As agências reguladoras e a proteção dos usuários
Texto
(2) PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC – SP Claudia Bossay Assumpção Fassa As agências reguladoras e a proteção dos usuários Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Administrativo, área de concentração Efetividade do Direito, sob a orientação do Professor Doutor Silvio Luís Ferreira da Rocha. SÃO PAULO 2016 .
(3) Banca Examinadora ______________________________________ ______________________________________ ______________________________________ .
(4) Ao meu marido Odemilson, por tudo, e às minhas filhas Bruna e Camila, estímulo à perseverança, à dedicação ao trabalho e ao aperfeiçoamento profissional. .
(5) AGRADECIMENTOS Agradeço especialmente à Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso do Sul, instituição da qual me orgulho de fazer parte como Defensora Pública desde 1999, pela confiança depositada e pela concessão de afastamento de minhas funções para frequentar o curso de Mestrado em São Paulo. Registro ainda, imensa gratidão ao meu orientador, Professor Doutor Silvio Luís Ferreira da Rocha, que me aceitou como sua orientanda e que junto com sua honrada e digna esposa, Eliane Barros, me dispensaram atenção e cuidados que só uma amizade sincera é capaz de proporcionar. Agradeço aos meus professores do Mestrado, Dra. Dinorá Adelaide Musetti Grotti e Drs. Vidal Serrano Nunes Junior, Marcelo Souza de Aguiar e Marcelo Gomes Sodré, pelas lições e pela oportunidade do convívio acadêmico. Devo externar também minha gratidão a várias amigas como Maristela Brandão Vilela, com quem compartilhei as primeiras ideias sobre esse trabalho e de quem colhi as lúcidas observações que de alguma forma orientaram esse desafio;; e Ana Cláudia Albuquerque e Juliana Bastos, pela amizade e pelos profícuos diálogos acadêmicos. No campo pessoal, muitos foram os que apoiaram a minha decisão de me ausentar do meu lar e de me afastar de minhas atividades profissionais para ir em busca do aperfeiçoamento da minha formação jurídica. A mais entusiasmada é minha mãe, Maria de Lourdes Bossay Assumpção, sempre companheira e apoiadora! O meu maior incentivador, no entanto, é aquele a quem também dedico este trabalho: o meu marido Odemilson Roberto Castro Fassa. Obrigada, amor, pelo seu incondicional apoio. .
(6) RESUMO As agências reguladoras independentes, no modelo elaborado a partir da década de 1990, com finalidades próprias e poder normativo sobre vários setores da economia e sobre a prestação de serviços públicos, assumiram grande importância na ordem social e democrática, uma vez que foram incumbidas de exercer o controle e a fiscalização das empresas reguladas, com o objetivo preponderante de assegurar a prestação adequada do serviço e de garantir a proteção do usuário, como preconiza o artigo 175, Incisos II e IV, da Constituição Federal. Tais objetivos são funções públicas;; tarefas irrenunciáveis do Estado. O Estado, diante do encolhimento do Estado Administrativo de Providência, que de prestador de serviços passou a regulador dessas atividades, ficou encarregado de manter vigilância para que elas sejam prestadas da melhor forma possível à sociedade. Essa passagem do Estado empresário para o Estado de garantia aumentou a exigência da prestação estatal. E a consequência lógica desse dever de proteção é o dever de aproximação dos entes reguladores com o usuário. As agências reguladoras têm o dever jurídico de se aproximar e de proteger os usuários, bem como a responsabilidade de dar efetividade aos princípios informadores do Estado Social e democrático de Direito e da ordem econômica, dando relevo ao princípio da dignidade humana. Aliado ao papel de proteção do usuário, que é conferido às agências reguladoras, é essencial que a tutela dos cidadãos seja reforçada pelos mecanismos de participação democrática, para que eles possam ter assegurado o direito de influenciar na gestão dos serviços prestados pelas empresas reguladas, na gestão da própria atividade das agências reguladoras e nos compromissos e pautas que foram e que deverão ser adotadas pelo Poder Público. Os atos regulatórios devem ser responsivos, isto é, transparentes, manietados à moralidade administrativa e revestidos de idoneidade para atender às demandas da sociedade. O administrado tem direito não só a uma Administração Pública eficiente, mas eficaz. O nível de aproximação e de proteção ao usuário, que é um direito fundamental, e o dever de eficiência e eficácia dos atos regulatórios no âmbito das agências reguladoras, se aperfeiçoam através do diálogo institucionalizado com o cidadão (usuário ou não, consumidor ou não), por meio dos instrumentos de participação democrática e com o exercício do compromisso das agências com a responsabilidade e com a responsividade administrativas. Palavras-chave: Agências reguladoras. Dever de aproximação. Proteção dos usuários. Direito Fundamental. Função Pública. Responsabilidade e Responsividade administrativas. Participação Democrática. Controle Social. .
