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209251386 Franca Andrea e Lopes Denilson Cinema Globalizacao e Interculturalidade

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Cinema, globalização

e interculturalidade

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Cinema, globalização

e interculturalidade

Andréa França Denilson Lopes (Orgs.)

A^GoJ-E d i t o r a da U n o c h a p e c ó Chapecó, 2010

(4)

UNOCHAPECÓ

UNIVERSIDADE COMUNITARIA DA REGlAO DE CHAPECÓ

Reitor: Odilon Luiz Poli

Vice-Reitora de Ensino, Pesquisa e Extensão: Maria Luiza de Souza Lajús Vice-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento: Claudio Alcides Jacoski

Vice-Reitor de Administração: Sady Mazzioni

Diretor de Pesquisa e Pós-Graduação

Stricto Sensu

: Ricardo Rezer

© 2010 Argos Editora da Unochapecó

Este livro ou parte dele não podem ser reproduzidos por qualquer meio sem autorização escrita do Editor.

791.4309 Cinema, globalização e interculturalidade / Andréa França, C574 Denilson Lopes (Orgs.); - Chapecó, SC: Argos, 2010.

401 p. (Grandes Temas ; 6)

Contém artigos traduzidos do inglês para o português. Inclui bibliografia.

1. Cinema - História e crítica. I. França, Andréa. II. Lopes, Denilson. III. Título.

CDD 791.4309

ISBN: 978-85-7897-004-8 Catalogação Daniele Lopes CRB 14/989

Biblioteca Central Unochapecó

A^Goj-E d i t o r a d a U n o c h a p e c ó

Conselho Editorial:

Carla Rosane Paz Arruda Teo, César da Silva Camargo, Érico Gonçalves de Assis, Maria Assunta Busato,

Maria dos Anjos Lopes Viella, Maria Luiza de Souza Lajús, Murilo Cesar Costelli, Ricardo Rezer,

Rosana Maria Badalotti, Tania Mara Zancanaro Pieczkowski Coordenadora:

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Sumário

Apresentação 9

MÓDULO I Cinema mundial, cinema intercultural

Baraka

: o cinema mundial e a indústria cultural global 17

Martin Roberts

O cinema intercultural na era da globalização 43

Hudson Moura

Identificando o conceito de cinema transnacional 67

Vicente Rodríguez Ortega

Paisagens transculturais 91

(6)

MÓDULO II

Cinema, periferia e hibridismo

Para além do Terceiro Cinema: estéticas do hibridismo 111

Robert Stam

Situando o cinema com sotaque 137

Hamid Nafícy

Outras margens, outros centros: algumas notas 163 sobre o cinema periférico contemporâneo

Angela Prysthon

MÓDULO III

Enunciados de nacionalidade e

imaginários transnacionais

Cinema chinês no novo século: perspectivas e problemas 179

Yingjin Zhang

Canibais viajantes 193

Anelise Reich CorseuiJ e Renata R. Mautner Wasserinan

Imagens de itinerância no cinema brasileiro 219

(7)

MÓDULO IV

Recepção e audiência

Dialeto e modernidade no cinema 245 sinófono do século XXI

Sheldon Lu

O cinema na África: dos contos ancestrais 267 às mistificações cinematográficas

Mahomed Bamba

História, tragédia e farsa:

The Presidents last

281

bang

nos circuitos dos festivais de cinema

Leo Goldsmith

MÓDULO V

Nas fronteiras da memoria,

do desejo e do afeto

A memoria das coisas 309

Laura U Marks

A dialética da identidade transnacional e o desejo 345 feminino em quatro filmes de Claire Denis

(8)

o que vi quando te vi? Os diários de 371 viagem sul-americanos na França

Andrea Molfetta

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A presentação

Esta coletânea não é apenas um somatório de artigos dedi­ cados ao tema que a intitula. Ela pretende ser um registro de pen­ samentos e questões sobre as imagens contemporâneas, sobretu­ do o cinema, permeadas pelas experiências de estrangeiridade, ambivalência, estranhamento, nomadismo, desenraizamento. A diversidade de abordagens sobre o tema é esclarecedora: há uma compreensão do desafio político e estético que é colocar em cena hoje aquilo que desaparece cotidianamente diante de to­ dos nós, isto é, a memória coletiva, a possibilidade de um mundo comum que possa incluir aqueles que dele estavam excluídos por diferentes razões.

Se o cenário contemporâneo - globalizado, midiático, digi­ tal - tem tematizado de forma ampla e contundente questões de identidade individual, cultural, nacional, este livro quer pensar esse quadro

de dentro do cinema feito na década de 1990 em diante.

Em outros países, já existem diversas publicações dedicadas ao tema da interculturalidade, da dinâmica da globalização e do cinema. No Brasil, ainda há uma insuficiência de bibliografias nesse campo,

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com poucas exceções, como o livro

Crítica da imagem eurocêntrica,

de Ella Shohat e Robert Stam (2002). Nesse sentido, uma das preo­ cupações que nortearam a coletânea foi justamente a de suprir essa lacuna. Trazer essa discussão para o âmbito do cinema significou colocar em relevo as seguintes interrogações: de que modo os pro­ cessos de globalização das economias, o progresso e a expansão das tecnologias da comunicação, a intensificação do fenômeno da hibridação cultural, o questionamento dos centros hegemônicos (Europa, EUA), o enfraquecimento das fronteiras nacionais têm afe­ tado os produtos e as obras audiovisuais? A transnacionalização do capital, da produção audiovisual e dos espectadores auxilia na ela­ boração de novas propostas estéticas ou tende a consolidar produ­ tos homogeneizados e desvitalizados? Como as novas cinemato­ grafias (Ásia, Europa do Leste etc.) têm afetado e redefinido o pen­ samento e a prática do cinema e do audiovisual contemporâneo?

Tais perguntas auxiliam na compreensão e no que está em jogo na proposta deste livro, composto pela reflexão de professo­

res e pesquisadores de diferentes campos teóricos e nacionalida­ des, que buscam pensar as representações, os valores e os sentidos que as imagens - de nomadismo, fronteira, hibridismo, diáspora - trazem consigo e, ainda, a noção ampla, polêmica e instigante de cultura - tomada aqui não como essência fundadora e definitiva de um povo, mas como um composto híbrido e múltiplo de vozes, histórias e narrativas. Mais do que nunca, o cinema contem­

porâneo tem uma contribuição a dar a essa discussão quando cria narrativas dissonantes da TV globalizada e imagens que instauram tensões e imprevisibilidade, pois no centro dessas representações existem as relações intersubjetivas - ator/personagem/espectador

nem sempre essas narrativas são assim dissonantes.

(11)

relações que só podem ser experimentadas e analisadas a partir de outros cânones não industriais-mercantis.

Os artigos presentes neste livro, alguns

publicados fora do Brasil, mas inéditos por aqui, foram agrupados em cinco módulos distintos:

Módulo I: Cinema mundial, cinema intercultural

Ao abordar a emergência do imaginário global através do ci­ nema e sua relação com as dimensões culturais da globalização eco­ nômica, este módulo traz contribuições conceituais e metodológicas aos temas correlatos à inter e à transculturalidade no cinema. Além disso, reavalia conceitualmente as inúmeras e diferentes abordagens sobre o papel dessas imagens na produção de identidades e imagi­ nários culturais transnacionais. Interessa, nessa primeira parte, focar e discutir os m omentos em que as diferenças culturais - explora­ das nos filmes mais diversos, como

Felizes Juntos

(Wong Kar Wai),

Encontros e desencontros

(Sofia Coppola),

Paradise Now

(Hany Abu-Assad) - estão a serviço de uma política transnacional mais ampla e não simplesmente no espaço engajado e militante do ter- ceiro-mundismo. Contamos com a colaboração de Martin Roberts

{New School for Social Research),

com “

Baraka

: o cinema mundial e a indústria cultural global”; de Hudson Moura (PUC-SP), com uO cinema intercultural na era da globalização”; de Vicente Rodriguez Ortega (NYU), com “Identificando o conceito de cine­ ma transnacional”; e de Denilson Lopes (UFRJ), com “Paisagens transculturais”.

