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Entre a fábrica e o cárcere: uma leitura de dois contos de Victor Giudice pelo viés da criminologia

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA

MESTRADO EM LITERATURA BRASILEIRA - TEXTUALIDADES HÍBRIDAS

LIANA APARECIDA PAULUKA DE SOUZA

ENTRE A FÁBRICA E O CÁRCERE: Uma leitura de dois contos de Victor Giudice pelo viés da criminologia

Florianópolis 2017

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LIANA APARECIDA PAULUKA DE SOUZA

ENTRE A FÁBRICA E O CÁRCERE: UMA LEITURA DE DOIS CONTOS DE VICTOR GIUDICE PELO VIÉS DA

CRIMINOLOGIA

Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), na Área de Concentração em Literatura e na Linha de Pesquisa de Textualidades Híbridas, como requisito para a obtenção do título de Mestra em Literatura.

Orientadora: Profa. Dra. Tereza Virginia de Almeida

Florianópolis 2017

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5 Esse trabalho é dedicado às bruxas, aos loucos, aos comunistas, aos jovens negros e a todo aquele que em algum momento da história foi perseguido e tratado como inimigo do Estado.

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AGRADECIMENTOS

Devo a possibilidade de escrever essa dissertação à implantação de políticas públicas que permitiram meu acesso à universidade, não é por gratidão que essa informação ocupa espaço nos agradecimento deste trabalho, mas por acreditar na importância de não atribuir essa conquista a qualquer falácia meritocrática.

Agradeço primeiramente à minha orientadora Tereza Virginia de Almeida, pela orientação, por me apresentar Giudice, por segurar a barra e ir até o fim comigo.

Agradeço aos colegas de pós, como a Leticia e Maria Isabel, pessoas que dividiram comigo conhecimentos, frustrações e ansiedades ao longo desse mestrado.

Agradeço à Carolina, que nesse momento de escrita aonde o isolamento é inevitável e se afastar é única alternativa, escolheu ficar, dando apoio, estímulo e orientação.

Agradeço à Anna, pela correção, edição e pelo embelezamento daquele amontoado de letrinhas de saíam da minha cabeça nesse processo quase enlouquecedor que é a produção de uma dissertação.

Agradeço aos colegas de trabalho que compreenderam os silêncios, os atrasos e as distrações em decorrência da minha dupla jornada.

Agradeço aos meus filhos de patas, que apesar da acusação de que seriam humanizados por mim, são os maiores responsáveis pela minha própria humanização, agradeço por seu companheirismo e pelo amor incondicional.

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7 Agradeço aos amigos que entenderam cada furo, cada desculpa, cada sumiço.

Agradeço especialmente à minha família, eles foram aqueles que caminharam junto, que cumpriram a jornada do meu lado, que em diversos momentos precisaram carregar o peso do meu fardo, à eles que limparam as feridas quando caí e me fizeram seguir em frente.

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8

“Eu era revoltada, não acreditava em ninguém. Odiava os políticos e os patrões, porque o meu sonho era escrever e o pobre não pode ter ideal nobre. Eu sabia que ia angariar inimigos, porque ninguém está habituado a esse tipo de literatura. Seja o que Deus quiser. Eu escrevi a realidade”

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RESUMO

O presente trabalho pretende analisar os contos “O Arquivo” e “Jurisprudência”, textos que compõem a obra do escritor carioca Victor Giudice. Trazendo como temática as relações trabalhistas e a seletividade do sistema penal, os dois contos aqui estudados nos permitem uma analogia com assuntos pertinentes na atual sociedade brasileira, como o encarceramento em massa da população pobre, a estreita relação existente entre a origem das prisões e a formação do modo de produção capitalista e o fim do Estado de bem-estar social, que vem sendo substituído por projetos neoliberais. Por esse motivo, propomos, nesta dissertação, além da analise literária, uma abordagem dos contos de Victor Giudice a partir dos discursos criminológicos existentes na contemporaneidade.

PALAVRAS-CHAVE: literatura brasileira; criminologia; Victor Giudice.

