações estejam umbilicalmente ligadas. A questão é aprofundada quando existe a combinação de pais entre os grupos “A”, “B” e “C”, pois são responsáveis que possuem ocupações com horários mais rigorosos, ou jornadas mais exaustivas (inclusive em finais de semana, feriados etc.), utilizando o tempo que sobra para descanso e atividades mais curtas, com menores possibilidades de acesso aos lugares de maior circulação dos capitais necessários à vida urbana que vai além da relação trabalho-casa-trabalho. Situação muito semelhante pode ser conferida nos Gráficos 3 e 4, quando agrupamos a profissão do pai, com a escolaridade do pai, e o mesmo para a mãe.

Gráfico 2 – Média de Nota da Redação Por Trabalho do Pai, Trabalho da Mãe e Ano da Prova

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Gráfico 3 – Média de Nota da Redação Por Escolaridade do Pai, Trabalho do Pai e Ano da Prova

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Gráfico 4 – Média de Nota da Redação Por Escolaridade da Mãe, Trabalho da Mãe e Ano da Prova

Fonte: Elaborado pelo autor a partir dos micro dados do Enem 2017, 2018 e 2019.

Sob esta perspectiva, Jessé Souza (2015), em sua obra denominada “A elite do atraso”, mostra como a existência de empregados domésticos, para realizar tarefas corriqueiras do lar, como cozinhar, lavar, limpar, passar etc., gera um “tempo livre” para aqueles que podem pagar por um serviço precarizado, muitas vezes sem registro trabalhista e com resquícios do período da escravidão do Brasil colônia, o qual permite que se desenvolva os capitais necessários para estudos, aperfeiçoamentos, lazer, cultura e situações afins. Em outras palavras, poder pagar alguém para fazer um serviço braçal, e que gera muitos esforços físicos, traz vantagens situacionais específicas para os responsáveis das famílias, bem como de seus filhos, que não precisam “ajudar” nas tarefas domésticas.

Em Joinville, os resultados mostram algo nesse sentido (Gráfico 5). As piores médias são dos candidatos que não possuem empregados domésticos, independente do sexo declarado. Apesar das oscilações, é visível a diferença para

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os candidatos que possuem empregado doméstico ao menos um dia da semana e também a diferença existente entre aqueles que possuem empregados em mais dias da semana (as primeiras posições médias são ocupadas por pessoas com empregados ao menos cinco dias da semana), além da relação diretamente proporcional à quantidade de quartos (quanto mais cômodos e mais dias de empregados, maiores as notas médias).

Em 2019, 87,6% dos pretos e 86,4% dos brancos faziam afazeres domésticos, enquanto entre os pardos a taxa de realização era de 84,7%. A maior taxa de realização ocorreu entre as mulheres pretas, de 94,1%, contra 91,5% das brancas e 92,3% das pardas. As taxas de realização de afazeres domésticos pelas mulheres brancas (91,5%), pretas (94,1%) ou pardas (92,3%) são sempre mais altas que as dos homens dos mesmos grupos de cor ou raça (80,4%, 80,9% e 76,5%, respectivamente) [...] Em 2019, a população com 14 anos ou mais de idade dedicava, em média, 16,8 horas semanais aos afazeres domésticos ou ao cuidado de pessoas, sendo 21,4 horas semanais para as mulheres e de 11,0 horas para os homens. De 2016 para 2019, essa diferença entre as médias masculina e feminina aumentou de 9,9 para 10,4 horas semanais (IBGE, 2020).

Na mesma direção, o resultado da prova dentre os candidatos que autodeclararam a cor de pele ratifica a relação dos indicadores apresentados acima junto ao desempenho no Enem (Gráfico 6). Enquanto homens e mulheres que se autodeclararam negros ou indígenas e homens negros ocuparam as piores posições médias, o domínio das primeiras posições, em Joinville e no espectro nacional, foram ocupados por mulheres e homens brancos.

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Gráfico 5 – Média de Nota da Redação Por Empregado doméstico (dias), Quartos e Ano da Prova

Fonte: Elaborado pelo autor a partir dos micro dados do Enem 2017, 2018 e 2019 (ver legenda5).

5 Empregado doméstico (dias): B = Sim, um ou dois dias por semana; C = Sim, três ou quatro dias por semana; D = Sim, pelo menos cinco dias por semana. Quartos: B = Sim, um; C = Sim, dois; D = Sim, três; E = Sim, quatro ou mais.

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Gráfico 6 – Média de Nota da Redação Por Cor/Raça, Sexo e Ano da Prova

Fonte: Elaborado pelo autor a partir dos micro dados do Enem 2017, 2018 e 2019 (ver legenda6).

4. Conclusão

Apesar de haver uma grande lacuna de informações no questionário socioeconômico que os candidatos do Enem respondem, podemos observar alguns caminhos possíveis para o aprofundamento desta investigação e o surgimento de novas intenções de pesquisa a partir das mais de 17 milhões de provas aqui analisadas. Não há como cruzar o bairro de moradia, por exemplo, e algumas outras informações relevantes, devido às limitações que encontramos nos micro dados, exigindo outros esforços, provavelmente de natureza qualitativa.

Por outro lado, é visível como alguns itens ligados ao capital urbanístico influenciam as notas dos candidatos, ainda que este trabalho tenha se atentado

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somente às notas da redação. Em muitos casos, o fato de possuir uma casa com mais quartos, facilidades de empregados domésticos etc., trouxe ao candidato uma melhor nota média, além das já tradicionais análises quanto à escolaridade do pais, sexo ou cor de pele dos envolvidos, categorias que ajudaram muitas outras pesquisas a evidenciar as desigualdades do que denominamos (a partir de um esforço muito inicial, diga-se) capital urbanístico.

Não queremos, com isso, minimizar todas as comuns discussões envolvendo as desigualdades que se somam aos moradores das cidades, mas lançar mão de uma nova categoria para se somar às análises da trajetória escolar dos brasileiros: a produção do espaço urbano, marcada pela segregação socioespacial, a qual provoca, dentro de uma mesma cidade, abismos sociais que se relacionam a muitos outros momentos da vida humana. O que trouxemos, portanto, é uma provocação de que a tão propagada expansão universitária dos anos 2000 em diante pode ter sido sustentada em bases desiguais, considerando alguns fatores que interferem no ingresso ao ensino superior via Enem, visto que as melhores médias ainda são de herdeiros dos grupos que, historicamente, possuem privilégios em nossas cidades.

Referências

BOURDIEU, Pierre. O efeito de lugar. In: BOURDIEU, Pierre (org.). A miséria do mundo. Tradução Mateus S. Soares Azevedo. Jaime A. Clasen. Sérgio H. de Freitas Guimarães. Marcus Antunes Penchel. Guilherme J. de Freitas Teixeira. Jairo Veloso Vargas. Petrópolis, Vozes, 2011.

BOURDIEU, P. Espaço físico, espaço social e espaço físico apropriado. Estudos Avançados, [S. l.], v. 27, n. 79, p. 133-144, 2013. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/68707. Acesso em: 21 mar. 2021.

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