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Módulo II: Cinema, periferia e hibridismo

A partir de abordagens teóricas e conceituais distintas, dis­ cute-se a emergência de cinemas “menores” ao longo da década de

1990, evidenciando, porém, que, sob essa e outras nomenclaturas, não há nenhuma unidade estética, temática ou política. Há o pres­ suposto de que, para usufruir de fato das imagens do cinema con­ temporâneo, faz-se necessário relacionar os aspectos históricos e sociais que consolidaram a ideia de Terceiro Mundo e os fenôme­ nos culturais que fizeram parte desse contexto. Discutem-se filmes como

Central do Brasil

(Walter Salles),

Amores Brutos

(Alejandro González Iñarritú),

Cronicamente inviável

(Sergio Bianchi), entre outros. Contamos com os artigos de Robert Stam (

New York

University)

> “Para além do Terceiro Cinema: estéticas do hibridismo”; de Hamid Naficy (

Northwestern University

), “Situando o cinema com sotaque”; e de Angela Prysthon (UFPE), “Outras margens, outros centros: algumas notas sobre o cinema periférico contem­ porâneo”.

Módulo III: Enunciados de nacionalidade e imaginários transnacionais

Discute-se, neste módulo, a invenção dos enunciados de nacionalidade no cinema, suas continuidades, seus deslocamen­ tos e suas rupturas históricas e culturais. Trata-se de analisar, atra­ vés de diferentes abordagens teóricas, que formas de imaginário identitário e nacional estão em jogo na produção das imagens contemporâneas, tanto na China quanto no Brasil. Em comum, na leitura crítica e na experiência dos filmes, há o pensamento da nação como uma dimensão não totalizável, o propósito de

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desleitura do passado na invenção do novo, a afirmação de um essencial inacabamento presente em tais enunciados que nos inter­ pela. Contamos com Yingjin Zhang

(University o f California

- San Diego), “Cinema chinés no novo século: perspectivas e problemas”; Anelise Reich Corseuil (UFSC) e Renata R. Mautner Wasserman

(Wayne State University

), “Canibais viajantes”; e Andréa França (PUC-Rio), “Imagens de itinerância no cinema brasileiro”.

Módulo IV: Recepção e audiência

Neste módulo, os autores exploram as relações profícuas, ainda pouco estudadas dentro das universidades brasileiras, entre a projeção do filme e suas formas de recepção, isto é, a projeção cinematográfica de imaginário nacional e os modos de circulação social dessas imagens, seja em função dos festivais de cinema inter­ nacionais, das formas de coprodução transnacionais ou dos diver­ sos dialetos que porventura integram e fazem parte do mesmo país. Trata-se de pensar de que modo a projeção do filme se duplica, cir­ culando entre a tela da sala e a tela mental do espectador. Duplo sentido da palavra “tela”, em que o movimento do filme em direção ao outro, à audiência, colabora de forma errática, porém decisiva, na construção de imaginários de pertencimento. Contamos com os artigos de Sheldon Lu

{University o f California -

Davis), “ Dialeto e modernidade no cinema sinófono do século XXI”; Mahomed Bamba (UFBA), “O cinema na África: dos contos ancestrais às mis­ tificações cinematográficas”; e Leo Goldsmith

{New York University

), “Historia, tragédia e farsa:

The Presidents last bang

nos circuitos dos festivais de cinema”.

(14)

Módulo V: Nas fronteiras da memória, do desejo e do afeto A proposta dos três artigos deste módulo é explorar e com­ preender o lugar da memória e dos afetos nas imagens do cinema transcultural. Entende-se que a questão da memória é definida num jogo constante de posicionamentos no espaço e no tempo, de des­ locamentos e de contato/ação entre sujeitos, sendo esse universo de reposicionamentos contínuos o próprio terreno da experiência. Algumas imagens do cinema transcultural trazem consigo, tornam visível e constroem efetivamente memórias perdidas, afetivas, subterrâneas, históricas. Essas imagens dizem respeito à subjetivida­ de daqueles que nelas estão envolvidos e, nesse sentido, abrem uma janela sobre o interior complexo dos seres (personagens e especta­

dores). Contamos com Laura U. Marks

(Simon Fraser University

), “A memória das coisas”; Rosanna Maule

(Concordia University

), “A dialética da identidade transnacional e o desejo feminino em qua­ tro filmes de Claire Denis”; Andrea Molfetta (UBA), “O que vi quan­ do te vi? Os diários de viagem sul-americanos na França”.

(15)

MODULO I

Cinema mundial,

cinema intercultural

(16)
(17)

Baraka:

o cinema mundial e a

indústria cultural global*1

M artin Roberts

Encolhendo o planeta

Após três mil anos da crescente valorização da especialização e alienação nas extensões tecnológicas dos nossos corpos, nosso mundo comprimiu-se de forma dramática. Eletricamente reduzido, o globo não é mais que uma aldeia.

Marshall McLuhan2

Desde o m om en to em que M arshall M cLuhan proclam ou que as com unicações tecnológicas tinham “ reduzido” o m un do eletricam ente à d im en são de u m a aldeia global, parece que o planeta Terra tem encolhido: a TV via satélite, os program as de milhagem das com panhias aéreas e, é claro, a internet estão “ trans­

* Tradução de Raquel Maysa Keller, f N.T.: quando havia edição brasileira das obras citadas, optou-se pela tradução já feita e utilizada na publicação).

1. Este texto é uma versão traduzida e reduzida do artigo “Baraka: World Cinema and the Global Culture Industry”. Cinema Journal, v. 37, n. 3, p. 62-82, primavera 1998. 2. McLuhan, Marshall. U nderstanding M edia. New York: McGraw Hill, 1964.

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formando o mundo num lugar menor”. Trinta anos depois do li­ vro

Meios de comunicação como extensões do homem

, a aldeia global se tornou um lugar-comum, e McLuhan foi canonizado, pela revista

Wired\

como um profeta visionário de um mundo no qual a distância já não importa mais. Os comerciais de TV mos­ tram famílias conversando ao celular com parentes do outro lado do planeta, ou membros de uma tribo africana, felizes, usando

notebooks.

Este texto considera os impactos dessas evoluções no âmbi­ to cinematográfico. Por um lado, a história do cinema se confun­ de, desde o início, com processos globais do colonialismo até suas consequências pós-coloniais. Atualmente, o cinema se tornou uma forma de cultura global, porém diferente em suas manifestações locais. Ao mesmo tempo, o discurso de McLuhan da aldeia global tanto reflete quanto empresta um ímpeto adicional ao apareci­ mento de uma ideia imaginária do “mundo”, e este imaginário global, como veremos adiante, tem assumido grande importância no cinema contemporâneo. O cinema atual tem um papel signifi­ cativo na articulação e na perpetuação do que poderia ser chama­ do de mitologias globais: discursos ideológicos sobre o mundo e a sua relação com a humanidade.