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ABSTRACT

The following essay intends to analyze the tales "The Archive" and "Jurisdiction", texts which compose the writer Victor Giudice's work. Bringing as a theme labor relations and the selectivity of the criminal justice system, both tales studied here allow us access to an analogy concerning the present situation of the brazilian society, like the mass incarceration of the poor population, the narrow existing relationship between the prisons' origin and the upbringing of capitalist methods of production and the end of the social welfare State, which has been replaced by neoliberal projects. Concerning this matter, in this dissertation we put forward, as well as literary analisys, a perspective on Victor Giudice's tales from criminological speeches existent in the contemporaneity.

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Conteúdo

INTRODUÇÃO ... 15

1. VICTOR GIUDICE A NARRAÇÃO DO FIM DA HISTÓRIA ... 23

1.1. VIDA E OBRA ... 25

1.2. NARRATIVA PÓS-MODERNA EM VICTOR GIUDICE ... 30

2. A FRAGMENTAÇÃO COMO TEMA ... 41

2.1. O CONTO ... 44

2.2. AS CRIMINOLOGIAS ... 48

3. DO CÁRCERE À FÁBRICA EM “O ARQUIVO” ... 59

3.1. A LITERATURA FANTÁSTICA DE “O ARQUIVO” ... 61

3.2. O DISCIPLINAMENTO DOS CORPOS ATRAVES DA PRISÃO ... 72

4. DA FÁBRICA AO CÁRCERE EM “JURISPRUDÊNCIA” ... 83

4.1. A REALIDADE ABSURDA EM “JURISPRUDÊNCIA ... 84

4.2. OS INDESEJÁVEIS ... 92

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 110

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15 INTRODUÇÃO

Chapa, desde que cê sumiu Todo dia alguém pergunta de você Onde ele foi? Mudou? Morreu? Casou?

Tá preso, se internou, é memo? Por quê?

(Emicida)

Em 2013, o Papa Francisco visitou o Brasil para a Jornada Mundial da Juventude. Durante essa visita, uma operação extensa se deu em todo o País para recepcionar o pontífice de forma segura e adequada. Em meio a caravanas, peregrinações e acampamentos gigantescos na praia de Copacabana, um fato inesperado surgiu, projetado nas paredes dos prédios da cidade do Rio de Janeiro, nos arcos da Lapa, viralizando nas redes sociais. Uma pergunta ecoava a nível nacional: onde está o Amarildo?

Amarildo de Souza, um ajudante de pedreiro com cerca de quarenta anos de idade, foi levado pela polícia para a sede de uma UPP1, a fins de averiguação, no dia 14 de julho de 2013. A prisão para averiguação é um procedimento comum para quem vive em áreas periféricas e marginalizadas das grandes cidades; ela é, entre tantas outras, uma medida que funciona como forma de controle social, e tem como justificativa, na maioria das vezes, o possível envolvimento dos moradores das comunidades carentes com o tráfico de drogas.

Sentado em um bar, no final de um dia de trabalho, Amarildo foi abordado por policiais que o conduziram até a Unidade Pacificadora da Rocinha, comunidade onde o homem vivia com sua família. Segundo o comandante dessa UPP, a confusão em torno da identidade de Amarildo teria se resolvido em menos de cinco minutos, e o ajudante de pedreiro teria sido liberado logo em seguida. Entretanto, exatamente no dia da

1

A implantação das Unidades de Polícia Pacificadora, em quase 40 comunidades carentes do Rio de Janeiro, é um projeto da Secretaria de Segurança Pública do estado fluminense que teve início no ano de 2008. Esse projeto tinha como objetivos declarados o controle do comércio varejista de drogas e a ocupação territorial pelo Estado de espaços tomados pelo “crime organizado”. Entretanto, com oito anos de projeto implantado, o que se percebe, na realidade, é que as UPPs se transformaram em mais uma forma violenta de o Estado gerir a pobreza, concentrando forças militarizadas em regiões de pouco acesso. A nível social, essas UPPs se tornaram armas de contenção dos guetos.

