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Na linguística, sotaque se refere somente à pronúncia, en­ quanto dialeto faz referência também à gramática e ao vocabulá­ rio. Mais especificamente, o sotaque tem duas definições-chave: “O efeito sonoro cumulativo daquelas características de pronún­ cia que identificam o lugar, social ou regional, de uma pessoa” e “A ênfase que faz com que uma determinada palavra ou sílaba se sobressaia no fluxo de fala.” (Crystal, 1991, p. 2). Ao passo que os sotaques podem ser padronizados (por exemplo, como sotaques

ingleses, esco ceses, in d ian o s, canadenses, australianos ou estadunidenses), é impossível falar sem um sotaque. Há várias ra­ zões para as diferenças de sotaque. No inglês, a maior parte dos sotaques é regional. Os falantes de inglês como segunda língua também têm sotaques decorrentes de suas características regio­ nais e de sua língua nativa. As diferenças de sotaque frequente­ mente se correlacionam com outros fatores: origem social e de classe, religião, nível educacional e posição política (Asher, 1994, p. 9). Mesmo que, do ponto de vista linguístico, todos os sotaques sejam igualmente importantes, nem todos os sotaques possuem igual valor social e político. As pessoas utilizam os sotaques para julgar não somente o posicionamento social dos falantes, mas tam­ bém suas personalidades. Dependendo do sotaque, alguns falantes podem ser considerados regionais, caipiras, vulgares, feios ou cô­ micos, ao passo que outros podem ser tidos como educados, de classe alta, sofisticados, bonitos e distintos. O sotaque, portanto, é uma das marcas mais pessoais e poderosas de identidade de grupo e de solidariedade, assim como de diferença individual e de perso­ nalidade. As principais notícias das redes internacionais de televi­ são e de rádio nacionais são norm alm ente proferidas com o sota­ que “oficial”, ou seja, o sotaque que é considerado padrão, neutro e isento de valores.

No cinema, o sotaque padrão, neutro, isento de valor, repre­ senta o cinem a dom inante produzido pelo modo de produção predominante na sociedade. Isso exemplifica o cinema clássico e o novo hollyw oodiano, cujos film es são realistas e pretendem ser somente um entretenim ento, portanto, livres de ideologia ou sotaque. Por essa definição, todos os cinemas alternativos têm sota­ que, mas cada um aparece de certa forma específica, o que o faz dis­

tinto. O cinema discutido aqui obtém seu sotaque de seus modos de produção artesanal e coletivo e das localizações desterritorializadas dos cineastas e dos públicos. Consequentemente, nem todos os fil­ mes estrangeiros são exilados e diaspóricos, mas todos os filmes exilados e diaspóricos têm sotaque. Se na linguística o sotaque per­ tence somente à pronúncia, não envolve a gramática e o vocabulá­ rio, o sotaque diaspórico e de exílio permeia a estrutura profunda do filme: sua narrativa, estilo visual, personagens, assunto, tema e enredo. Assim, o estilo com sotaque no filme funciona tanto como acento (sotaque) quanto dialeto na linguística. As discussões so­ bre sotaques e dialetos são geralmente confinadas à literatura oral e às apresentações faladas. Pouco foi escrito - além da acentuação tipográfica das palavras - sobre o que Taghi Modarressi chamou de “escrita com sotaque” (1992, p. 9).

Em seu nível mais rudimentar, a produção de filmes com so­ taque envolve personagens dublados e atores que falem com um sotaque literal. No cinema hollywoodiano clássico, os sotaques dos personagens não são um indicador confiável da etnia dos atores. No cinema estrangeiro, entretanto, os sotaques dos personagens são, com frequência, étnicamente codificados, pois, neste cinema, mais frequentemente do que nunca, a etnia do ator, a etnia do

personagem e a etnia da persona da estrela coincidem. Entretanto,

em alguns desses filmes, a coincidência é problematizada, como nos

filmes epistolares de Chantal Akerman (Notícias de Casa, 1976) e

Mona Hatoum (Measures o f Distance, 1988). Em cada um desses

trabalhos, uma filha diretora lê, com sotaque inglês, as cartas que recebeu da mãe. O público pode supor que são as vozes das mães (completa coincidência entre os três sotaques), mas já que nenhum

dos filmes declara qual voz estamos ouvindo, a coincidência é sub­ vertida e os espectadores devem especular sobre o verdadeiro re­ lacionamento do sotaque com a identidade, a etnia e a autentici­ dade do falante ou confiar na informação extratextual.

Uma das grandes privações do exílio é a deterioração gradu­ al e a perda potencial da língua materna, pois a língua serve para moldar não somente a identidade individual, mas também as iden­ tidades regionais e nacionais anteriores ao deslocamento. Amea­ çados por essa perda catastrófica, muitos diretores com sotaque obstinadamente insistem em escrever os diálogos em suas línguas originais - em detrimento da distribuição maior dos filmes. To­ davia, a maioria dos filmes com sotaque é bilíngue, até mesmo

multilíngue, multivocal e multiacentuada, como Calendar, de

Egoyan (1993), que contém uma série de monólogos no telefone

em uma dúzia de línguas não traduzidas, ou On Top o f the Whale,

de Raul Ruiz (1981), cujo diálogo é falado em mais de uma dúzia de línguas, uma delas inventada pelo próprio Ruiz. Se o cinema dominante é movido pela hegemonia do som sincrónico e por um alinhamento rigoroso de falante e voz, os filmes com sotaque são contra-hegemônicos, pois, como muitos, deixam de enfatizar som sincrónico, insistem em narrações em primeira pessoa e, em outras narrações dubladas proferidas com um forte sotaque do país de imigração, criam lapso entre voz e falante e inscrevem no dia a dia pausas não dramáticas e longos silêncios.