Ultimamente a crescente atenção em relação ao que ora é chamado de “cinema mundial” ora de “cinema global” parece curi­ osa, já que a produção cinematográfica, a distribuição e o consu­ mo têm sido um assunto global. Há inúmeros estudos sobre a indústria do cinema não ocidental, e o “Cinema Mundial” é abor­ dado atualmente como a “Literatura Mundial” foi estudada, na língua inglesa, em departamentos, antes do advento dos estudos

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pós-coloniais/ Ainda que as indústrias cinematográficas, em mui­ tas partes do mundo, permaneçam com intenso caráter nacional, a atividade comercial de produção e de consumo cinematográficos é, também, de natureza transnacional, como bem sabe todo o afri­ cano que cresceu vendo filmes de faroeste, musicais indianos, filmes de arte marcial. Os estudos feitos até agora, como artigos sobre a colonização mundial das telas de cinema por Sylvester Stallone e Arnold Schwarzenegger, deixam claro que o comércio transnacional de norte a sul, do oriente ao ocidente é uma questão extremamente unilateral, mas tal ponto de vista (se é que algum dia foi verdadeiro) está se tornando ultrapassado, já que se mostra cada vez mais evidente que o comércio cultural é agora bilateral. Em muitos casos, na verdade, decidir realmente de “onde” um fil­ me é e para “quem” ele é direcionado está ficando cada vez mais com plicado: um film e de um diretor do Senegal pode ser coproduzido com dinheiro alemão e suíço, editado em Zurique e, mais provavelmente, ser exibido para grandes públicos em Nova Iorque e não em Dakar.4 O cinema transnacional, os filmes de co­ munidades diaspóricas que vivem em cidades cosmopolitas do Primeiro Mundo, se tornou um gênero em proliferação, que com­ pete com cinemas nacionais mais antigos.5

3. Ver, por exemplo: Armes, Roy. Third World Film A hiking und the West. Berkeley: University of California Press, 1987.

4. Aqui estou pensando no filme Hyènes(1992) de Djibril-Diop Mambety.

5. Ver, por exemplo: Naficy, Hamid. Phobic Spaces and Liminal Panics: Independent Transnational Film Genre. In: Wilson, Rob; Dissanayake, Wimal (Eds.). Global/

Local: cultural production and the transnational imaginary. Durham, NC: Duke University Press, 1996. p. 119-144.

(20)

Enquanto m uita atenção foi dedicada ultim am ente ao surgimento de cinemas transnacionais e de diaspora, deu-se me­ nos atenção ao impacto da globalização sobre o filme europeu e estadunidense. Tenho em mente aqui o número crescente de filmes desde 1960 que são, de formas diferentes, sobre algo chamado o “próprio mundo”. Entre eles se destacam

Mondo Cane,

de Gualtiero Jacopetti e Franco Prosperi (1963);

Sans Soleii\

de Chris Marker (1982);

Powaqaatsiy

de Godfrey Reggio (1988);

A té o Fim do

M undo

, de Wim Wenders (1991);

Uma N oite sobre a Terra

, de Jim Jarmusch (1991);

Planeta Azul,

da IMAX (1991). Ao mesmo tempo em que os filmes em questão pertencem a cinemas nacio­ nais diferentes, a gêneros de filmes diferentes e dirigem-se a pú­ blicos diferentes, eles compartilham um a preocupação temática com a globalização, com as novas formações culturais da ordem mundial pós-colonial, e se esforçam para enquadrá-las em um a visão totalizante do “mundo”. Concentro-me aqui em filmes des­ se tipo.

O filme específico que discutirei detalhadamente é

Baraka

(EUA, 1992), filme de longa duração, documentário sem palavras dirigido e film ad o p o r R on Fricke e p ro d u z id o p o r M ark M agidson.6 Explicitamente inspirado pelos trabalhos do mitólogo Joseph Campbell e filmado em 24 países, o filme apresenta um retrato global do mundo e seus povos.

Baraka

é o último filme de

6. “ Uma palavra sufista antiga com form as em m uitas línguas”, o anúncio promocional do filme explica, o termo baraka “pode ser simplesmente traduzido como uma bênção, ou como a respiração, ou essência da vida a partir da qual o processo de evolução é revelado.”

(21)

uma série de projetos relacionados com os quais Fricke esteve envolvido desde o início da década de 1980, incluindo os filmes

Koyaanisqatsi

(1983) e

Powaqaa

fc/ (1988) de Godfrey Reggio, dos quais ele foi o produtor e, mais recentemente,

Chronos

(1985), filmado em oito países, que ele dirigiu e que foi, de alguma forma, um protótipo para

Baraka.

Embora tenha sido distribuído em mais de 20 países e tenha recebido muitas resenhas na mídia popular,

Baraka

foi virtual­ mente ignorado pelos estudiosos acadêmicos de cinema.7 Pode­ ríamos atribuir isso à novidade de seu lançamento, ao número absoluto de filmes competindo pela atenção do estudioso hoje ou a sua relativa marginalidade comparada a filmes mais rentá­ veis (um critério em si mesmo questionável). Uma das razões pelas quais o filme parece ter escorregado pelas fendas dos estu­ dos de cinema pode ser a dificuldade para localizá-lo dentro das categorias usuais de gênero existentes na análise fílmica. Os pro­ blemas começam simplesmente ao tentar definir exatamente que tipo de filme

Baraka

é. Ainda que orgulhosamente pertença a uma categoria geral de documentário ou filme não narrativo, dife­ rentemente da maioria dos documentários, ele foi distribuído com ercialm ente, e seu tem po de film agem (96 m in.) mal corresponde à duração padrão do drama. Uma vez aceito como documentário, pergunta-se: que tipo de documentário? Bill Nichols distingue entre dois tipos de documentário: o historiográfico e o

7. O único artigo acadêmico que encontrei sobre Baraka até hoje foi a resenha de: Staples, Amy. Mondo Meditations. American Anthropologist, n. 96, p. 662-668,1994.

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etnográfico.8 O primeiro é exemplificado pelo documentário po­ lítico (incluindo filmes de propaganda), desde o trabalho de Dziga Vertov até o Terceiro Cinem a, e concebe o filme com o um catalisador para a m udança social/política. O docum entário etnográfico tem historicamente se preocupado com a docum en­ tação das cham adas sociedades ern risco de desaparecim ento ameaçadas pela modernidade global. Enquanto

Baraka

apresen­ ta semelhanças com essas categorias, sugiro aqui que não per­ tence a nenhuma e é, de muitas maneiras, oposto a cada uma delas. A fascinação de

Baraka

com as características geográficas espetaculares da paisagem natural (quedas d ’água, vulcões, des­ filadeiros profundos, arcos naturais etc.) se alinha a um gênero de documentário que Nichols não considera, o docum entário sobre a natureza, que tem sido básico na televisão estadunidense desde os filmes do Maravilhoso M undo de Disney, da década de 1950, até o

Discovery Channel.

Além das telas de televisão, os docum entários sobre a natureza têm sido m uito distribuídos através dos cinemas IMAX e Omnimax. Ainda, em bora o tema faça com que

Baraka

tenha algo em com um com tais filmes - ele foi distribuído em cópias de 70 mm. - , não foi distribuído para os cinemas IMAX. Pode-se até sugerir que

Baraka

ultrapasse as fronteiras do próprio cinema, tendo, de alguma forma, mais em comum com outras mídias, como música, pintura de paisagens ou fotografia.

8. Ver: Nichols, Bill. At the Limits of Reality (TV). In: Blurred Boundaries’, questions of Meaning in Contemporary Culture. Indiana: Indiana University Press, 1994. p. 43-63.

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Sugiro aqui que, para compreender a significância cultural de um filme como

Baraka

> precisamos ir além dos gêneros cine­ matográficos, e, até mesmo, além do próprio cinema. Isso en­ volve tratá-lo menos como um documentário, e mais como uma modalidade - cinematográfica, neste caso - de um discurso que se estende além de um espectro mais amplo de mídia e reflete processos históricos e globais culturais maiores. Embora

Baraka

seja um caso especial, ele é sintomático de processos que aconte­ cem na produção cultural hoje e, por essa razão, pode servir como um modelo útil para repensar velhos paradigmas e para elaborar direções futuras para os estudos de mídia.

Notas de campo da aldeia global

Embora nos apresente, conforme seus materiais prom o­ cionais, “Um mundo sem palavras”, i t e r a i certamente é um mun­ do

com

música: o filme inteiro é acompanhado por uma trilha sonora contínua e não inclui som sincronizado.9 A própria trilha sonora (disponível em CD) abrange gravações de campo feitas durante a filmagem; gravações de

World Music

e com sonorida­ des semelhantes, pela dupla anglo-australiana

Dead Can Dance

(Brendan Perry e Lisa Gerrard); e música eletrônica do compositor

9. Mesmo nas sequências de dança em que a música que acompanha a dança pode­ ria ter sido gravada ao mesmo tempo, a trilha sonora não ¿ “natural”; foi dublada depois. Agradeço a David Tamés por ter me mostrado isso.

