A redenção do detrito
6. Ver Bakhtin, The Dialogic Imagination, editado por Michael Holquist e Caryl Em er son Austin: University o f Texas Press, 1981 p 84 Os term os na discussão que segue
artisticamente visível” e “o espaço torna-se responsável e recep tivo aos movimentos de tempo, enredo e história” parece, de al guma forma, até mais adequada ao filme que à literatura. Ao passo que a literatura acontece dentro de um espaço virtual e léxico, o “cronotopo” cinemático é bastante literal, disposto concretamente em uma tela com dimensões específicas e desenvolvido em tempo literal (geralmente 24 quadros por segundo), um tanto diferente do que determinados filmes de tempo-espaço fictícios poderiam construir. Portanto, o cinem a personifica a relação inerente de tempo (khrónos) e espaço (tópos); trata-se espaço temporalizado e tempo espacializado, o local onde o tempo acontece e o lugar tem seu tempo.
A natureza multipistas da mídia audiovisual a capacita a o r
questrar histórias múltiplas, até contraditórias, temporalidades e perspectivas. Ela não oferece um “canal de história”, mas múltiplos canais para representações históricas m ultifocais e de múltiplas perspectivas. Aqui me interessa especialmente um tipo de com bi nação entre representações do estado palimpséstico, multinacional, e o cinema como um meio palimpséstico e polivalente que pode entrar em cena e rep resen tar um h ib rid ism o tran sg ressor. Constitutivamente múltiplo, o cinema é idealmente apropriado para encenar o que Nestor García Canclini, em um contexto m ui to diferente, chama de “heterogeneidade m ultitemporal”7. 0 fato de que o cinema dominante, em grande parte, optou por urna
7. Ver: Canclini, Néstor García. Culturas Híbridas: Estrategias para entrar y salir de la modernidad. M exico City: Grijalbo, 1989; ou: Canclini, N éstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da m odernidade. São Paulo: Edusp, 1990.
estética linear e homogeneizante na qual caminhos reforçam cami nhos dentro de uma totalidade wagneriana, de forma alguma, oblitera a verdade igualmente saliente de que o cinema (e as novas mídias) é infinitamente rico em potencialidades polifónicas. O cinema possibilita que sejam postas em cena contradições culturais temporalizadas não somente dentro da tomada, por meio do
mise-en-scène, do cenário, do figurino etc., mas também via
interação e contradições entre os diversos caminhos, que podem mutuamente seguir, empurrar, rebater, assombrar e relativizar um ao outro. Cada caminho pode desenvolver sua própria velocidade; a imagem pode ser acelerada enquanto a música é desacelerada, ou a trilha sonora pode ser temporariamente multiplicada por referên cias a variados períodos históricos. Um cinema culturalmente polirrítmico, multitemporal, contrapontístico e de múltiplas ve locidades se torna uma possibilidade real.
Por meio do lixo, a cultura brasileira é apresentada como um local misto. O lixo, nesse sentido, fica no ponto de convergên cia de nossos três temas: hibridismo, multiplicidade “cronotópica” e redenção do detrito. O lixo é híbrido, em primeiro lugar, como espaço diasporizado, heterotópico da mistura promíscua do rico e do pobre, do centro e da periferia, do industrial e do artesanal, do doméstico e do público, do durável e do transitório, do orgâ nico e do inorgânico, do nacional e do internacional, do local e do global. Metáfora pós-moderna e pós-colonial ideal, o lixo é mis turado, sincrético, um texto social radicalmente descentrado. Ele pode também ser interpretado, segundo Charles Jencks, como “heterópolis”; e conforme Edward Soja, seguindo Foucault, como “heterotopia,” ou seja, a justaposição em um lugar real de “vários
locais que são eles mesmos incompatíveis”8. Como um lugar de memórias e vestígios enterrados, o lixo é um exemplo do que David Harvey chama de “compressão do tempo-espaço” típica da acelera ção produzida pelas tecnologias contemporâneas de transporte, co
municação e inform ação. Em term os foucaultianosy o lixo é
“heterocrônico”, ele concentra o tempo em um espaço circunscri to. (Já foi sugerido que a arqueologia é simplesmente uma forma sofisticada de estudo do lixo.) O monte de lixo pode ser visto como um tesouro arqueológico achado precisamente por causa de seu caráter concentrado, sinedóquico e comprimido. Como história congelada, o lixo revela um passado analisado. Como tempo mate rializado no espaço, ele se torna coagulado socialmente, uma desti lação pegajosa das contradições da sociedade.