(7) ABSTRACT Independent regulatory agencies, functioning within the model developed in the 1990’s with their own purposes and normative power over multiple sectors of the economy as well as over the provision of public services, have assumed great importance in democracy and social order, ever since they have been charged with exercising the regulation of certain sectors of the economy, with the overwhelming objective of assuring the adequate provisioning of services and guaranteeing protection for the user, as prescribed in Article 175, subsections II and IV of the Federal Constitution. These objectives are public functions, obligations of the state which cannot be waived. The state, faced with the shrinkage of the welfare state, which has passed from being a service provider to being a regulator of these activities, has been charged with maintaining vigiliance so that these services can be provided to society in the best manner possible. This transition from state as contractor to state as guarantor has increased the demand for state provisions. The logical consequence of requiring this protection is the obligation for approximation between the regulating entities and the user. The regulatory agencies have the legal duty to approach and protect the users, as well as the responsibility to make effective the principle informants of the legally governed, social, democratic state and economic order, providing relief for the principles of human dignity. Allied with the role of user protection, which is conferred upon the regulatory agencies, it is essential that the safeguarding of citizens be reinforced by mechanisms of democratic participation so that they may guarantee the right to influence the management of services provided by regulated companies, the management of the very activities of the regulatory agencies, and the commitments and agendas that have been and should be adopted by the public authority. Regulatory acts should be responsive, that is to say transparent, contrained by adminstrative morality and wrapped in honesty, in order to meet the demands of society. The adminstered have the right to a public adminstration that is not only efficient but also effective. The level of approximation and protection for the user, which is a fundamental right, and the duty for efficiency and effectiveness of the regulatory acts within the scope of the regulatory agencies are perfected through institutionalized dialogue with the citizen (whether a user or not, a consumer or not) by way of instruments of democratic participation and within the exercise of the commitment of the agencies to responsibility and administrative responsiveness. Key words: Regulatory agencies. Duty of approximation. User protection. Fundamental right. Public function. Administrative responsibility and responsiveness. Democratic participation. Social control. .
(8) SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 10 2 AS AGÊNCIAS REGULADORAS NO BRASIL 15 2.1 O surgimento das agências reguladoras no Brasil 15 2.2 A estrutura das agências reguladoras no Direito positivo brasileiro 18 2.3 Definição de agência reguladora 22 2.3.1 Natureza jurídica 23 2.3.2 Regime jurídico especial 23 2.4 Principais características das agências reguladoras 26 2.4.1 Independência ou autonomia 27 2.4.2 Capacidade técnica 31 2.4.3 Permeabilidade à sociedade 32 2.4.4 Processualidade 32 2.4.5 Regime de pessoal 32 2.4.6 Regime licitatório 33 3 O EXERCÍCIO DA FUNÇÃO REGULATÓRIA E AS COMPETÊNCIAS DAS AGÊNCIAS REGULADORAS 34 3.1 A função regulatória 34 3.2 A regulação dos serviços públicos e das atividades econômicas 38 3.3 As competências das agências reguladoras 45 3.3.1 A competência normativa 46 3.3.1.1 A competência normativa das agências reguladoras e a doutrina clássica da separação dos poderes 46 3.3.1.2 Os Limites da competência normativa das agências reguladoras 48 3.3.2 Competência fiscalizadora 53 3.3.3 Competência sancionadora 55 3.3.4 Competência julgadora 56 4 OS OBJETIVOS PREPONDERANTES DA ATIVIDADE REGULATÓRIA E O DEVER DE APROXIMAÇÃO COM OS USUÁRIOS 58 4.1 O dever de proteção aos usuários e consumidores como função pública 59 4.2 A exigência da prestação adequada do serviço 62 4.2.1 A noção de serviço público 62 4.2.2 Princípios que regem os serviços públicos 65 4.2.3 Os serviços públicos e os direitos fundamentais 67 .