(24)

f

New Age

Michael Stearns.10 Logo após o lançamento de

Baraka>

seu produtor, Mark Magidson, lançou o documentário de um concerto da dupla

Dead Can Dance

chamado

Toward The Within

(1993) - Em direção ao interior - , que inclui um videoclipe com trechos de

Baraka

. Poderíamos, então, perguntar se

Baraka

é mais bem visto como um filme com uma trilha sonora de

World Music

ou uma extensão de um vídeo de

World Music.

Se certas sequências de

Baraka

poderiam tranquilamente passar como vídeos de músi­ ca na MTV, o contrário seria igualmente verdadeiro: um videoclipe de

Deep Forest

> um projeto de dois produtores franceses que com­ bina amostras de canções de “pigm eus” da África Central com batidas de dança urbana, parece admiravelmente uma versão de cinco minutos de

Baraka.

Essa intersecção entre

World M usic t

cinema não é exclusiva de

Baraka.

Nos últimos anos, um número crescente de filmes com trilhas sonoras de

World M usic

começaram a aparecer.11 A meta­ morfose da

World M usic

nos filmes mundiais de certa forma sur­ preende. Um aspecto da integração horizontal das indústrias

10. Sobre World M usic, ver meu artigo ‘“World Music’ and the Global Cultural Economy”. In: D iaspora: A Journal o f Transnational Studies, 2.2> p. 229-242,1992. Tratando a World M usic não como uma categoria etnomusicológica, mas comer­ cial, como a música vendida na seção “ World M usic7 das principais lojas de discos do Primeiro Mundo. O artigo busca identificar algumas das condições subjacentes à emergência da World M usic como um novo tipo de mercadoria no mercado global.

1 1 .0 filme sobre música cigana de Tony Gatlif, Latcho Drom (1993), poderia ser descrito como um filme de World Music, que tem afinidades com Baraka. Até o Fim do Mundo (1993), de Wim Wenders, exibe uma trilha sonora mundial gené­ rica, incluindo canções de “pigmeus” do tipo Deep Forest.

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midiáticas da década de 1990 tem sido a relação cada vez mais simbiótica entre o cinema e a música popular, e o lugar central da

World Music

em

Baraka

pode ser visto como típico nesse sentido. A inter-relação entre a

World Music

e o cinema no caso de

Baraka

> entretanto, levanta algumas questões interessantes. Se a emergência da

World Music

como uma categoria de

marketing

maior dentro da música popular pode ser atribuída aos processos globais, tais como, a descolonização, a imigração ou a globalização do capitalis­ mo, como esses processos têm afetado o cinema? O “cinema m un­ dial” hoje emerge como uma nova categoria de cinema comercial comparável à emergência da

World M usic7.

Na ordem mundial imperial, os encontros ocidentais com seus outros colonizados foram mediados por, e grandemente confinados a, administradores (sobretudo homens) coloniais, missionários, comerciantes, cientistas naturais, antropólogos e exploradores di­ versos. O que Mary Louise Pratt chama de “zona de contato” - o espaço transcultural da troca simbólica criada pelo encontro entre os poderes coloniais do Ocidente e as pessoas originárias de suas colônias - permaneceu muito restrito aos postos do próprio colonialismo.12 Tudo isso - não deveria ser enfatizado - agora m u­

dou. No mundo pós-independência de corporações transnacionais, mercados globais de trabalho, viagens aéreas de longa distância e televisão global, nas sociedades antes separadas pelas vastas dis­ tâncias espaciais, encontram-se e convivem, de forma rotineira,

12. Pratt, Mary Louise. Os olhos Jo Império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC, 1999.

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migrantes econômicos, refugiados, exilados, diplomatas, executi­ vos, turistas. A zona de contato, antes o privilégio de relativamente poucos, passou por um processo de democratização e é hoje uma condição cultural global.

Uma consequência dessas mudanças dentro do ex-colonial, mas ainda capitalista, Primeiro Mundo tem sido a etnografização do con­ sumo de massa. Enquanto, por algum tempo, a etnografia esteve engajada num reexame crítico de seus objetivos e metodologias e na sua

razão de ser

>13 seus objetos tradicionais de estudo têm sido cada vez mais absorvidos pelas indústrias culturais contemporâ­ neas: a escrita etn ográfica se torna escrita de viagem ; a etnomusicologia,

World Music;

os artefatos etnográficos, bijuteri­ as ou mobílias étnicas; os museus etnográficos, lojas étnicas; um documentário etnográfico se torna

Baraka.

Mesmo a viagem de campo etnográfica vem sendo cooptada pela indústria cultural global na forma de

etnoturismo>

no qual os turistas de Primeiro Mundo, arm ados com

notebooks

e filmadoras, encenam fanta­ sias do Primeiro Contato com quem Dean MacCannell chama de ex-primitivos, em aldeias “tribais” cuidadosamente preservadas da Amazônia até a Indonésia.14

No século XVIII, de acordo com Mary Louise Pratt, a con­ junção histórica entre a expansão colonial europeia e os sistemas

13. Ver: Marcus, George E.; Fischer, Michael (Eds.). Anthropology'as Cultural Critique:

an Experimental Moment in the Human Sciences. Chicago: University of Chicago Press, 1986.

14. Sobre os ex-primitivos, ver: MacCannell, Dean. Cannibalism Today. In: Empty Meeting Grounds: The Tourist Papers. New York: Routledge, 1992. p. 17-73. Para urn relato prazeroso do etnoturismo, ver: O’Rourke, P. J. Up the Amazon. Rolling Stone, p. 60-72,25 nov. 1993.

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de classificação iluministas, com a possibilidade dos sistemas de im­ por um modelo unificador e padrão de significado sobre o mun­ do, levou à emergência do que ela chama de uma “consciência planetária” europeia15. No mundo da zona de contato global do final do século XX, essa mitologia eurocêntrica do mundo, fiel­ mente passada adiante pela

National Geographie

, pela

The Family

o f Man

e pelos documentários de David Attenborough, tornou-se onipresente na cultura de massa contemporânea, desde os

slogans

de “We Are The World” até as

United Colors o f Benetton.

Como o mundo tornou-se a aldeia global, parece que a cultura de massa euro-americana procurou não somente capturar, mas também comercializar a aldeia global. Os publicitários foram rápidos em reco­ nhecer que não somente os mercados globais, mas o próprio con­ ceito do global pode ser uma ferramenta de

marketing

poderosa.

No campo do cinema, os processos que descrevi talvez se­ jam mais evidentes na dissolução da dominação dos filmes do

Primeiro Mundo por Hollywood e pelos cinemas europeus. Mais do que em qualquer outro período na história do cinema, os fil­ mes disponíveis nas cidades cosmopolitas como Nova Iorque, To­ ronto, Londres, Paris ou Sidney possuem uma variedade global, em vez de somente euro-americana. Os festivais de cinema da Amé­ rica do Sul, da África e da Ásia complementam o número crescente de filmes transnacionais e da diáspora. O documentário etnográfico, antes um subcampo especializado de antropologia acadêmica, atualmente atrai grande público para eventos como o Festival Anual

(28)

Margaret Mead em Nova Iorque. Para consumidores em cidades como essas, ir ao cinema e comer fora se tornaram mais ou menos ações intercambiáveis, escolhe-se um filme como se escolhe um restaurante. É uma questão de escolha a partir de um cardápio de opções étnicas.16 Embora o público desses cinemas seja, sem dú­ vida, branco e de classe média em sua maioria, seria errôneo presumir que ele se abasteça (por assim dizer) exclusivamente de exotismo euro-americano. De fato, em cidades como aquelas que mencionei, seus públicos podem ser transnacionais como os pró­ prios filmes, e assisti-los pode ser uma maneira tanto de se reconectar com a própria cultura, quanto de satisfazer uma curio­ sidade turística sobre alguém.

Outra consequência dos processos globais que descrevo tem sido a emergência do que pode ser chamado de imaginário global dentro do filme euro-americano.