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prisão de Amarildo, problemas técnicos providenciais acometeram a unidade pacificadora para a qual o trabalhador foi levado: o GPS do carro dos policiais que o acompanharam não registrou o trajeto feito por eles, e as câmeras que deveriam capturar a entrada e a saída de Amarildo também não funcionaram. Depois da suposta liberação, ninguém mais teve notícias suas.

Isso, porém, acontece todos os dias. Problemas de ordem técnica não são exclusividade da polícia da Rocinha; homens negros, pobres e marginalizados que somem ou morrem, em razão de serem associados à figura de traficantes, quando aparecem nos jornais de grande ou pequena circulação ocupam apenas as notas de rodapé2. Sem nome, sem rosto, esses homens são definidos apenas como um efeito colateral de uma guerra da qual eles escolheram participar, assumindo o papel inimigo a ser combatido. Portanto, resta uma dúvida na história de Amarildo: o que fez com que a juventude católica, as bolhas das redes sociais, os manifestantes dos protestos de julho aderissem à causa de mais uma família que buscava por notícias dos seus?

Eliane Brum, na sua coluna na revista Época, diz que Amarildo era chamado pelos conhecidos pela alcunha de “boi”, pois era capaz de carregar dois sacos de cimento nas costas de uma só vez. Ganhando cerca de 300 reais por mês, Amarildo sustentava uma casa com seis filhos. Na visão de Brum, esse é o diferencial na história de seu desaparecimento: a figura de um homem pobre e submisso, que se esforça mais do que os outros para conseguir o pão de cada dia é fetichizada pelo senso comum e supervalorizada no capitalismo. Porque se Amarildo tivesse sido estigmatizado como um incapaz, usuário ou vendedor de drogas, seguindo a lógica de responsabilização individual, seu sumiço e sua morte seriam aquilo que, em O mal-estar da

pós-modernidade, Bauman considera uma versão contemporânea de

recompensa do pecado - uma recompensa do pecado que a sociedade moderna já não quer custear3:

“Não existe mais salvação pela sociedade” significa que não existem órgãos conjuntos, coletivos e visíveis encarregados da ordem

2

Cf. Eliane Brum. “Onde está Amarildo?” In: Revista Época. Disponível em: <http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/eliane-brum/noticia/2013/08/onde-esta-bamarildob.html>. Acesso em: 07/03/2017.

3

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 52.

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17 societária global. A responsabilidade pela situação humana foi privatizada e os instrumentos e métodos de responsabilidade foram desregulamentados. Uma rede de categorias abrangentes e universal desintegrou-se. O autoengrandecimento está tomando o lugar do aperfeiçoamento socialmente patrocinado e a autoafirmação ocupa o lugar da responsabilidade coletiva pela exclusão de classe. Agora, são a sagacidade e a força muscular individual que devem ser estirados no esforço diário pela sobrevivência4.

A confirmação do status de trabalhador de Amarildo fez com que seu destino fosse um pouco diferente do destino de outros homens, também pretos e pobres, que somem sem deixar rastros e que nunca tiveram a oportunidade de provar que não estão envolvidos com o crime organizado – ainda que nada seja capaz de legitimar o sumiço de um indivíduo, seja ele considerado criminoso ou não. O corpo de Amarildo nunca foi encontrado. Após seis meses de sumiço, a justiça decretou sua morte presumida e condenou, em 2016, doze policiais pelo seu desaparecimento e assassinato. Mas, afinal, o que a triste história de Amarildo tem a ver com esta dissertação?

Um dos contos que analiso neste trabalho é “Jurisprudência”, de Victor Giudice5. O conto em questão narra a história de um auxiliar de caldeireiro que, no primeiro de dia emprego, ao sair do trabalho, é confundido com um criminoso e acaba sendo detido, passando, assim, mais de cinquenta anos na prisão sem nunca ter sido julgado. É nesse momento, então, que encontro a relação entre a trágica história de Amarildo e o objeto desta pesquisa. Cipião, personagem da insólita narrativa de “Jurisprudência”, é, assim como Amarildo, um homem preto, pobre e periférico, um trabalhador submisso que tem a mesma cara dos inimigos que o Estado escolheu para que lotassem os presídios do País ou para que sumissem sem o alarde das redes sociais e cartas enviadas à autoridade máxima da igreja católica.