(9) 4.3 As agências reguladoras de atividades de interesse social 70 4.4 Distinção entre usuário e consumidor 71 4.5 O dever de aproximação das agências reguladoras com os usuários, como corolário lógico do dever de proteção dos usuários e da exigência da prestação adequada do serviço 75 5 A PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA NA ATIVIDADE REGULATÓRIA E A RESPONSIVIDADE DAS AGÊNCIAS REGULADORAS 84 5.1 A participação democrática na atividade regulatória 84 5.2 A responsabilidade democrática e a responsividade das agências reguladoras 91 5.3 Os instrumentos de participação democrática mais comuns no âmbito das agências reguladoras 95 5.3.1 As Ouvidorias 96 5.3.2 A audiência pública 97 5.3.3 Consulta pública 100 5.3.4 Conselho Consultivo 102 5.4 Os mecanismos de participação popular e os canais de atendimento aos usuários e consumidores no âmbito da Anatel e da ANS 102 5.4.1 Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL 102 5.4.2 Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS 107 5.5 Atos regulatórios responsivos – uma amostra de atos sancionatórios no âmbito da Anatel e da ANS 111 5.6 As deficiências que comprometem a aproximação das agências reguladoras com os usuários 113 5.6.1 Linguagem técnica 113 5.6.2 Desarticulação dos grupos de participação e falta de hábito do cidadão de participar do debate público 114 5.6.3 Ineficiência dos instrumentos de participação democrática para garantir a qualidade dos serviços prestados 115 5.6.4 O fenômeno da captura 116 6 CONCLUSÃO 117 REFERÊNCIAS 121 .
(10) 10. 1 INTRODUÇÃO Agências reguladoras e proteção do usuário não são temas novos, mas ainda acendem acirrado debate doutrinário, não só pela sua relevância, como pelo interesse que despertam nos doutrinadores, especialmente naqueles que não estão infensos às alterações da conjuntura econômica e social, e à necessidade de releitura dos institutos e competências administrativas. As agências reguladoras, no modelo desenhado a partir da década de 1990, como entidade dotada de independência, com finalidades próprias e poder normativo sobre vários setores da economia e sobre a prestação de serviços públicos, exigiram uma nova visão da estrutura administrativa estatal. O Estado passou de prestador a regulador, com o objetivo de reforçar a eficiência e de fazer chegar ao cidadão serviços públicos essenciais com qualidade. Diante desse afastamento das atividades que antes eram de sua privativa e direta exploração e fornecimento, o Estado passou de empresário a disciplinador e controlador, ficando realçado o seu poder de interferência no domínio econômico. Além da regulação sobre os serviços públicos privatizados ou sobre a exploração de bens públicos (como é o caso do petróleo), o Estado brasileiro passou a priorizar a intervenção estatal nas atividades econômicas stricto sensu, que se caracterizam por serem “atividades que em geral possuem uma especial sensibilidade para a coletividade;; atividades a respeito das quais os interesses são fortes, múltiplos e conflitantes, notadamente as que possuem elevado potencial de comoção da opinião pública”, 1 como é o caso da vigilância sanitária e da saúde suplementar, desempenhadas respectivamente pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e pela ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar). Assim, cabe à agência reguladora regular determinado setor econômico, relacionado ou não com a prestação de serviço público,2 pautando sua atuação com 1. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 274. 2 ROCHA, Silvio Luís Ferreira da. Manual de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 159. .