Os filmes com sotaque enfatizam fetiches visuais da terra na­ tal e do passado (paisagem, monumentos, fotografias, lembranças, cartas) e também marcadores visuais de diferença e de pertencimento (postura, olhar, estilo de roupa e comportamento). Eles acentuam,

de form a equivalente, o oral, o vocal e o musical - ou seja, sota­ ques, entonações, vozes, música e canções, que também demar­ cam identidades coletivas e individuais. Essas vozes podem per­ tencer a pessoas reais e fictícias, como a voz narrativa de Mekas em seus filmes de reminiscencias; ou podem ser vozes fictícias

com o em Letter from Siberia, de Marker (1958), e em Sunless

(1982); ou podem ser vozes com sotaque, cuja identidade não está firm em en te estabelecida, com o nos film es m encionados de Akerman e Hatoum. Os quatro filmes de Sergei Paradjanov não são som ente intensam ente visuais em sua encenação teatral e

marcada por tableaux vivants (quadros vivos), mas também pro­

fundamente orais da forma que são estruturados: como narrati­ vas orais que são contadas à câmera.

A ênfase em sotaques musicais e orais redireciona nossa aten­ ção da hegemonia do visual e da modernidade para a questão acús­ tica do exílio e a mistura de pré-modernidade e pós-modernidade nos filmes. Tanto a polifonia quanto a heteroglossia localizam e si­ tuam os filmes como textos diferentes cultural e temporalmente.

Cada vez mais, os filmes com sotaque estão usando a tela como uma placa para a escrita, na qual aparecem múltiplos textos nas línguas originais e na tradução na forma de títulos, legendas, intertítulos ou blocos de texto. A manifestação caligráfica desses textos deixa de enfatizar a questão visual, ao mesmo tempo em que enfatiza a textualidade e as questões de tradução e de arte intercultural. Por serem multilíngues, os filmes com sotaque requerem legendas extensas somente para traduzir os diálogos. Entretanto, muitos de­ les vão além disso, ao experimentar a tipografia na tela como um

Lost, de Mekas, Nome Vet, Sobrenome Nam, de Trinh, e History

and Memory, de Tajiri (1992), possuem múltiplas apresentações

de textos em inglês na tela ligados, de forma complicada, com o diálogo e com as vozes narrativas, as quais possuem também pro­ núncia com sotaque. Nos casos em que o texto na tela é escrito em

línguas “estrangeiras”, como em Homage by Assassination, de

Suleiman (1991), e em Measures o f Distance, de Hatoum, que apre­

sentam palavras em árabe, o sotaque oral é complementado por um acento caligráfico. A inscrição desses acentos visuais e orais transforma o ato de assistir ao filme, de somente assistir, em assis­ tir e literalmente ler a tela.

Ao incorporar voz narrativa, tratamento direto, multilínguas e multivozes, os filmes com sotaque, particularmente a variedade epistolar, desestabilizam o narrador onisciente e o sistema narra­ tivo do cinema e do jornalismo dominantes. As cartas dos filmes frequentemente contêm o tratamento direto dos personagens (ge­ ralmente na primeira pessoa do singular), o discurso indireto do diretor (como o contador da história) e o discurso indireto livre

do filme no qual a voz direta contamina a indireta. Calendar; de

Egoyan, combina todos esses três discursos para criar confusão com relação a que está acontecendo, quem está falando, quem está se dirigindo a quem, quando o fotógrafo diegético e sua esposa na tela (representada pela esposa real de Egoyan) se retiram e onde as pessoas históricas de Atom Egoyan e Arsinee Khanjian com e­ çam. O estilo com sotaque em si é um exemplo de discurso indire­ to livre para forçar o cinema dominante a falar em um dialeto minoritário.

O estilo com sotaque não é um gênero de filme totalmente reconhecido e aprovado, e os diretores do exílio e da diáspora nem sempre fazem filmes com sotaque. De fato, a maior parte deles gostaria de estar no lugar de Egoyan, mover-se dos nichos do cinema marginal para o mundo do cinema de arte ou, até mes­ mo, para o cinema popular. O estilo permite aos críticos rastrearem a evolução do trabalho não só de um diretor, mas também de um grupo. A produção de filmes asiático-americanos tem gradualmen­ te evoluído de um foco étnico para uma sensibilidade diaspórica e de exílio, enquanto os cineastas iranianos exilados evoluíram em direção a uma sensibilidade diaspórica. Essas evoluções sinali­ zam a transformação tanto dos diretores quanto de seus públicos. Elas também sinalizam a apropriação dos cineastas, de seus pú­ blicos e de certas características do estilo com acento pelo cinema dominante e por seus produtos independentes. Uma vez que o estilo vai além do conhecimento para situar os cineastas dentro de suas formações, locações culturais e práticas cinemáticas, o estilo com sotaque não é nem hermético, nem homogêneo ou autônomo. Ele corre em linhas sinuosas e evolui. É um elemento inalienável do processo social material e do modo de produção diaspórico e de exílio.

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