4

Idem, p. 54. 5

GIUDICE, Victor. “Jurisprudência”. In: ______. O Museu Darbot e outros mistérios. Rio de Janeiro: Leviatã, 1994. pp. 55-69.

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Além de “Jurisprudência”, analisarei, nesta dissertação, o conto “O Arquivo”, também do escritor Victor Giudice6

, que trata do universo do trabalho, da exploração e da alienação do trabalhador, ao narrar a história de um operário que tem sucessivamente violados os seus direitos trabalhistas e que aceita passivamente cada uma das punições aplicadas por seus empregadores, como se elas fossem prêmios pelo seu método ou pela sua conduta exemplar na fábrica.

“O Arquivo” também remete à história de vida de Amarildo, que é a história de tantos outros trabalhadores. Comumente, pessoas se veem obrigadas a aceitar empregos mal remunerados, exercendo funções exaustivas, não existindo para além daquilo que são capazes de produzir. A valorização em torno do status de trabalhador atribuído a Amarildo tornou seu desaparecimento um fato ultrajante. Sem isso, talvez ele fosse apenas mais um número nas estatísticas.

Contudo, vale frisar que Amarildo não é o objeto desta dissertação. Interessa-me a análise literária de “O Arquivo” e “Jurisprudência”, contos que trazem uma temática relacionada ao trabalho e à seletividade do sistema penal, na medida em que, a partir do estudo proposto, ganho espaço para tratar de alguns assuntos pertinentes na atual sociedade brasileira, como o encarceramento em massa da população pobre e periférica, a estreita relação existente entre a origem das prisões e a formação do modo de produção capitalista, ou o ataque ao Estado de bem-estar social, que vem sendo substituído por políticas neoliberais.

Para fazer esse tipo de análise, ainda que tenha por objeto textos literários, utilizo os conceitos da criminologia, que é uma ciência consolidada no currículo das faculdades de Direito, figurando como uma matéria acessória ao Direito Penal. Aqui, proponho um diálogo entre a criminologia e a literatura na tentativa de resgatar a primeira do pensamento jurídico-penal, que fixa limites de métodos e restrições de objetos a ser investigados.

Como vim de uma graduação em Direito, foi na literatura que encontrei um escape para as burocracias e a formalidade que o universo jurídico exigia. Através de um grupo de estudos interdisciplinares do qual eu fazia parte, o Literato, descobri a possibilidade de um intercâmbio entre essas duas áreas de conhecimento. Com um trabalho de conclusão de curso que partia da análise da novela de Machado de Assis “O alienista”, sob o viés da criminologia, elaborei um projeto de

6

GIUDICE, Victor. “O Arquivo”. In: ______. Necrológio. Rio de Janeiro: Editora do Pasquim, 1972. n.p.

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19 pesquisa que me trouxe ao mestrado em Literatura. Durante o curso de mestrado, fui apresentada, por minha orientadora, à obra do escritor carioca Victor Giudice, e a partir daí os rumos da dissertação que outrora pareciam já definidos começaram a tomar nova configuração.

Sem seguir os métodos da pesquisa específica em Direito e Literatura, que contam com mais de um século de tradição, diversas publicações e cadeiras próprias nas faculdades de Direito mundo afora, o que proponho aqui é uma leitura dos contos de Giudice a partir dos conceitos das criminologias, que, conforme explicado anteriormente, trata de uma disciplina nas faculdades de Direito, mas, ao mesmo tempo, se configura como uma pesquisa de múltiplas faces, presentes nos mais diversos meios acadêmicos e que tem como objeto específico o homem e suas relações, ainda que use o crime, a violência e controle social como justificativa na maioria dos casos.