(11) 11. vistas em dois objetivos preponderantes, previstos no art. 175, incisos II e IV, da Constituição Federal: (i) a garantia da proteção ao usuário e (ii) a satisfação da exigência da prestação adequada do serviço. Dada a importância que assumem na ordem social e democrática, tais objetivos passam a ser funções públicas, ou seja, funções próprias e irrenunciáveis do Estado e da Administração Pública. Nessa perspectiva, o presente estudo tem por finalidade abordar os valores informadores desses dois objetivos preponderantes das agências reguladoras, delineando sua conformação com os primados do Direito Administrativo e com a ordem social e democrática, para ao final demonstrar que a Administração Pública não pode se furtar à promoção, em todos os níveis, e de forma plena, dessa proteção e que as agências reguladoras, como entes da Administração Pública Indireta, no exercício do seu papel de disciplinar, controlar e fiscalizar as atividades desenvolvidas pelas empresas reguladas, devem se empenhar em se aproximar dos usuários. E a despeito de conceitual e tecnicamente não se confundir com a figura do usuário, o consumidor goza da mesma proteção, tendo ambos o caráter de direitos fundamentais. 3 Além de consagrar o princípio da dignidade humana, a Constituição Federal alçou a direitos fundamentais uma série de outros direitos, dentre os quais, a proteção e a defesa do consumidor. Concebeu, portanto, objetivos claros a serem perseguidos pelo Estado, especialmente o da concretização desses direitos sociais, fazendo valer, desta forma, a democracia social que lhe dá esteio. A exigência da prestação adequada do serviço, deflui do disposto no art. 175, inciso IV, do parágrafo único, da Constituição Federal. Trata-se do princípio da obrigatoriedade da prestação do serviço adequado, princípio matriz do serviço público, como expendemos na seção 4.2 deste texto. O serviço público é uma forma de concretização dos direitos fundamentais, é um meio de promover a dignidade humana, porque está voltado à satisfação das necessidades essenciais e fundamentais do ser humano, de modo que o vínculo entre os direitos fundamentais e o serviço público é o que confere existência e legitimidade a este. . 3. A distinção conceitual e jurídica entre usuário e consumidor é tratada no item 4.4, do Capítulo 4, no presente trabalho. .
(12) 12. A Constituição deu preeminência aos direitos sociais, que assinalam o primado da sociedade sobre o Estado e o indivíduo ou, nas palavras de Paulo Bonavides, “que fazem do homem o destinatário da norma constitucional. Mas o homem pessoa, com plenitude de suas expectativas de proteção social e jurídica, isto é, o homem reconciliado com o Estado”.4 O Estado foi incumbido de desempenhar um papel transformador da sociedade na concretização das igualdades materiais. Exige-se do Estado um comportamento ativo, no sentido de propiciar além dos chamados direitos de cunho “negativo”, aqueles que se caracterizam, ainda hoje, por outorgarem ao indivíduo direitos a prestações sociais estatais. Nesse contexto, as políticas públicas, como programas de governo, pressupõem não outra coisa senão a escolha de medidas e providências para a formulação e implementação dos direitos sociais fundamentais. Assim, mesmo que na perspectiva dos economistas o Estado tenha passado de social para neoliberal a partir de 1990, e que agora estaria passando para o denominado “Estado Demiurgo”,5 os fundamentos do Estado brasileiro e a ordem social e democrática mantiveram-se incólumes, de modo que as políticas públicas devem continuar evoluindo no sentido de alcançar, cada vez mais, a sua concretização. Não recrudesceram os ideais democráticos e sociais, uma vez que a Constituição, no seu eixo fundamental, não sofreu nenhuma alteração. Nessa esteira, se por um lado a Constituição Federal alberga a livre concorrência, de outro impõe a intervenção para prevenir e reprimir o abuso do poder econômico e para proteger os usuários e os consumidores. O usuário, como 4. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 28 ed., atual. São Paulo: Malheiros, 2013, p. o 380. Em apêndice a esta obra consta a CF/1988, com as Emendas Constitucionais até a de n 71, de 29.12.2012. 5 AGUILLAR, Fernando Harren. Direito Econômico. Do Direito Nacional ao Direito supranacional. 4 o ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 310-311. (Obra atualizada de acordo com a Lei n 12.529/11). “[…] o Estado laissez-faire passou para o Estado Providência (com boa vontade, também no Brasil) e passa, agora, em matéria de serviços públicos à função de Estado Demiurgo”. Para o autor, o Estado Demiurgo “é [...] o que define qual é o número de prestadores que concorrerão, as faixas geográficas ou espectrais em que concorrerão. É o Estado quem vai definir em que termos haverá concorrência e em que termos não haverá;; o grau de concentração entre os prestadores de serviço, ou seja, a possibilidade de uma empresa acumular diversas concessões, ou prestar serviços em diversas áreas geográficas simultaneamente”. Ibidem, p. 310. “O Estado Demiurgo, é o criador do mercado em seus pontos principais, não pode ser confundido com o Estado liberal que, de certa forma, também institui o mercado”, e prossegue: “[...] no mercado liberal o Estado dá as regras e deixa o jogo econômico fluir livremente”. Ibidem, p. 311. .
