5 A PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA NA ATIVIDADE REGULATÓRIA E A RESPONSIVIDADE DAS AGÊNCIAS REGULADORAS
5.1 A participação democrática na atividade regulatória
Mencionamos acima que o Estado tem o dever de tutelar a qualidade e a eficiência dos serviços públicos prestados, bem como de algumas atividades econômicas stricto sensu210 (saúde suplementar e vigilância sanitária), e o faz mediante regulação e controle exercido precipuamente pelas agências reguladoras.
Apartando de nossa análise os mecanismos de participação pelas vias judicial e legislativa, outra forma de controle e regulação é a exercida por distintos órgãos, cada qual mediante os instrumentos que lhe são instituídos por lei, como o Ministério Público, a Defensoria Pública, as associações de consumidores e usuários (que devem ser constituídas com a finalidade de defender seus interesses e de participar da elaboração de decisões administrativas que os afetem, além de promover a correção dos atos lesivos que os impactam), bem como por outros instrumentos de participação popular na Administração Pública, como os Conselhos e Comissões Participativas, as Audiências Públicas, as Consultas Públicas, o Orçamento Participativo,211 as Ouvidorias, o Direito de Reclamação, a Coleta de Opinião e o Debate Público.
A participação democrática é um modo eficaz de se efetivar as aspirações sociais. A democracia representativa direta não basta para atender as demandas de uma sociedade cada vez mais complexa e plural;;212 outras formas democráticas
210 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo
econômico. 3 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 274.
211 Orçamento participativo é instituto não vinculante ou de técnica consultiva (meramente opinativo)
que “tem o objetivo de preparar, sob a condução da Administração, o projeto de lei orçamentária enviado pelo Executivo ao Legislativo. Compreende a realização de seguidas audiências públicas, geralmente regionalizadas, por vezes acompanhadas de eleição de representantes para diferentes conselhos deliberativos”. PEREZ, Marcos Augusto. A administração pública democrática. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 179.
212 ALÁRCON, Pietro de Jesus Lora. Ciência política, Estado e Direito Público. Uma introdução ao
devem ser implementadas para assegurar o exercício da cidadania, não sob a forma de simples informação e consulta, mas num nível de participação em que o cidadão (usuário e/ou consumidor) possa ser também o protagonista na gestão dos serviços públicos e das atividades econômicas consideradas sensíveis para a qualidade de vida ou para o bem-estar geral.
Nesse sentido, a Constituição Federal se concretiza na democracia participativa, “essa estrada que conduz o povo ao pleno e eficaz e adequado exercício de sua vontade soberana”.213 Essa é a base da Teoria Constitucional da Democracia Participativa, proposta por Paulo Bonavides. Segundo o autor, quatro princípios constitucionais compõem os pilares da democracia participativa: o princípio da dignidade humana, o princípio da soberania popular, o princípio da soberania nacional e o princípio da unidade da Constituição.214
A democracia assim considerada mantém o princípio da vontade popular, não só no controle dos órgãos de decisão política, mas igualmente no controle dos órgãos de decisão econômica.
Trata-se do denominado accountability social, que funciona como um instrumento de controle e responsabilização das ações dos agentes públicos na formação e implementação das políticas públicas e, no caso, das políticas regulatórias. Assim sendo, revela-se também como um meio de manter íntegra a democracia representativa, pois, como nos lembra Heinen, ela “se fragiliza sobremaneira quando não possui instâncias de controle e de participação cidadã. Quanto maior o accountability social, mais sólido será esse regime”.215
Segundo Odete Medauar, só representam um controle social, ainda que na acepção ampla do termo, aqueles mecanismos que permitem que a Administração “corrija ou evite inadequações nos seus atos ou omissões, e também suscitam a
213 BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. Por um Direito
Constitucional de luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade. 3 ed., São Paulo: Malheiros, 2008, p. 02.