Baraka

é, de fato, somente um filme de uma série de filmes que coletivamente atestam a emergên­ cia desse imaginário global no cinema euro-americano desde a dé­ cada de 1950. Três principais categorias podem ser distinguidas: o filme de exploração global, mais bem exemplificado pelo notório

M ondo

Ckr?e( 1963); a vanguarda internacional (Wenders, Herzog,

16. Vale a pena observar nessa conexão quão frequentemente a comida é o foco central dos filmes não ocidentais ou, até mesmo, dos filmes anglo-americanos (A Festa de Ba bette, Tam pop o, Dim Sum, Como Água para Chocolate; entre inúmeros outros): é possível assistir a O Banquete de Casamento, de Ang Lee, ou a Comer Beber

Viver e comer fora em um restaurante chinês depois. Em tais casos, a diferença entre comer e assistir, consumir comida exótica e consumir filme exótico se torna virtualmente imperceptível; o consumo do exótico está presente no próprio filme.

(29)

Ottinger, Jarmusch, os irmãos Kaurismaki); e o globalism o de mesa de café de

Powaqaatsi

on

Baraka.

Cada uma dessas categorias pode ser vista como definida por um modo particular de com ­ prometimento com o mundo que retratam: o carnavalesco (fil­ mes

M ondo

), o cosmopolita (a vanguarda internacional) e o libe- ral-humanista

(Baraka

e filmes semelhantes).

Embora suas origens possam ser rastreadas até os filmes de aventura colonial da década de 1930,

M ondo Caneo,

a série cada vez mais abominável de filmes que inspirou estão entre os primei­ ros exemplos do surgimento de um imaginário global no cinema comercial euro-americano.17 O mundo que retratam é reconheci­ damente o voyeurismo de P. T. Barnum, anomalias, espetáculos de carnaval, um mundo exótico e grotesco de rituais “bizarros” e prá­ ticas culturais, sejam práticas de sociedades “civilizadas”, sejam de sociedades “primitivas.” De forma significativa, entretanto, dado que os filmes

M ondo

originais datam da década imediatamente após a independência das antigas colônias europeias,

a

m undo que retratam é tam bém um m undo em caos, no qual a frágil infraestrutura da “civilização” erguida pelos poderes europeus é varrida pela selvageria primitiva

(Africa Addio);

sua visão do m un­ do, portanto, permanece reconhecidamente neocolonial.

O cinema cosmopolita da vanguarda internacional consti­ tui um segundo modo do imaginário global cinematográfico. Nos filmes de Marker, Wenders, Herzog ou Jarmusch, toma a forma de

17. Sobre os filmes Mondo, ver: Staples, Amy. An interview with Dr. Mondo. American Anthropologist, 97.1, 1995.

(30)

um a observação m undana, um tanto cansada, um a ordem m un­ dial cada vez m ais transnacional e da m udança cultural associada com essa ordem. Paris, Berlim, Nova Iorque, Rom a, Helsinki, São Paulo, Ulan Bator: autoconscientem ente nôm ades, essas cidades e seus protagonistas despreocupados são os descendentes pós-m o- dernos de

fíâneur

de Baudelaire, cosm opolitas sem raiz procuran­ do seus cam inhos ao redor do globo em busca do sem pre novo e diferente.18 O turism o, os pon tos turísticos e os p róprios turis­ tas são tipicam ente m otivos de desdém e sátira, em bora diretores e protagonistas não sejam m enos turistas que outras pessoas. O que talvez seja in teressan te so b re os film es desse tip o é seu cosm opolitism o evidente, com seu inerente desdém em relação ao paroquialism o do nacional. O apelo a tal ideologia torna-se m ais com preensível quando lem bram os que um a das form as mais prestigiadas de consum o burguês evidente, neste século, tem sido

18. Sobre flâneur, ver: Baudelaire, Charles. O Pintor da Vida M oderna. In: C uriosida­ des E stéticas: a arte rom ântica e outras obras críticas. Paris: Classiques Garnier, 1962; e Benjamin, Walter. Charles Baudelaire: Um Lírico no Auge do Capitalismo, trad. Harry Zohn. Londres: Verso, 1983. A literatura sobre o fíânerieé extensa; para um a introdução, ver: Tester, Keith (Ed.). The Flâneur. Nova Iorque: Routledge,

1994. O flâneur nunca foi (e não é) exclusivamente masculino, é claro; e ñánerie

como um a atividade especificamente feminina no século XIX também foi bem do­ cumentada, ver: Wolff, Janet. The Invisible Flâneuse: Women and the Literature of Modernity. Theory, C ulture an d Society, edição especial sobre “ The Fate of Modernity’’, 2.3,1985; Bowlby, Rachel. Ju st Looking: Consumer Culture in Dreiser, Gissing, and Zola. London: Methuen, 1985; Wilson, Elizabeth. The Sphinx in the

City. Urban Life, the Control o f Disorder, and Women. Berkeley: University of California Press, 1991. A última encarnação do flâneur é o flâneur eletrônico, vague­ ando pela rede global de computadores da World Wide Web como sua contraparte baudeleriana vagueou na cidade do século XIX; ver: Mitchell, William J. City o f Bits:

(31)

a viagem . No cinem a de Wenders ou Jarm usch, Herzog ou Kaurismaki, o publico euro-americano de classe média pode ex­ perimentar o

glamour

do cosmopolitismo sem sair de casa, mes­ mo que o orçamento o impeça de viajar pelo mundo tão facil­ mente quanto os diretores e protagonistas parecem fazer.

O que chamei de globalismo de mesa de café de

Baraka

tem uma história mais longa tanto em relação aos filmes

M ondo

quan­ to ao cinema cosmopolita da vanguarda, estendendo-se desde a fun­ dação da

National Geographie Society

em 1888, passando pela m os­ tra fotográfica e pelo livro da década de 1950,

The Family o f Man,

de Edward Steichen, e chegando nas mitologias globais contem­ porâneas do

Discovery Channel}9

Ideologicamente, o globalismo assume a forma de um humanismo liberal, cuja metáfora quase obsessiva é aquela da

família.

Apesar de diferenças culturais, ele afirma, a raça hum ana é, no fim das contas, parte da m esm a fam í­ lia global, compartilhando um conjunto com um de experiências de vida: nascimento, morte, sexualidade, filhos, comida, amor, cren­ ça no sobrenatural, guerra. Essa ideologia, cultuada por muito tem­ po, neste século, nas mesas de café (e, desde a década de 1950, nas telas de TV) das famílias estadunidenses de classe média, de m o­ derada intelectualidade, permanece onipresente hoje, desde livros de fotos recentes à mitologia

New Age de

Joseph Campbell.

19. Para uma visão histórica geral do N ational Geographic, ver: Bryan, C. D. B. The National Geographic Society. 100 Years of Adventure and Discovery. New York: H. N. Abrams, 1987. Para uma história crítica, ver: Lutz, Catherine; Collins, Jane.

Reading N ational Geographie. Chicago: Chicago University Press, 1993. Ver tam­ bém: Steichen, Edward. The Family o f Man. New York: Simon and Schuster, 1955.

(32)

A visão panorâmica de

Baraka

sobre o natural global e a diver­ sidade cultural, sua mensagem de Mundo-Ünico, sua

esteticização

de paisagens e sociedades exóticas o situam exatamente dentro da tradi­ ção liberal-humanista da

National Geographie

e da

The Family o f

Man.

Enquanto documenta a diversidade cultural global, o filme está, ao mesmo tempo, preocupado com o molde da diversidade dentro de um humanismo demasiadamente amplo, afirmando um senti­ mento de comunidade que transcende a diferença cultural. Como a

National Geographic,

o filme de Fricke não tem medo de encarar as realidades cruéis da ordem mundial do século XX, como mostra sua passagem por Dachau, pelos campos de matança do Camboja, pelos poços com queima de petróleo no Kuwait, pela Praça Tiananmen, pelas operárias nas fábricas de cigarro na Indonésia ou pelas prostitu­ tas de Patpong e, ao mesmo tempo, evita assumir posições políticas e críticas que poderiam causar impacto sobre seu sucesso comercial, adotando o ponto de vista da “testemunha” universal. Como a

National

Geographic,

o filme parece mais preocupado com o impacto estético ou emocional de seus sujeitos do que com as histórias geopolíticas ou desigualdades econômicas relacionadas a eles. O sentimento dominante em suas sequências de desabrigo, pobreza, prostituição ou trabalho alienado é de lamento: “Se pelo menos pudéssemos perceber que somos todos parte da mesma família!”, parece dizer o filme.