(13) 13. beneficiário direto do serviço que é prestado pelo Estado, tem a primazia da proteção estatal;; e o consumidor, como pessoa e cidadão, protagonista das relações econômicas, goza de um direito fundamental à defesa e proteção. Nesse ponto, que compreende o quinto e último capítulo, o trabalho passa a focalizar a responsabilidade democrática das agências quanto à proteção do usuário e à prestação adequada do serviço, destacando a sua responsividade e sua capacidade de atender as demandas da sociedade, propondo o controle dessas atividades através da participação democrática, assegurando que o cidadão (usuário ou não, consumidor ou não) possa influenciar na gestão dos serviços prestados pelas empresas reguladas, na gestão da própria atividade das agências reguladoras e nos compromissos e pautas que foram e que deverão ser adotados pelo Poder Público. A sociedade deve participar do processo de deliberação e tomada de decisões administrativas, para garantir-lhes a legitimidade e a efetividade, funcionando, desta forma, como mecanismo de contenção, moderação e equilíbrio da Administração. Após destacar os instrumentos de participação democrática mais comuns no âmbito das agências reguladoras, optou-se pela análise dos mecanismos de participação popular e dos canais de atendimento aos usuários e consumidores na esfera jurídica da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), traçando um panorama da atuação responsiva de cada uma delas, sem, no entanto, a pretensão de esgotar o tema ou de aprofundar a pesquisa nesse campo, uma vez que não é o propósito do presente trabalho. Em seguida, foram apontadas algumas deficiências na atividade regulatória que comprometem a aproximação das agências com os usuários, tais como a linguagem técnica da regulação, a desarticulação dos grupos de participação, a falta de hábito do cidadão de participar do debate público, a ineficiência dos instrumentos de participação democrática para garantir a qualidade dos serviços prestados e, finalmente, o fenômeno da captura. Por fim, conclui-se que as agências reguladoras devem desempenhar um papel transformador na sociedade, de aproximação com os cidadãos, renunciando a .
(14) 14. uma posição de mero captador de denúncias e reclamações, para atuar como efetivo instrumento de concretização dos objetivos da regulação que são: a prestação adequada do serviço e a proteção dos usuários. . .
(15) 15. 2 AS AGÊNCIAS REGULADORAS NO BRASIL 2.1 O surgimento das agências reguladoras no Brasil A partir da década de 1990, iniciou-se no Brasil uma abertura ao mercado com a implantação de políticas públicas para o desenvolvimento econômico. Em realidade, já se identificava uma crise do Estado desde a década de 1970, marcada, principalmente, pelo déficit público e pela alta inflação, resultante do “milagre econômico” decorrente do projeto de 1964, caracterizado pelo maciço envolvimento do Estado nas atividades econômicas, o que ocasionou, inclusive, o aumento da dívida externa brasileira. Em decorrência da crise, o Estado passou a ser acusado de mau gestor dos recursos públicos e de mau prestador de serviços públicos. A prestação era ineficiente, restrita e sem qualidade, pois não havia recursos públicos para a expansão das redes. A partir daí o Brasil passou a desenvolver uma mentalidade voltada para a privatização, que pugnava pela renúncia do predomínio estatal nas atividades de infraestrutura e de prestação de serviços públicos, o que culminou com a política de “desburocratização” impulsionando o processo de desestatização da economia. Paulatinamente foi promovida a quebra do monopólio estatal em diversos setores da economia, num processo em que várias empresas estatais responsáveis pela prestação de serviços públicos foram privatizadas. A partir de então, o Estado passou a incentivar a competitividade tanto no setor público como no privado, imbuído da ideia de que a concorrência traria .