214 Ibidem, p. 10.
215 HEINEN, Juliano. Comentários à Lei de acesso à informação: Lei 12.527/2011. Belo Horizonte:
atuação dos órgãos de controle”.216 Assim, a participação do cidadão, “isolado ou mediante associações”, só será considerado controle, quando sua atuação se referir “a decisões já tomadas, a decisões em vias de doção, com o intuito de verificar ou provocar a verificação da sua legalidade, moralidade, impessoalidade, economicidade, conveniência e oportunidade etc.”217 A autora, Mencionando Helio Saul Mileski, para quem, “no controle social, ‘aliado do controle oficial’, o cidadão é ‘o executor do controle’, daí ligar-se à participação e à transparência”,218 argumenta que “um dos meios de efetivação da transparência e do controle se encontra no acesso a informações relativas a atuações, planos, projetos, orçamento e despesas,”219 que é previsto no inciso XXXIII do art. 5º e em outros dispositivos da Constituição Federal, e regulada pela Lei Federal no 12.527, de 18.11.2011.
O princípio da participação é inerente à ideia de Estado Democrático de Direito, delineado no Preâmbulo da Constituição de 1988 e previsto logo em seu artigo 1º. Além disso, sua aplicação na gestão e no controle da Administração Pública é expressa em diversos dispositivos constitucionais, especialmente na parte em que alude à ordem social.
Comentando sobre a participação popular na Administração Pública, Dinorá Adelaide Musetti Grotti ensina que o princípio da participação, que hoje se encontra em desenvolvimento, tem sua origem em inúmeros textos legislativos concernentes aos serviços públicos de vários países, “associando os usuários à definição das regras de organização e de funcionamento dos serviços públicos, para que possam corresponder às suas necessidades concretas”,220 consubstanciando-se em uma solução “mais satisfatória e eficiente para a promoção dos direitos fundamentais”.221
216 MEDAUAR, Odete. Controle da Administração Pública. 2 ed., rev., atual. e ampl. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 177.
217 Ibidem, p. 176.
218 MEDAUAR, Odete apud MILESKI, Helio Saul. Controle social: um aliado do controle oficial,
Interesse Público, ano VIII, no 36, mar.-abr. 2006, p. 86-89.
219 MEDAUAR, Odete. Controle da Administração Pública. 2 ed., rev., atual. e ampl. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 176.
220 GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. A situação jurídica do usuário dos serviços públicos In
OSÓRIO, Fábio Medina;; SOUTO, Marcos Juruena Villela (Org.). Direito Administrativo: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 309-342.
Basicamente todos os instrumentos da democracia participativa na Administração Pública decorrem de dois direitos fundamentais: o direito de petição (art. 5º, XXXIV, letra a), que inclui o direito de obter certidões das repartições públicas (art. 5º XXXIV, letra b), e o direito à informação, (art. 5º, XIV), notadamente o direito à informação administrativa (art. 5º, XXXIII). A visibilidade do poder, a transparência da Administração, alçada a princípio constitucional, representa o “baluarte do Estado Democrático de Direito, na medida em que impõe um dever de ‘pureza’ das relações entre o Estado e a sociedade.”222
Outros dois princípios constitucionais, que asseguram a realização dos direitos fundamentais na ordem democrática também devem ser incluídos como essenciais para o pleno exercício da democracia participativa: o princípio do devido processo legal (art. 5º. LIV) e, especialmente, o devido processo legal na seara administrativa, que envolve também os princípios da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, LV).
A Constituição Federal, além de fornecer a base principiológica do exercício da democracia participativa, também alude, em seu texto, a vários instrumentos e/ou mecanismos através dos quais ela pode ser operacionalizada, bem como prescreve em quais situações e em que setores a comunidade deve tomar parte.
O art. 37, § 3º, da Constituição Federal, com a redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional no 19/1998, estipula algumas formas de participação do usuário na Administração Pública direta e indireta, as quais deverão ser disciplinadas por lei. Os incisos I, II, e III do referido parágrafo arrolam as seguintes formas: (i) o direito de reclamação do usuário, relativa à prestação do serviço público em geral, (ii) a manutenção do serviço de atendimento ao usuário, (iii) a avaliação periódica da qualidade dos serviços e (iv) a disciplina de representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na Administração Pública.