Nesta dissertação pretendo demonstrar o papel fundamental da criminologia no esclarecimento do senso comum que encara a organização da sociedade dividida entre aqueles que representam o Bem (os “cidadãos”) e aqueles que representam o Mal, os excluídos e criminalizados, apontando a vigência do princípio dicotômico de Bem e Mal como constituinte da ideologia da defesa social. Através de uma aproximação dos contos “O Arquivo” e “Jurisprudência”, bem como dos conceitos trazidos pelo estudo das criminologias, e, ainda, da sua relação com a formação do modo de produção burguês, proponho-me a esclarecer como a disciplina e o valor do trabalho atuam sobre o cidadão e o criminalizado ao lhes conceder lugar (ou não) no sistema de produção capitalista.

O primeiro capítulo desta dissertação traz uma apresentação de Victor Giudice, sua vida e sua obra, o que sugiro aqui é uma reflexão acerca de uma das características mais marcantes de sua literatura: a figura do narrador giudiciano. Tomando por base, primeiramente, o conceito encontrado em Walter Benjamin no clássico ensaio “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” 7

e considerando o conceito de narrador pós-moderno trazido por Silviano Santiago8, busco analisar a desafetação com que a figura alienada do narrador de Giudice desmistifica a degradante sociedade de aparências

7

BENJAMIN, Walter. “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987.

8

SANTIAGO, Silviano. “O narrador Pós-moderno”. In:_____. Nas Malhas da Letra. Rio de Janeiro. Rocco, 2002, p. 44 – 60.

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em que vivemos. Focado na história de seu tempo, o narrador de Giudice se mantém impassível diante da devastadora realidade que o cerca; contando apenas com o que desperta indignação em seu leitor, a narrativa giudiciana revela em nós mesmos a cegueira a que nos submetemos.

O segundo capítulo pretende dar lugar à questão dos objetos centrais desse trabalho: O conto e a criminologia. Citando brevemente as características de cada um e aquilo que ambos teriam em comum, a partir da conceitualização do que seria o conto enquanto gênero literário, bem como de sua acertada definição enquanto decodificador dos pequenos fragmentos da realidade, vinslubro o encontro da literatura com a criminologia, esta que, por sua vez, não poderia ser classificada como uma ciência unívoca ou singular, mas fragmentada e múltipla. A melhor definição para os estudos do crime ou da criminalidade é o seu fator de fragmentação: são muitas as criminologias existentes e cada uma delas costuma ver o mundo de um ponto de vista diferente. Nesse capítulo, portanto, pretendo apresentar rapidamente cada um desses estudos para dar seguimento à dissertação.

No terceiro capítulo, trabalho com o conto “O Arquivo”, que será analisado a partir dos conceitos da literatura fantástica tradicional, com o suporte teórico de Tzvetan Todorov no livro Introdução à Literatura

Fantástica 9 assim como o conceito de literatura fantástica contemporânea, desenvolvido por Jean-Paul Sartre no ensaio “Aminabad, ou o fantástico considerado como uma linguagem”10

. O

conto “O Arquivo” traz a história de um operário submisso, condicionado ao trabalho e incapaz de reagir às opressões sofridas. Novamente, aqui proponho uma leitura desse conto a partir dos conceitos da criminologia, por meio dos quais trabalho a origem da prisão enquanto instituição punitiva e a sua função enquanto regime capaz de disciplinar corpos ao trabalho, tornando-se, assim, peça fundamental para a consolidação do modo de produção burguês.

No quarto capítulo será abordado o conto “Jurisprudência”, conto esse que me remete ao romance inacabado O Processo, escrito por Franz Kafka. A obra do escritor tcheco é o objeto de estudo de Albert

9

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2008.

10

SARTRE, Jean-Paul. “Aminadab ou o fantástico considerado como uma linguagem”. In: _______. Situações I. Cosac-Naify: São Paulo, p. 135-149, 2005.

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21 Camus em O Mito de Sísifo11, mais precisamente quanto à teorização acerca do conceito de Absurdo. Por isso, é a partir desse conceito que analiso, também, o texto ficcional de Giudice. Além disso, “Jurisprudência” é um conto que retrata a vida de um jovem encarcerado que passa cinquenta anos na prisão sem nunca ser levado a julgamento. Esse é um conto que está muito próximo dos referenciais de estudos da criminologia. Por isso, acho conveniente a discussão do texto por esse viés, haja vista que a ideia de um jovem pobre, periférico, capaz de despertar a desconfiança de policiais é bastante comum na realidade brasileira. O conto de Giudice parece mais uma crônica jornalística que não tem mais espaço nos periódicos em decorrência de sua regularidade.

