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A miséria humana e o movimento migratório são dois te­ mas recorrentes no cinema intercultural. Um derivado do outro e vice-versa. Esses temas se tornaram uma preocupação essencial no final do século XX. A degradação da condição humana, em países devastados pela fome e pela guerra, parece caminhar lado a lado com a gradativa especulação de um termo contemporâneo que caiu facilmente na alienação, na banalização, e que perde cada vez mais seu sentido: globalização ou, como preferem os franceses, mundialização. Entre discussões intermináveis e muitas vezes infecundas de teóricos e suas opiniões, prós e contras, sobre a globalização, às vezes, essas concepções tomam proporções enor­ mes e incompreensíveis, que o cinema intercultural (assim como o cinema político da década de 1970) busca denunciar, e têm trágicas consequências, que ele busca combater. Por outro lado, é preciso entender a questão da globalização cultural e seus produtos

comunicacionais. Devemos concebê-la como tradução de uma

compreensão da obra artística ou como acesso a essas obras? A

globalização cultural é uma transformação ou criação de sentidos? Tornou-se senso comum dizer que globalização cria a massificação e a homogeneização cultural e social. Entretanto, se­

gundo Pieterse, globalização é um processo multidimensional, que encampa uma larga e variada gama de práticas sociais, políticas e culturais humanas. O autor coloca a globalização como um “pro­ blema descentralizado” (Pieterse, 2006), mas que vem sendo visto

como uma ocidentalização do mundo. Em verdade, a globalização ocorre por meio de hibridações culturais e estruturais que geram novas formas de organização social e cultural.

Appadurai vê a globalização como um fenômeno fluido e di­ nâmico atrelado ao movimento migratório mundial (ambos vo­ luntários e involuntários) e a disseminação de imagens e textos via mídia eletrônica. Num ambiente pós-colonial e de saturação midiática, novas formas de desejo e subjetividades são desencadeadas. Desenhado sob concepções pós-estruturalistas, Appadurai prevê o globo como entrecruzado por fluxos que ele denomina “dutos” (Appadurai, 2006), os quais enquadram os mundos constante­ mente modificados da nova paisagem global. Como seria esta pai­ sagem no cinema? Como fica o cinema intercultural numa era globalizada?

Em sua diversidade de pontos de vista, o cinema oferece uma variada gama de conceitualizações sobre o mundo globalizado. Os filmes vêm mostrando nessa evolução mundial que a complexida­ de do tema merece uma complexidade de comportamentos e nar­ rativas. Alguns predizem numa imposição de uma “cultura mundi­ al virtual”, sobrepondo as culturas e as identidades, resultado da desmaterialização da cultura e sua globalização.

Em Encontros e desencontros (Lostin translation, 2003), de

Sofia Coppola, os personagens não parecem perdidos na tradu­ ção, como sugere o título em inglês, ou traduzidos infielmente, como sugere o título em francês. O ato ou a necessidade de se autotraduzir dos personagens estadunidenses na paisagem japo­ nesa simplesmente não se impõe, afinal esta é a vantagem de um mundo globalizado: a ausência do estranhamento e da distância.

Os dois personagens, estadunidenses, estão completamente ancorados no mundo moderno. Charlotte é uma recém-graduada em filosofia em uma das mais prestigiadas universidades nova-iorquinas,

e Bob é um ex-astro de Hollywood, em plena crise de meia-idade. Eles se encontram por acaso, hospedados num grande hotel interna­ cional em Tóquio por alguns dias. E está lá por um anúncio publici­ tário, e ela, acompanhando seu marido, que é fotógrafo.

Ambos estão deslocados e sofrem de uma profunda depressão, o que os impede de dormir, estão literalmente fora de uma ordem habitual das coisas, em pleno esgotamento da defasagem/diferença de fuso horário. Se Tóquio não os inspira com sua modernidade sem igual e seus mosteiros milenares, em suas casas, nos Estados Unidos, a situação se repete. Enquanto ela não consegue se fazer entender por sua melhor amiga, que evita escutar o seu choro, ele se sente constantemente importunado por sua mulher sobre a escolha do carpete ou sobre a atenção que não dá aos filhos.

As centenas de japoneses que vemos circularem na tela ser­ vem apenas como elementos de decoração de um grande cenário pós-moderno de uma sociedade cosmopolita, representada por seu grande hotel internacional - habitado por outros hóspedes estadunidenses: o fotógrafo de celebridades, a atriz de filmes de ação e a cantora do bar do hotel - e suas ruas impregnadas de néon. Os personagens não tecem nenhum comentário sobre a cidade ou a cultura japonesa que expresse algum interesse ou curiosidade, algo, no mínimo, inesperado para uma graduada em filosofia de Yale. Todos são completamente indiferentes às origens, costumes e sen­ sibilidades japonesas. Os nativos de Tóquio estão presentes e, ao mesmo tempo, invisíveis numa paisagem que não consegue ir além dos clichês. Seria isto uma comunidade globalizada em que o dis­ tante se torna tão próximo quanto indiferente?

Em contraponto às contradições e aos sentimentos de perda

referencial dos personagens de Encontros e desencontros está um

outro documentário de Wim Wenders, Tokyo-Ga. Esse filme ex­

plora o universo do diretor japonês Yasujiro Ozu, um ídolo do ci­ neasta alemão, e como ele mesmo define: “um tesouro sagrado do

cinema”. Tokyo-Ga envereda na busca de uma tradução e identifica­

ção. Enquadrar ou temporalizar a imagem como fez Ozu são tare­ fas que o cineasta alemão leva a sério. Wenders explora em detalhes certos costumes banais dos japoneses à maneira de Ozu. A presença da história, da língua e da escrita se acumula aos temas ozunianos sobre o cotidiano e a degradação da família. Temas universais e com­ preensíveis, mesmo que através de uma sensibilidade e ponto de vista particulares a uma cultura ancestral como a de Ozu. Nunca o cinema foi tão minimalista e original quanto nas imagens da bana­ lidade de um Japão cada vez mais ocidentalizado e aberto aos qua­ tro ventos do mundo.

A questão no cinema não reside em saber como se articula uma cultura globalizada ou como se representa um mundo globalizado, mas sim o que faz uma imagem ser considerada globalizada entre tantas interculturalidades.

Referências

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Identificando o conceito