Ou seja, o serviço de reclamação à disposição do usuário e do consumidor é obrigatório e a avaliação periódica (interna e externa) dos serviços há que ser
222 HEINEN, Juliano. Comentários à Lei de Acesso à informação: Lei nº 12.527/2011. Belo Horizonte:
viabilizada por lei. No caso, a regulamentação é determinada pela Lei no 9.074/95 que, ao estabelecer normas sobre a outorga e prorrogações das concessões e permissões de serviços públicos, em seu art. 33 estipula que em cada modalidade de serviço público seu respectivo regulamento deverá dispor sobre as formas de participação do usuário na fiscalização e controle do serviço, com a obrigação de divulgar informação e relatório sobre o serviço prestado.
Esse rol do § 3º, do art. 37, é apenas exemplificativo, balizador das prioridades que deverão ser adotadas pela Administração Pública para a efetiva participação dos usuários e consumidores.
Outros dispositivos constitucionais preveem a participação da sociedade na tomada de decisões administrativas, tais como o art. 14 (faz referência ao plebiscito, ao referendo e à iniciativa popular, os quais estão regulamentados pela Lei no 9.709/98);; o art. 58, § 2º, II (dispõe sobre a necessária criação de comissões permanentes e temporárias, pelo Congresso Nacional e por suas Casas, que terão competência para realizar audiências públicas com entidades da sociedade civil);; o art. 187, caput (alude à participação efetiva de todos os envolvidos nos setores de produção, comercialização, armazenamento e transportes, na política agrícola);; o art. 194, parágrafo único (impõe a participação da sociedade na seguridade social);; o art. 198, III (destaca a participação da comunidade nas ações e serviços de saúde - SUS);; o art. 204, II (confere à população o direito de participação na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis, na área de assistência social, por meio de organizações representativas);; o art. 206, VI (dispõe sobre a aplicação do princípio da gestão democrática do ensino público);; o art. 216, § 1º (inclui a colaboração da comunidade na promoção e proteção do patrimônio cultural brasileiro).
A cooperação das associações representativas no planejamento municipal (art. 29, XI, da CF), a participação da população nos projetos de lei de interesse específico dos Municípios (art. 29, XII, da CF) e os orçamentos participativos também se destacam nessa seara (art. 165, § 5º, da CF). Estes últimos podem ser aplicados às agências reguladoras. Trata-se de instituto não vinculante, mas que tem sido muito utilizado por vários municípios e pelos Estados.
Outro dispositivo importantíssimo que indica a participação do usuário na gestão dos serviços públicos é o art. 175, da Constituição Federal. O seu parágrafo único prevê que a lei disporá sobre o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviço público, bem como os direitos dos usuários, a política tarifária e a obrigação de manter serviço adequado.
Nessa senda, quanto aos serviços públicos prestados por concessionárias e/ou permissionárias, dispõe a Lei no 8.987/95 em seus artigos 3º, 7º, II, IV e V, 29, XII e 30, parágrafo único, sobre as regras relativas à fiscalização e ao controle do serviço concedido e à cooperação do usuário,223 sobre os direitos e obrigações dos usuários, notadamente o de receber serviço adequado, e de receber do poder concedente e da concessionária as informações necessárias para a defesa de seus direitos e interesses (individuais ou coletivos);; sobre o direito de reclamar e de levar ao conhecimento do poder público e da concessionária as irregularidades referentes ao serviço prestado e de comunicar às autoridades competentes os atos ilícitos praticados pela concessionária na prestação do serviço. Além disso, a referida lei trata de incumbir ao poder concedente a tarefa de estimular a formação de associações de usuários para a defesa de interesses relativos ao serviço, bem como a de fiscalizar o serviço através de órgão técnico ou por entidade com ele conveniada e por comissão composta por representantes do poder concedente, da concessionária e dos usuários.