(16) 16. vantagens “qualitativas e quantitativas”6 tanto para o setor público, como para os usuários dos serviços e consumidores dos produtos. Muito embora a Constituição de 1988 tenha nascido imbuída dessa inspiração, para operacionalizar essa nova disposição governamental, entretanto, foi necessária uma reforma constitucional, que se inaugurou com a edição da Emenda Constitucional nº 5/95, que permitiu a exploração da distribuição de gás canalizado por empresas privadas, mediante concessão. Depois, a Emenda nº 06/95, alterou o inciso IX, do art. 170, e o § 1º, do art. 176 da CF de 1988, este tratando da privatização da pesquisa e lavra de recursos minerais, e aproveitamento dos potenciais de energia hidráulica, permitindo que fossem efetuados por empresas brasileiras ou que tenham sua sede e administração no país. Em seguida foi a Emenda Constitucional nº 7/95, que alterou o parágrafo único do art. 178 da CF, para permitir a realização de transportes de mercadorias na cabotagem por navios estrangeiros. A Emenda Constitucional nº 8/95, por sua vez, alterou o art. 21, XI, e o art. 177, ambos da CF, passando a admitir a exploração direta, ou por concessão, autorização ou permissão, os serviços de telecomunicações;; e a Emenda Constitucional nº 9/95 (que posteriormente passou a ser objeto da Lei nº 9.478/97), alterou o § 2º do art. 177 da CF, passando a prever, inclusive, a criação de órgãos reguladores para serviços públicos de telecomunicações e para atividades monopolizadas da indústria do petróleo. Com essas Emendas, foram extirpadas do texto constitucional restrições à participação de empresas privadas de capital nacional ou estrangeiro nas licitações, com exceção das atividades de radiodifusão, que continuaram (e continuam até hoje), sendo de monopólio estatal brasileiro, como se infere do art. 222 da Constituição Federal. . 6. AGUILLAR, Fernando Harren. Direito Econômico. Do Direito Nacional ao Direito supranacional. 4 o ed. atual. de acordo com a Lei n 12.529/1. São Paulo: Atlas, 2014, p. 184. .
(17) 17. O Plano Diretor da Reforma do aparelho do Estado, elaborado em 1995, traçou a política pública de desestatização,7 concebendo uma série de objetivos e tarefas para a viabilização da retirada da participação direta do Estado da economia e a progressiva inserção da iniciativa privada nas atividades de interesse público. Assim, progressivamente ocorreram as privatizações dos serviços públicos e das atividades econômicas afetas ao interesse público no Brasil. Note-se que na mesma esteira política, o Estado abriu mão do controle de preços e, para controlar a inflação, estimulou a concorrência no mercado. Como realça Aguillar, o controle de preços que era a regra antes das privatizações, passou a ser exceção, permanecendo submetidos ao controle estatal apenas os medicamentos, as anuidades escolares, os planos de saúde e os combustíveis.8 Diante desse afastamento do Estado das atividades que antes eram de sua privativa e direta exploração e fornecimento, o Estado passou de empresário e prestador de serviços públicos a regulador de tais atividades, ficando realçado o seu poder de interferência no domínio econômico. Para desempenhar esse papel de controle e fiscalização das atividades que passaram a ser desempenhadas pela iniciativa privada foram criadas as agências reguladoras. . 7 . Fernando Herren de Aguilar traça um panorama detalhado da evolução da política pública de desestatização. Comenta que, na verdade, o embrião dessa política de desestatização foi concebido o em 1979, com o programa Nacional de Desburocratização (Decreto n 83.740 de 18.7.1979), na o vigência do governo de João Baptista Figueiredo, sucedido pelo Decreto n 91.991, de 28.11.1985, denominado de “Reprivatização”, do governo de José Sarney, que devolvia à iniciativa privada as empresas que antes tinham sido estatizadas em razão dificuldades financeiras, e depois pelo Decreto o n 95.886 de 29.03.1988, que concebeu o Programa Federal de Desestatização, também na vigência o do governo de José Sarney. Após, editou-se o Decreto n 99.179, de 15.3.1990, que criou o Programa Federal de Desregulamentação, do governo de Fernando Collor de Mello, que envolvia o Programa Nacional de Desburocratização (PND) e o Programa Nacional de Desestatização, regulado o pela Lei n 8.031, de 121990. Esse programa se estendeu até o governo do Presidente FHC, intensificando-se em 1997 com os leilões de privatização de inúmeras empresas estatais de grande importância para a economia nacional, como a Telebrás, a Eletrobrás, a Vale do Rio Doce e parte do capital da Petrobrás. AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2014, p.187-189. 8 Ibidem, p.191. .