Como a quintessência do negativo - evidenciada em expres sões como “lixo ambulante”, “im undície!” e “fonte de contam ina
ção” o lixo pode tam bém ser um objeto de jiu -jítsu artístico e
de resgate irônico. Um sistema de reciclagem ecologicamente cons ciente na Austrália se nomeia “lixo reverso”. (Isto não é para dizer que a apreciação do lixo é sempre marginal: o potencial subversi
vo do lixo com o m etáfora é sugerido no rom ance O Leilão do
Lote 49\ de Thom as Pynchon, no qual a heroína coleta indícios e
vestígios que revelam a rede alternativa de L.I.X.O. com o um tipo de contracultura fora dos canais de com unicação dom inantes.)
8. Ver: Jencks, Charles. Heteropolis. Los Angeles, the Riots and the Strange Beauty of HeteroArehiteeture. London: Academy Editions, 1993; Soja, Edward W. Thirdspaee.
Journeys to Los Angeles and O ther Real-and- Imagined Places. O xford: Blackwells, 1996.
Em termos estéticos, o lixo pode ser visto como uma colagem aleatoria ou uma enumeração surrealista, um caso de definição ao
acaso, uma pilha randómica de objets trouvése papiers col/és, um
lugar de justaposições violentas e surpreendentes.
O lixo, como a morte e o excremento, é um grande nivelador social, o local de encontro do mal-cheiroso e do bacana. É o final da linha para o que Mary Douglas chama de “assunto fora de lugar”. Em termos sociais, é um contador de verdades. Como um estrato mais
baixo do soa us, o “fundo” simbólico ou cloaca maxima do corpo
político, o lixo sinaliza o retorno do reprimido; é o lugar onde camisinhas usadas, absorventes ensanguentados, agulhas infectadas e bebês rejeitados são deixados; o lugar de descanso final de tudo o que a sociedade produz e reprime, que esconde e faz segredo.
Podemos lembrar da tomada final de Os Esquecidos, de Buñuel,
que mostra o cadáver do protagonista despedaçado no filme sen do naturalmente largado em uma pilha de lixo na cidade do Mé
xico; a cena reaparece em O Beijo da Mulher Aranhay de Babenco,
no qual o cadáver de Molina é jogado em um monte de lixo, en quanto a voz do narrador comunica oficialmente sua morte. Ma
terial excessivo, o lixo é o id da sociedade; fumega e tem cheiro
abaixo da soleira da racionalização e da sublimação ideológicas. Ao mesmo tempo, o lixo é reflexo de prestígio social; riqueza e
status estão correlacionados com a capacidade de uma pessoa (ou
uma sociedade) em descartar mercadorias, ou seja, gerar lixo. Como híbrido, o lixo também está carregado de poder. A elite pode trans formar uma favela em um bairro nobre, aterrar um terreno para construir prédios luxuosos ou despejar lixo tóxico em uma vizi nhança pobre.
Três documentários brasileiros recentes tratam diretamente
o tema do lixo. O Fio da Memória, de Eduardo Coutinho ( The
Thread ofMemory> 1991), um filme realizado como parte da co
memoração do centenário da abolição, reflete sobre as consequências da escravidão no presente. Em vez de se estruturar em uma narrati va coerente e linear, o filme oferece uma história baseada em peda ços e fragmentos disjuntivos. Aqui os fios entrelaçados, ou pedaços agrupados, tornam-se emblemáticos do tecido fragmentário da vida negra no Brasil. O fio condutor consiste do diário de Gabriel Joaquim dos Santos, um homem velho e negro que criou a casa de seus sonhos como um trabalho de arte, feito completamente de lixo e detritos: azulejos rachados, pratos quebrados, latas vazi as. Para Gabriel, a cidade do Rio representa o “poder da riqueza”, enquanto sua casa, construída dos “restos da cidade”, representa o “poder da pobreza”. O lixo então se torna um meio ideal para aqueles que foram marginalizados, que se sentem “deprimidos”,
que, como no verso da canção de bluesy se sentem “com o uma lata
sobre aquele depósito de lixo velho”9. Um impulso transform a
dor toma um objeto considerado sem valor e o transform a em algo de valor. Aqui a restauração do valor de um objeto jogado fora explica, por analogia, o processo de revelar o valor escondido do artista desprezado, desvalorizado. Ao mesmo tempo, testemu nhamos um exemplo de estratégia e de engenhosidade em situação
9. Minha form ulação obviam ente reflete e africaniza a linguagem do con h ecid o e n