Em seus artigos sobre

Baraka

e filmes

Mondo,

Amy Staples descreveu ambos como sendo “a antítese do filme etnográfico”, le­ vantando a questão da relação entre

Baraka

e filmes como

Mondo

Cane.

Quanto ao tema e à estrutura formal, os filmes aparentemen­ te têm muito em comum: como

Mondo Cane, Baraka

constrói seu

(33)

retrato do mundo através de uma estrutura não linear de colagem com cortes desconcertantes, que passam abruptamente de uma cultura a outra e com uma descontextualização radical de seus sujeitos. M esm o assim, essas estratégias são em pregadas nos dois filmes com propósitos ideologicamente opostos (se igualmente unlversalizantes): se o ponto de vista de

M ondo Cane

era essencial­ mente niilista, preocupado com a desconstrução da oposição civili­ zado/selvagem de hoje e em afirmar a barbaridade fundamental da humanidade, a visão humanista de

Baraka

da espiritualidade global o torna, de muitas formas, a antítese de

M ondo Cane.

Se

Baraka

é um descendente tardio da exibição colonial e da

National Geographic,

o filme

Mondo

(“o filho feio e bastardo do documentário e do cinemi- nha” ) é seu gêmeo demoníaco.20

As três categorias de cinema global que identifiquei deveriam ser vistas não como desenvolvimentos sequenciais, mas como ten­ dências paralelas dentro'da cultura de mídia euro-americana con­ temporânea. Longe de ser um regresso ao neocolonialism o da década de 1960, por exemplo, os filmes

M ondo

têm passado por uma renovação nos últimos anos como parte da loucura atual pelo

kitsch

exótico, de “ Filmes Incrivelmente Estranhos” até compila­ ções da música

lounge

“ Exótica” das trilhas sonoras de filmes am ­ bientados na década de 1950. Com o o exotismo autoconsciente do recente livro de cabeceira “alternativo”

Strange Ritual,

de David

20. Charles Kilgore (também conhecido como D r. Mondo), citado em: Staples, Amy. An Interview with Dr. Mondo. American Anthropologist, p. 111.

(34)

Byrne, deixa claro, os rótulos “bizarro”, “sobrenatural” e “estranho” de

M ondo

hoje estão bem vivos, ainda que de forma deslocada e irónica.210 voyeurismo exótico das décadas de 1950 e 1960 reapare­ ce na década pós-moderna de 1990 como

camp

global.

Nostalgia imperialista

Em um artigo inspirado pelos recentes filmes euro-am eri­ canos que lidam com o período colonial

(O ut o f Africa, A Passage

to India),

Renato Rosaldo sugere que tais filmes exemplificam o que ele chama de nostalgia imperialista. O objeto da nostalgia não é a antiga ordem imperial ou colonial com o tal, m as um a ordem

anteriora

ela, em que o colonialismo era responsável por erradicar a cultura tradicional e os m odos de vida das sociedades nativas. A nostalgia imperialista, de acordo com Rosaldo, consiste em com- padecer-se pela passagem do que foi destruido.22 Tal nostalgia, ele sugere, no final das contas, serve para atenuar a culpa que brota do

21. Byrne, David. Strange Ritual'. Pictures and Words. San Francisco: Chronicle Books, 1995.

22. “A nostalgia imperialista gira em torno de um paradoxo: uma pessoa mata alguém e então fica de luto pela vitima. De uma maneira mais atenuada, alguém deliberadamente altera uma forma de vida e então se arrepende porque as coisas não permaneceram como eram antes da intervenção. Em mais uma eliminação, as pessoas destroem seu meio ambiente e então adoram a natureza. Em qualquer de suas versões, a nostalgia imperialista usa uma pose de ‘anseio inocente’ não só para captar a imagi­ nação das pessoas como também para esconder sua cumplicidade com a dom ina­ ção brutal.” Rosaldo, Renato. Nostalgia Imperialista. In: Culture and Truth: The Remaking of Social Analysis. Boston: Beacon Press, 1989. p. 69-70.

(35)

comprometimento do sujeito colonial - até mesmo por responsa­ bilidade - com o estado das coisas pelas quais ele está lamentando. De

Tristes Trópicos

de Lévi-Strauss até o contemporâneo turismo étnico, a cultura euro-americana é permeada por essa nostalgia, e, como os recentes documentários sobre a criação de

Fitzcarraldo

de Herzog ou

Apocalypse N ow

de Coppola (e os próprios filmes) mostram, é igualmente difundida no cinema contemporâneo.23

A melancolia de

Baraka

em sua viagem mundial por lojas que exploram empregados, favelas, desabrigados, pobreza, casas de prostituição e cenários de guerra civil e internacional oferece um exemplo impressionante do que Rosaldo chama de nostalgia imperialista. Um filme como

Baraka

, Rosaldo poderia argumen­ tar, brota precisamente da culpa do Primeiro Mundo capitalista em relação à desordem social, econômica e cultural que ele gerou no mundo como um todo, acompanhada de uma nostalgia por um mundo puro e imaginário anterior à modernidade capitalista. Esse mundo imaginário, o objeto da nostalgia, é aparente na reve­ rência do filme ao meio ambiente, às sociedades aborígines e aos sistem as religiosos pré-m odernos do budism o, hinduísm o, islamismo e cristianismo. Assistir a filmes como

Baraka,

poderia se dizer, capacita o público do Primeiro Mundo a se comover com

23. Estou me referindo ao documentário Burden o f Dreams (1982), de Les Blank, e também ao livro que o acompanha: Blank, Les; Bogan, James. Burden o f Dreams'.

Screenplay, Journals, Reviews, Photographs. Berkeley, California: North Atlantic Books, 1984; e O Apocalipse de um Cineasta (1991), de Fax Bahr e George Hickenlooper, Esses documentários de making o fpodem ser vistos como um subgénero emergente do cinema global contemporáneo.

(36)

o que o capitalismo destruiu, ao mesmo tempo que o absolve de qualquer responsabilidade sobre isso. O fato de ser precisamente a censura pública da ordem económica mundial o que faz de

Baraka

um filme possível em primeira instância não é o menor de seus tantos paradoxos.

Confrontados com as realidades desconfortáveis da ordem mundial pós-colonial, os filmes da

National Geographic

, do

Discovery Channel

e

Baraka

servem, em última instância, como uma fonte de reafirmação: mais do que o abismo económico que separa “nós” de “eles”, tais filmes mostram o que suposta­ mente temos em comum. Enquanto documentam realidades desconfortáveis, eles também sugerem que essas realidades não nos dizem respeito diretamente, eles amenizam quaisquer ansie­ dades que “nós” possamos ter e qualquer responsabilidade so­ bre isso. Em um mundo feito supostamente menor a cada dia pela mídia, negligenciamos o quão efetivas são essas mídias para manter o mundo em seu lugar, assegurando - como os limites que separavam espectadores dos povos nativos exibidos nas fei­ ras mundiais - que estes não se aproximem tanto para não causar desconforto.

O livro do film e: rep en san d o o “ C in em a M u n d ia l”

Em 1994, o Instituto Britânico de Cinema publicou um livro intitulado

World Cinema: Diary o f a Day,

um dos vários projetos semelhantes produzidos naquela época para comemorar o

(37)

cente-nário do nascimento do cinem a.24 O livro foi o resultado de um projeto por meio do qual se solicitou a cerca de mil trabalhadores de todos os setores da indústria cinematográfica m undial que m an­ tivessem um diário de suas atividades em um dia escolhido aleato­ riamente (10 de junho) durante o verão de 1993. Os apontam entos do diário produzido foram então editados e reorganizados em um a série de capítulos correspondentes aos estágios da produção de um filme, da concepção inicial até a exibição ao público, oferecendo por meio disso um olhar instantâneo global de “um dia na vida da indústria cinem atográfica”25.