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1. VICTOR GIUDICE A NARRAÇÃO DO

FIM DA HISTÓRIA

"o mundo da literatura é um universo no qual é possível fazer testes para estabelecer se um leitor tem o sentido da realidade ou é presa de suas próprias ilusões." (Umberto Eco)

Dono de uma obra diversa e experimental, Victor Giudice se apropriou da literatura para transformá-la em sua arma contra a passividade e a alienação de seu tempo. Ao desobedecer aos padrões da escrita, o autor carioca foi capaz de desenvolver uma obra transgressora e corajosa, que encara a existência humana e aponta nossa passividade ante a realidade trágica a que estamos submetidos.

No capítulo de abertura desta dissertação, proponho a apresentar esse escritor que não conquistou em vida todo o reconhecimento que merecia, levando uma vida comum, sem fama. É através de sua narrativa peculiar e incisiva que Victor Giudice demonstra a extraordinária capacidade de chocar, mostrando-nos justamente o que não queremos ver.

Ao trazer dados da vida de pessoal de Giudice, não se quer dizer necessariamente que exista uma relação direta entre a sua obra e aquilo que ele foi ou pensou. Como afirma Goldmann, a vida, as experiências ou o propósito de um escritor não se constituem enquanto elementos essenciais para a compreensão de sua obra, afinal, “quanto mais a obra é importante, mais vive e se compreende por si mesma e mais pode ser explicada diretamente pela análise do pensamento de diferentes classes sociais”12

.

Além disso, por analisar dois contos de Victor Giudice pelo viés da criminologia, não gostaria, nesta dissertação, de incorrer no erro de tornar o texto literário apenas instrumento de análise social ou criminológica, pois, como afirma Magalhães13, não é obrigação do

12

GOLDMANN, Lucien. Dialética e cultura. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1979. p.77

13

MAGALHÃES, Belmira. Da impossibilidade da festa à festa possível. Maceió: EDUFAL, 2007. p. 33.

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escritor copiar a realidade ou apenas discorrer sobre uma verdade, mas antes e sobretudo, sua função é a de criador. A obra de arte é um objeto concreto que pode refletir em alguns aspectos a realidade, e sua análise, portanto, deve ser feita na integralidade, considerando tanto os aspectos estéticos quantos os sociais e históricos, fundindo o texto e contexto, assim como sugere Antonio Candido:

É o que vem sendo percebido ou intuído por vários estudiosos contemporâneos, que, ao se interessarem pelos fatores sociais e psíquicos, procuram vê-los como agentes da estrutura, não como enquadramento nem como matéria registrada pelo trabalho criador; e isto permite alinhá-los entre os fatores estéticos. A análise crítica, de fato, pretende ir mais funda, sendo basicamente a procura dos elementos responsáveis pelo aspecto e o significado da obra, unificados para formar um todo indissolúvel, do qual se podem dizer, como Fausto dos Macrocosmos, que tudo é tecido num conjunto, cada coisa vive e atua sobre a outra.14

Nesse sentido, pretendo, neste capítulo, além de fazer uma apresentação do homem e do escritor Victor Giudice, analisar um dos aspectos mais marcantes de sua literatura: a figura do narrador giudiciano. A partir da leitura do texto “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, de Walter Benjamin15

, e do conceito de narrador pós-modermo de Silviano Santiago16, trato a questão dessa figura emblemática que surge no texto de Giudice, quase sempre envolta em uma aura de desafetação e indiferença, ainda que esteja diante das situações mais degradantes a que costumam ser submetidas as personagens giudicianas.

14

CANDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. p.10.

