5 A PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA NA ATIVIDADE REGULATÓRIA E A RESPONSIVIDADE DAS AGÊNCIAS REGULADORAS
5.3 Os instrumentos de participação democrática mais comuns no âmbito das agências reguladoras
5.3.2 A audiência pública
A audiência pública é um instituto que tem origem no direito anglo-saxão, fundado no “direito de ser ouvido” ("right to be heard" e suas variações "right to a fair hearing", "right to hearing"),243 princípio da justiça natural que inicialmente era usado como uma garantia individual, de defesa num caso particular, baseado na consideração segundo a qual os indivíduos que se encontrem em alguma situação de possibilidade de restrição de seus direitos têm direito de serem ouvidos previamente.244
Gordillo acrescenta que esse princípio da justiça natural anglo-saxão, no direito estadunidense baseia-se na garantia do devido processo legal, como uma
241RODRIGUES, Cristina Espírito Santo. Participação popular no âmbito das agências reguladoras
brasileiras. (Dissertação). Mestrado em Direito. Universidade de Fortaleza, Fundação Edson Queiroz, Fortaleza, 2011.
242 Na ANATEL, ANVISA, ANTT e ANTAQ, foram criadas ouvidorias independentes, cujos titulares
são nomeados pelo Presidente da República para exercerem um mandato de dois anos, e não estão subordinados à direção da agência.
243 MELO, Cristina Andrade. Audiência Pública na função administrativa. (Dissertação) Mestrado em
Direito. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012, p. 42.
244 MELO, Cristina Andrade. Audiência Pública na função administrativa. (Dissertação) Mestrado em
evolução do antigo princípio “audi alteram pars”(sic),245 que também foi adotado pela Constituição argentina. 246
A audiência pública é um procedimento administrativo, criado por lei, inserido na fase instrutória do processo decisório, consistente na realização de uma reunião aberta a todos os interessados (indivíduos e grupos sociais), pela qual exercem o direito de expor suas opiniões, preferências e sugestões sobre matérias e problemas que envolvem decisões administrativas.
Esse instituto mescla “princípios que tutelam direitos individuais contra a força do Estado ou de entidades que detenham poderes sobre seus membros”.247
No Brasil, ela é prevista em vários textos normativos, podendo ser citados a Constituição Federal (art. 58, § 2º);; a Lei no 8.666/1993 (art. 39, combinado com o art. 23, I, “c”);; a Lei no 8.689/1993 (art.12), a Lei no 10.257/2001 (arts. 43 e 44), e Lei no 9.784/1999 (art. 31 a 34). Além disso, são previstas audiências públicas como fase processual obrigatória na tomada de decisões da ANP (Lei no 9.478/1997, da ANEEL (Lei no 9.427/1996 e Decreto no 2.335/1997), da ANVISA (Decreto no 3.029/1999), da ANATEL (Resolução no 279/2001);; da ANS (Decreto no 3.327/2000);; e no setor dos transportes aquaviário e terrestre (Lei no 10.233/2001).
O procedimento das audiências públicas no âmbito das agências reguladoras consiste em sessões abertas a qualquer cidadão ou a associações, em que são debatidos temas relativos a processos administrativos decisórios em curso e projetos de lei propostos pela agência. O resultado do debate não tem caráter vinculante para uma agência, objetivando tão-somente dar aos participantes a oportunidade de oferecer sugestões e esclarecimentos. Além disso, a realização da
245 GORDILLO, Agustín. Tratado de Derecho administrativo. 2 tomo: La defensa del usuario y del
administrado. 5 ed. Belo Horizonte: Del Rey e Fundácion de Derecho Administrativo, 2003, p. XI-2.
246“ La necessidade politica y jurídica de escuchar al público antes de adoptar uma decisión, cuando
ella consiste em uma medida de caráter general, um proyeto que afecta al usuario o a la comunidade, al médio ambiente, etc.” (“A necessidade política e jurídica de escutar o público antes de adotar uma decisão, quando ela consiste em uma medida de caráter geral, um projeto que afeta o usuário ou a comunidade, ao meio ambiente, etc.”). Ibidem, p. XI-2. (tradução livre realizada pela autora).
247 MELO, Cristina Andrade. Audiência Pública na função administrativa. (Dissertação) Mestrado em
audiência constitui formalidade essencial aos atos administrativos a ela vinculados, disso dependendo a sua validade.248
Através da audiência pública busca-se uma legitimidade democrática para as decisões administrativas. A autoridade administrativa abre um espaço para o debate público sobre questões relevantes para a sociedade, para assegurar uma decisão socialmente legítima, ou, ainda, para ouvir especialistas no assunto em discussão, a fim de garantir uma decisão tecnicamente legítima.249 É certo, todavia, que a audiência pública também pode ser usada em sua “finalidade atípica”, que é a de “servir de instrumento de prestação de contas das ações estatais num canal direto e presencial com a população, funcionando como um accountability qualificado.”250 Nesse formato, a sociedade civil não influencia na elaboração da decisão, apenas toma ciência as atividades do Poder Público e pode fazer o uso da crítica.
A propósito da motivação da audiência pública, Ferraz e Dallari argumentam que o instituto tem como pressuposto “a relevância da questão”251 a ser debatida, independentemente de estar ou não envolvido um tema de interesse geral. Com esse propósito, discordam dos que veem na base do instituto apenas o interesse difuso ou coletivo;; para a os autores, “mesmo que o interesse em tela seja restrito aos envolvidos no processo administrativo, o impacto econômico da decisão ou a mera potencialidade de reflexo sobre futuras discussões análogas do que se vier a decidir a convocação de audiência pública já legitima a convocação de audiência pública”.252
248 BINENBOJN, Gustavo. Agências reguladoras independentes e democracia no Brasil. In:
BINENBOJM, Gustavo (Coord.). Agências reguladoras e democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 106.
249 QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro de. Audiência Pública como instrumento de legitimação da jurisdição
constitucional. (Tese) Doutorado em Direito. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012 .p. 55.
250 Ibidem, p. 55.
251 FERRAZ, Sérgio;; DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. 3 ed., ver. e ampl. São
Paulo: Malheiros, 2012, p. 222.
A audiência pública tem função consultiva e, na concepção de Perez, é de caráter não vinculante. Segundo o autor, o caráter das audiências públicas “é meramente opinativo”.253
Entretanto, tal caráter não é absoluto. Como são criadas por lei, esta é que lhe preceituará a forma e a eficácia vinculatória.254
A despeito da eventual não vinculação, comungamos do entendimento de Ferraz e Dallari, segundo o qual, caso não seja acolhida a proposta da sociedade ou sejam rejeitadas as sugestões por ela apresentadas e discutidas na audiência pública, a decisão administrativa a ser adotada deve ser expressa, fundamentada e motivada, apontando os motivos da rejeição, sob pena de nulidade.255
De qualquer modo, a audiência pública representa sempre uma aproximação, uma relação dialógica entre a sociedade e o Estado, o que é extremamente fecundo para a formação das decisões políticas e para as diretrizes administrativas a serem adotadas.