O livro é talvez m ais interessante pelo que revela sobre a di­ mensão transnacional da produção de filmes m undiais da atualida­ de e sobre a econom ia cultural global dentro da qual essa produção acontece.26 N o geral, ele oferece um retrato fascinante de um dia

24. Cowie, Peter (Ed.). World Cinem a: D iary o f a Day. Woodstock, NY: Overlook Press, 1994. Ver também: Nowell-Smith, Geoffrey (Ed.). The O xford D ictionary o f World Cinema. Oxford: Oxford University Press, 1996; e Stone, Judy. Eye on the World: Conversations With International Filmmakers. Los Angeles: Silman-James Press, 1997. No próprio cinema, o filme francês Lum ière et Com pagnie{ 1995), uma com ­ pilação de quarenta curtas feitos com a câmera original dos irm ãos Lumière por diretores de filme de todo o mundo, tem, de torma semelhante, pretensões globais. 25. Nos últimos anos, estes livros “ um dia na vida” apareceram com o um a variante

interessante do que eu chamei anteriormente d e “globalismo de cabeceira.” Tendo começado suas vidas como uma série de relatos de culturas nacionais {Um D ia na Vida da América, Um Dia na Vida do Japão etc.), eles recentemente foram além do nacional, com o o recente Um Dia na Vida do CyberEspaço, de Rick Smolan, atesta. As am bições panorâm icas e globais de tais livros fazem com que eles te­ nham uma forte afinidade com filmes com o Baraka-, ficamos imaginando quanto tem po vai levar para a publicação de Um D ia na Vida do M undo.

26. Sobre a econom ia cultural global, ver: Appadurai, Arjun. Disjuntura e Diferença na Economia Cultural Global. In: D im ensões C ulturais da Globalização. Lisboa: Teorema, 2004.

(38)

típico da produção de filmes e a frustração normalmente associa­ da a essa atividade. Ao mesmo tempo, o livro tem vários proble­ mas. Um dos mais obvios é que, enquanto nos diz muito sobre o

fazerum

filme, não nos diz nada sobre o não menos importante ato de

assistirm

filme. E dessa forma, concentrando-se na produção em vez da recepção, o livro, de forma questionável, nos apresenta so- mente metade do quadro do cinema mundial contemporáneo, ig­ norando completamente sua outra metade: o público de cinema.27 Um segundo problema reside nas suposições totalizantes subjacentes à categoria do próprio “cinema mundial”. Quaisquer que sejam as condições geopolíticas e econômicas para sua emer­ gência histórica, e quão variadas sejam suas inúmeras manifesta­ ções locais, presume-se que a criação de um filme é hoje uma for­ ma cultural global. Poderíamos dizer que essa suposição parece incontestável, uma simples observação de fato; mas não pretendo contestá-la aqui. Ao mesmo tempo, é interessante que a categoria de “cinema mundial”, como exemplificada por livros como este em questão aqui, foi usada exclusivamente pelos estudiosos e crí­ ticos de cinema do Primeiro Mundo, e não por aqueles das maio­ res nações pós-coloniais produtoras de filmes. Além disso, a ob­ servação ostensivamente neutra de “cinema mundial” como um fato do mundo contemporâneo precisa ser situada dentro do con­ texto histórico mais amplo do imperialismo europeu e de

tentati-27. Em algum outro lugar, nos estudos contemporâneos sobre cinema, uma atenção considerável foi dedicada ao estudo dos públicos globais, por exemplo: Ang, Ien.

Desperately Seeking the Audience. New York; London: Routledge, 1991; e Living Room Wars-. Rethinking Media Audiences for a Postmodern World. New York; London: Routledge, 1996.

(39)

vas semelhantes dos poderes coloniais para supostamente impor categorias “universais” ao mundo como um todo. Por fim, vale a pena lembrar que, precisamente devido à dificuldade histórica do cinema com o colonialismo, muitos diretores pós-coloniais - refi­ ro-me a diretores do Terceiro Cinema em particular - se preocupa­ ram exclusivamente com a definição de suas práticas cinematográ­ ficas em oposição aos cinemas estadunidense e europeu. Embora tais diretores hoje tenham de operar dentro da economia cultural global como qualquer outro, provavelmente estarão mais apreen­ sivos com a assimilação dos seus trabalhos dentro da categoria “cinema mundial” do que, digamos, um diretor francês ou inglês. Resumindo, a categoria de “cinema mundial” prova, em uma aná­ lise mais detalhada, ser menos “natural” e menos problemática como pareceria em princípio e pode, até mesmo, ser vista como um construto totalizante que, de alguma forma, torna a categoria de “cinema mundial” a contrapartida dos estudos cinematográfi­ cos para

Baraka.

Outro problema do

Cinema Mundial\

e mais relevante para a presente discussão, como sugeri, é o fato de que, enquanto o livro revela muito sobre os processos globais que afetam a forma como a produção cinematográfica acontece hoje, pouco nos diz sobre a emergência de um discurso a respeito da globalização den­ tro do próprio cinema global contemporâneo. Está claro, pelo menos, que a globalização teve, e continua tendo, um impacto significativo sobre o conteúdo fílmico no mundo todo, seja a obra feita por um diretor etnográfico estadunidense, um diretor euro­ peu de vanguarda, um diretor africano morando em Paris ou um iraniano em Los Angeles.

(40)

A comparação entre o

Cinema M undial

e

Baraka

leva, en­ tão, à conclusão de que a categoria de “cinema mundial” precisa ser repensada. Enquanto o “cinema mundial” e o “cinema global” têm sido, nos últimos anos, matéria de atenção crítica crescente, um corpo substancial de filmes que se engajam em um discurso

sobre

a globalização - do qual

Baraka

é somente um exemplo - foi, até o momento, deixado de fora da discussão. Se for correto, vale a pena refletir por que isso acontece. Talvez se deva a uma confusão conceituai sobre os usos do próprio termo “cinema mun­ dial” que, embora cada vez mais presente na atualidade, é usado em um sentido muito diferente de “música mundial”. Como vi­ mos há pouco, o termo é mais frequentemente utilizado para sig­ nificar “a indústria de cinema global”, em vez do sentido mais res­ trito, que uso neste texto, de filmes que explicitamente se inserem em um discurso sobre algo chamado “mundo”. À parte das impli­ cações ideológicas de um termo tão globalizante, poderíamos que­ rer nos informar sobre a utilidade analítica de um a categoria conceituai que - na esfera da produção cinematográfica, pelo me­ nos - inclui potencialmente tudo.

Outra razão pela qual as discussões sobre o “cinema mundial” e o “cinema global” envolveram os tipos de filmes que venho dis­ cutindo aqui pode ser simplesmente uma suspeita sobre o global em si. Acostumamo-nos a valorizar a particularidade do local e a rejeitar discursos globalizantes, com suas pretensões de falar por to­ dos, como monolíticos e hegemônicos. Isso pode ser algo bom; mas, enquanto tivermos uma boa razão para suspeitar do global, não significa que, se o ignorarmos, ele simplesmente desaparece­ rá. De fato, o oposto parece mais verdadeiro: quanto mais o

(41)

igno-ramos mais difundido ele se torna. Estudos do cinema “global” ou “mundial”, entretanto, têm a tendência de se concentrar primeira­ mente nas práticas cinematográficas transnacionais ou locais, de­ finidas por

resistência

ao global (frequentemente tratado hoje em dia como sinônimo de capitalismo), em vez de se concentrar no global como tal.28 Sem negar a importância de práticas de resis­ tência, precisamos também perguntar o que está em jogo no con­ tínuo desejo euro-americano de enquadrar a diversidade cultural global dentro de seu olhar que inclui tudo, e se filmes como

Baraka

não são, de muitas formas, uma resposta contra-hegemônica aos cinemas atuais transnacionais de resistência. Em uma ordem m un­ dial pós-colonial na qual as sociedades do Primeiro Mundo se encontram cada vez mais fragmentadas pela imigração do Tercei­ ro Mundo, com sua homogeneidade cultural desestabilizada e con­ testada pelas culturas de suas antigas colônias, a visão global de

Baraka

pode ser vista como uma reação à ameaça que tal mundo apresenta à autoridade cultural euro-americana, que, ao reinscrever o mundo dentro do campo reafirmativo de um olhar euro-america­ no, procura uma estrutura discursiva neocolonial sobre um m un­ do escorregadio cada vez mais além de seu controle.