15 Op. cit. 16

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25 1.1. VIDA E OBRA

Vindo de uma família de artesãos de origem italiana, Victor Mariano Del Giudice nasceu em Niterói, no dia 14 de fevereiro de 193417. Aos cinco anos de idade, mudou-se com a família para o bairro São Cristóvão, no Rio de Janeiro, e, como ele mesmo afirmava, “quando se nasce e se cresce em São Cristóvão, logo se aprende que em São Cristóvão todas as coisas são de São Cristóvão”. Tomado como cenário predileto de seu universo ficcional, o bairro onde viveu a maior parte de suas experiências de infância e adolescência foi retratado em diversos contos pelo escritor.

Através de muita criatividade e imaginação, Giudice foi capaz de traduzir São Cristovão das mais variadas formas e em diversos momentos de sua obra. No livro O Museu Darbot e outros mistérios18, São Cristovão aparece em muitos contos, mas a mágica que o bairro possuía para Giudice fica evidenciada no conto “A única vez”. Misturando ficção e realidade, o conto reproduz um encontro inesperado entre o filho e o pai morto há mais de quarenta anos; a emoção e a afetividade que o bairro da zona central do Rio de Janeiro desperta no escritor ficam evidenciadas logo no início do conto:

Meu pai morreu há quarenta e quatro anos, no dia 30 de outubro de 1950. Estava beirando os sessenta. Todas as manhãs ia para o trabalho num Ford cupê 1946, verde escuro, de duas portas, placa 22152. Nosso apartamento, em São Cristóvão, não tinha garagem e o carro dormia na rua. Meu pai se preocupava com a pintura: o sereno desbotava o verde escuro etc.

Mas isso tudo ficou lá.

Ontem, às seis da tarde, quando eu voltava para a Tijuca, passei pela Praça da Bandeira e me lembrei de meu pai19.

Mesmo tendo sido criado em um bairro de classe média, a infância de Victor Giudice foi muito rica de oportunidades culturais, o

17

Disponível em: <http://www.victorgiudice.com>. Acesso em 10/01/2017. 18

Op. cit. 19

GIUDICE, Victor. “A única vez”. In: ______. O Museu Darbot e outros mistérios. Rio de Janeiro: Leviatã, 1994. p. 11.

(26)

26

que lhe permitiu, desde menino, desenvolver o gosto pela arte e pela erudição. Victor sempre demonstrou intenso interesse por música, cinema e fotografia, encontrando na família encorajamento para seguir no campo das artes. A primeira professora de canto e piano foi uma tia; o pai, desde os primeiros anos de Giudice, atuou como um grande incentivador, acompanhando o menino em sua primeira visita ao Teatro Municipal do Rio do Janeiro e fazendo deste um frequentador assíduo de recitais de ópera e de piano.

Formado em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro no ano de 1975, Giudice ainda iniciou os cursos de Ciências Estatísticas e Direito, sem nunca concluir, e ministrou aulas de Literatura em escolas e universidades. Entretanto, passou a maior parte de sua vida trabalhando como funcionário público do Banco do Brasil, seguindo uma rotina burocrática e alienante, que foi fonte de muitos dos enredos de seus livros. Ao ler o conto “In perpetuum”, por exemplo, que descreve a vida de um funcionário de banco e sua rotina imutável no decorrer dos anos, é possível notar todo o desconforto consciente de Giudice diante da exploração sistêmica da qual era parte:

Debi Mediocriz come sem pressa. De olhos baixos, no caminho da parada de ônibus, fumando o primeiro cigarro. [...]

Para quê?

Para assinar o ponto, para guardar o blusão azul no armário, para vestir uma camisa amarelada, para enfiar o pescoço numa gravata marrom de laço feito, para acenar aos colegas acenantes, para se sentar no trabalho, para tirar da gaveta um monte de fichas brancas, para meditar sobre uma fita de papel com números impressos [...]20.

Além de enredos ambientados em seu cotidiano de trabalho, encontramos no burocrata Giudice uma obra atravessada por diversas referências artísticas e culturais que evidenciam a vida repleta de erudição e refinamento. Entre as aulas de piano, teatro e desenho, o

20

GIUDICE, Victor. “In perpetuum”. In: ______. Necrológio. Rio de Janeiro: Editora do Pasquim, 1972.

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27 interesse pela arte acompanhou o escritor vida afora como uma espécie de expurgo de sua rotina na repartição pública.