(18) 18. O termo agências foi adotado no Brasil inspirado no direito norte-americano, fato que até hoje recebe duras críticas de alguns doutrinadores pátrios.9 Outros, como Marçal, ponderam que as agências brasileiras não seriam simples cópias das instituições americanas, pois no Brasil, “reconhece-se que uma parcela da competência é mantida com a administração central”,10 ao passo que nos Estados Unidos, “a competência estatal é exercitada de modo exclusivo pela agência”.11 Segundo Sérgio Guerra, a verdade é que a criação das agências reguladoras marcou uma mudança na concepção da organização estatal e das estruturas administrativas, passando de um modelo piramidal a um modelo em rede, como previu Jacques Chevallier. Escreve o autor: A ordem burocrática, fundada sobre a hierarquização, é desestabilizada pela proliferação de estruturas de um novo tipo, colocadas fora do aparelho de gestão clássico e escapando ao poder de hierarquia: “A figura pós-moderna de rede tende a partir daí a se substituir àquela da pirâmide.12 . 2.2 A estrutura das agências reguladoras no Direito positivo brasileiro A Administração Pública, do ponto de vista orgânico, varia conforme os regimes políticos, mas, como nos lembra Jean Rivero, em todos eles haverá, à frente da Administração, “autoridades com um caráter constitucional e uma origem . 9. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. (Curso de Direito Administrativo. 31 ed., rev. e atual. São o Paulo: Malheiros Editores, 2014, nota de rodapé n 17, p. 176);; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. (Parcerias Público-Privadas. 3 ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 144) e MARTINS, Ricardo Marco para quem a denominação de agência reguladora, no Brasil “é apenas um rótulo para as autarquias” (Regulação Administrativa à Luz da Constituição Federal. Coleção Temas de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 283). 10 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 10 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2014, p. 698. 11 Ibidem. 12 GUERRA, Sérgio. As Agências Reguladoras. Da organização administrativa piramidal à governança em rede. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 107 cita CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 99. .
(19) 19. política”, 13 de modo que permanece quase constante em todos os regimes a presença de órgãos de execução e órgãos de direção e controle, com competências fixadas pela Constituição e que mudam com ela. A organização do Estado brasileiro é matéria de ordem constitucional no que concerne à divisão política do território nacional, à estruturação dos Poderes, à forma de Governo, ao modo de investidura dos governantes e aos direitos e garantias dos governados (organização política);; e de ordem infraconstitucional (legislação complementar e ordinária) a estruturação legal das entidades e órgãos que desempenharão, através de seus agentes, as funções que lhes forem outorgadas (organização administrativa). A Constituição molda a organização política, enquanto a legislação complementar e ordinária dispõem sobre a estrutura e o funcionamento dos órgãos (Administração direta) e das entidades (Administração indireta), todos compondo o que doutrinariamente se convencionou chamar de Administração centralizada e descentralizada.14 O Poder Público, como detentor da titularidade das funções administrativas e como entidade dotada de autonomia política, pode atribuir competências e conferir capacidade de direitos e obrigações a outros órgãos ou entes, num fenômeno denominado descentralização e desconcentração, segundo a distinção abaixo. A descentralização administrativa “significa a transferência de poderes de decisão em matérias específicas a entes dotados de personalidade jurídica própria”.15 Pressupõe o rompimento do vínculo com a entidade matriz;; não subsiste entre o ente criado e a entidade criadora nenhuma relação hierárquica, ou seja, “o ente estatal descentralizado tem personalidade jurídica e não está subordinado à Administração Central”.16 . 13. RIVERO, Jean. Direito Administrativo. Tradução de Rogério Ehrhardt Soares. Coimbra: Almedina, 1981, p. 15. 14 MEIRELLES, Helly Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 41 ed., atual. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 63-65. 15 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo moderno. 6 ed., rev. e atual. São Paulo: RT, 2002, p. 65. 16 Ibidem. .
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