Repensar o “cinema mundial” hoje, em primeira instância, envolve diferenciá-lo das indústrias de filmes globais, uma catego­

28. Ver: Jameson, Fredric. The Geaf>oliticãiAesthetic". Cinema and Space in the World System. Bloomington, Indiana: Indiana University Press; London: British Film Institute, 1992; Ver: MacDonald, Scott. Premonitions of a Global Cinema. In: Avant-Garde Film:

(42)

ria que potencialmente inclui tudo, e dos cinemas transnacionais, definidos por sua política de diferença multicultural. Envolve tam­ bém realocar o próprio cinema como um meio dentro do contex­ to maior das indústrias culturais globais. Isso significa tratar o cinema, como historicamente tem sido o caso, não isolado de outras mídias, mas como parte de um

continuum

maior, desde diário de viagem, de moda até música popular, que articulam respostas euro-americanas para as novas realidades multiculturais da ordem mundial pós-colonial. O cinema euro-americano tem tido, e conti­ nuará a ter, um papel significativo na articulação dessas respostas, mas esse papel, até o momento, praticamente não foi analisado. Concentrar-se nele mais diretamente pode levar a um entendi­ mento certamente menos globalizante, mas, no final das contas, mais claro, do lugar do “cinema mundial” dentro da economia cultural global contemporânea.

(43)

O cinema intercultural

na era da globalização

Hudson Moura

Nunca se viram tantos deslocamentos humanos quanto no século XX. A Segunda Guerra Mundial provocou uma nova expe­ riência no movimento de populações, experiência que se tornou uma das mais significativas e traumáticas dos últimos tempos. O mapa mundial foi retraçado, e muitas culturas foram dispersas ou transferidas de uma região a outra. Nosso tempo, segundo Said (2000), é, sem dúvida, a era dos refugiados, das pessoas em movi­ mento, da imigração em massa.

Tem-se a impressão de que cada vez mais as pessoas cruzam fronteiras e transformam suas experiências em uma poderosa he­ rança de resistência. E as mídias são testemunhas desse fenômeno. Muitos artistas transformam os traumas do deslocamento numa importante renovação do pensamento e em reflexão sobre a socie­ dade contemporânea.

Novos pontos de vista e novas impressões são criados com o descer e subir de barreiras, muros e alfândegas. Novas geografias e linguagens são impostas a um conjunto inteiro de culturas e anti­

gas nações. Como aproximar o cinema às novas realidades e subje­ tividades dessas novas fronteiras?

(44)

Há um número sem igual de artistas e intelectuais que ex­ ploram o tema do deslocamento e da interculturalidade em suas manifestações criativas por meio de filmes, exposições de arte e obras literárias, tanto quanto cientistas e estudiosos consagram seus estudos. Uma série de publicações em inglês que abordam o tema o nomeiam de transnacionalismo, diáspora e pós-colonialismo. Nos estudos cinematográficos, quando esses pesquisadores anali­ sam casos como o cinema intercultural, eles sempre mapeiam a questão dentro de uma perspectiva sociopolítico-econômica de um Estado-nação. Assim sendo, é preciso sempre estar atento a termos e conceitos como nacionalismo, identidade, multiculturalismo e a temas como etnia, raça, numa aproximação sociológica e antropo­ lógica em detrimento de outras áreas, como a estética e a filosofia, pontos de vista mais abordados pelas publicações em francês. A teoria de língua francesa, mais baseada nos estudos filosóficos, semiológicos, literários e estéticos, concentra-se na questão da alteridade do indivíduo e suas subjetividades, tomando uma outra perspectiva na análise da experiência do deslocamento no cinema, por exemplo, quando o nomeiam cinema de exílio, minoritário, marginal. Essa diferença de caminhos, muitas vezes, interfere no resultado final de análise dos filmes.

Em todo caso, em ambas as teorias, o cinema intercultural ques­ tiona o pertencimento a uma cultura, a uma comunidade, ao cinema contemporâneo, e, através da intermidialidade, o pertencimento a uma só mídia e ao sujeito da modernidade.

(45)

Cinemas emergentes: hibridismo,

interculturalismo e multiculturalismo

Nos Estudos Culturais, o termo “intercultural” é distinto de ou­ tros termos e teorias como o multiculturalismo, o transnacionalismo, o pós-colonialismo, entre outros, apesar de esses compartilharem a mesma experiência de envolver dois ou mais regimes culturais. O conceito de intercultural foi sempre associado a uma marca da imi­ gração e da descolonização, o que não é mais o caso. O intercultural se desenvolveu em outras áreas, como o comércio, o direito, a edu­ cação, entre outras. Essa indissociabilidade do termo em relação à imigração contribui para enrijecer e limitar o conceito (Coly, 2005). Todas as boas e, principalmente, as más características que podiam ser associadas à imigração acabam se transferindo diretamente para o intercultural.

A interculturalidade no cinema tenta traduzir em imagens a experiência de viver entre duas ou mais culturas e sociedades di­ ferentes, que concebem novas formas de pensar e de conhecimen­ to (Marks, 2000). É um cinema compartilhado por pessoas que sofreram o deslocamento e que viveram m odos híbridos e para quem a representação do cinema convencional - o cinema clássi­ co - não é suficiente.

Cinema multicultural,

mestizo

, pós-colonial, transnacional, híbrido, minoritário... muitas denominações para um gênero que se torna cada vez mais importante. Sua principal característica é a de explorar, de uma maneira original, as técnicas cinematográfi­ cas sobre temas e narrativas (roteiros) já bem conhecidos. Qual é a particularidade do cinema intercultural perante essas outras de­ nominações?

(46)

Principalmente, porque o ponto de vista mudou, nós deve­ mos rever a prática: não é mais um olhar “forasteiro” que observa uma realidade exótica, mas sim um olhar estrangeiro, vindo do interior mesmo dos cinemas nacionais. Parafraseando Deleuze e Guattari (1975) sobre a literatura menor, não é somente a possibi­ lidade de instaurar do interior um exercício

m enor

de uma lin­ guagem

maior

que permite definir o

cinema emergente.

Assim, esses cinemas

emergentes

se originam do olhar de novos cineastas provindos de uma nova realidade, criada princi­ palmente nos países que acolheram os imigrantes de ex-colônias, como a França e a Inglaterra, ou de novos imigrantes, como o Canadá, os Estados Unidos e o Brasil. A necessidade desses cineas­ tas de sustentarem uma imagem, rara em outros tempos, assume uma importância mais profunda e uma amplitude maior nos rotei­ ros habituados aos clichês e às imagens convencionais eurocêntricas do Outro, do estrangeiro, da cultura e das novas práticas sociais dos imigrantes.

Esses cineastas estão longe de repetir as imagens de marginalidade ou a violência habitualmente ligadas aos imigrantes da classe po­ pular ou de mostrar o estrangeiro como exótico. Eles se voltam para o assunto da língua, da classe social, do trabalho e sua inser­ ção na sociedade. O cinema se torna, assim, uma mídia portadora

de significação para essa comunidade e um meio privilegiado de comunicação e experimentação artística. É sobretudo através de um olhar integrador, de transferência, de adaptação e de aceitação do “Outro” (sua cultura, sua língua) que eles mostram que fazem parte da sociedade e que devem reivindicar seus

lugares.

A sociedade

Referências

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