A Lei no 9.784/99, que disciplina o procedimento administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, também cuida da participação do administrado. Estabelece que, de forma direta ou através de organizações e associações legalmente reconhecidas, o administrado poderá participar da tomada de decisões quando a matéria do processo envolver assunto de interesse geral. Os arts. 31, 32 e 33 da referida lei preveem que antes da decisão do pedido poderão ser admitidas “manifestações de terceiros”, mediante consulta pública, audiência pública ou outros meios de participação do administrado, cujo procedimento deverá ser objeto de divulgação pelos meios oficiais, concedendo-se vistas dos autos e prazos para
223 GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. A situação jurídica do usuário dos serviços públicos In
OSÓRIO, Fábio Medina;; SOUTO, Marcos Juruena Villela (Org.). Direito Administrativo: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 309-342.
oferecimento de alegações escritas. Tudo, claro, se não houver prejuízo para a parte interessada, sendo certo que conforme dispõe o § 2º, do art. 31, “o comparecimento à consulta pública não confere, por si, a condição de interessado do processo, mas confere o direito de obter da Administração resposta fundamentada, que poderá ser comum a todas as alegações substancialmente iguais”. Nesse sentido, é dever da Administração proceder de forma transparente quanto à forma e ao objeto do processo administrativo, sem olvidar, todavia, de dar guarida aos princípios relativos à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas envolvidas.
Tais dispositivos estimulam e até exigem a participação da sociedade no processo regulatório. Esses são entendidos como os “novos mecanismos de legitimação” da Regulação Estatal.224
Enfim, além da previsão expressa dos vários instrumentos de participação democrática, como audiências públicas, consultas públicas, orçamento participativo, ouvidorias, outros canais de aproximação da Administração Pública com os administrados devem ser abertos a fim de que prevaleça a legitimidade democrática. Nessa modalidade podem ser citados os canais de reclamação, de denúncia, os comitês estratégicos e outros que garantam a informação e a transparência sobre os serviços prestados.
Trata-se, na interessante análise de Moreira Neto sobre o Direito Administrativo global e o ordenamento jurídico moderno, de novas formas de o Estado buscar a concretização dos ideais democráticos. Impõe-se ao Estado um “reposicionamento” face às novas relações da autoridade governante com a sociedade, em que prevalece a democracia substancial,225 a se estabelecer um
224 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo
econômico. 3 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 104.
225 A democracia substancial, segundo o autor, “se realiza, fundamentalmente, pela permanente
instilação de valores, interesses, necessidades e aspirações na ação governamental, bem como pelo constante acompanhamento e controle exercido diretamente pela sociedade ou indiretamente por órgãos neutrais, constitucionalmente independentes, instituídos no Estado para esse fim”. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. O futuro do Direito Administrativo no policentrismo de suas fontes – O Direito Administrativo global e os rumos do ordenamento jurídico pós-moderno. In BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio;; FERRAZ, Sérgio;; ROCHA, Silvio Luis Ferreira da;; SAAD, Amauri feres. (Coords.). Direito Administrativo e Liberdade. Estudos em homenagem a Lúcia Valle de Figueiredo. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 340.
“Estado do diálogo”, que deve se comportar de forma interativa entre todos os órgãos, públicos e privados;; um Estado em que todos os cidadãos, participem das decisões estatais, a quais “se tornarão não apenas legais, mas sobretudo legítimas, no sentido de que aplicam o poder estatal harmonicamente com a percepção dos valores, interesses, necessidade e aspirações do grupo nacional.”226
A atividade regulatória não pode ser uma ameaça às formas democráticas da sociedade;; uma estrutura de poder onde “o Estado é tudo e a Nação civil muito pouco”, é autoritarismo repugnante e incompatível com o modelo de Estado social e democrático.227
E é através do aprimoramento do controle social, com a participação direta ou indireta dos usuários e consumidores, como destinatários finais dos serviços públicos ou das atividades econômicas consideradas relevantes, prestadas pelas concessionárias ou empresa privadas, é que se alcançará um nível de aproximação desejável entre o poder público, a empresa prestadora do serviço e o usuário e/ou consumidor. Como anuncia Grotti, o amadurecimento cultural e o aprimoramento dos instrumentos de controle social compõem a plataforma sobre a qual será construído “um novo modelo de relações prestadores x usuários”.228
5.2 A responsabilidade democrática e a responsividade das agências