O conto “O Museu Darbot”, por exemplo, narra a biografia ficcional de Jean-Baptiste Darbot, grande pintor desconhecido que nasceu na França e mudou-se para o Rio de Janeiro. No desenrolar do conto, encontram-se muitas referências do grande conhecedor das artes que era Victor Giudice, além, é claro, de uma visão apurada e uma crítica contundente ao sórdido negócio em que a arte se transformou. Em um trecho do conto, Giudice revela a forma controversa como foi produzida a obra de Jean-Baptiste:

Durante muito tempo eu me perguntei se aquilo não passava de uma falsificação criminosa. Meu pai e minha mãe achavam que sim. Principalmente depois da venda explosiva a Tarik Benzayad. Minha força e sobretudo minha confiança brotavam de Tia Zuzu. Foi ela que me deu ânimo para ir em frente. Tia Zuzu tinha certeza de que minhas tesouradas eram apenas correções necessárias. Uma vez, ela me mostrou um artigo sobre contrafações de pintura, no qual se dizia que raras eram as obras que nunca foram retocadas depois de dez, vinte anos. E como sempre, ela sentenciava:

-- Até a Mona Lisa foi retocada. Quando você recorta e parte de baixo de uma dessas telas, você só está dando um retoquezinho, e pronto21

A arte sempre foi o seu norte. Mesmo impossibilitado de abrir mão do emprego que o sustentava, Giudice nunca se distanciou daquilo que seria o motriz de sua existência. O autor teve uma experiência como ator em um longa-metragem, foi compositor de música erudita, ópera e sambas-enredos, escreveu peças de teatro, teve fotografias suas publicadas n’O Cruzeiro e no Semanário Crítica, escreveu poesia, contos e romances, e ainda depois de se aposentar, em 1986, no banco

21

GIUDICE, Victor. “O Museu Darbot”. In: ______. O Museu Darbot e outros mistérios. Rio de Janeiro: Leviatã, 1994.

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28

em que trabalhava, conquistou admiração do público como crítico de música erudita do Jornal do Brasil22.

Em relação a sua obra, esta teve a primeira oportunidade de publicação em 1969. Foi no Jornal do Escritor, com o conto chamado “O Banquete”, precedida da publicação de “In perpetuum”, conto que, em seguida, fez parte do seu aclamado livro de estreia Necrológio. A partir de então, a produção ficcional de Victor Giudice seguiu na configuração daquilo que Antonio Candido classifica como o tom das letras dos anos 60 e 70: uma literatura experimental, renovadora, de vanguarda estética e amargura política, descrita da seguinte maneira:

No decênio de 70 pode-se falar em verdadeira legitimação da pluralidade. Não se trata mais de coexistência pacífica das diversas modalidades de romance e conto, mas do desdobramento destes gêneros, que na verdade deixam de ser gêneros, incorporando técnicas e linguagens nunca dantes imaginadas dentro de suas fronteiras. Resultam textos indefiníveis: romances que mais parecem reportagens; contos que não se distinguem de poemas ou crônicas, semeados de sinais e fotomontagens; autobiografias com tonalidade e técnica de romance; narrativas que são cenas de teatro; textos feitos com a justaposição de recortes, documentos, lembranças, reflexões de toda a sorte23.

Necrológio foi lançado pela editora Cruzeiro em 1972 e

corresponde exatamente às características apresentadas por Candido anteriormente. O experimentalismo e a inovação trazidos pelo autor nesse livro foram muito bem recebidos pela crítica, possibilitando que alguns dos contos que compõem a obra fossem publicados no exterior.

Além de Necrológio, Giudice publicou outros três livros de contos: Os Banheiros, em 1979, obra que fez com que o autor fosse comparado a grandes gênios da literatura mundial, como Edgar Allan Poe, Cortázar e Borges; Salvador Janta no Lamas, em 1989, que, com tom biográfico, faz muitas referências a suas próprias

22

Disponível em: <http://www.victorgiudice.com>. Acesso em 10/01/2017. 23

CANDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. p. 253.

(29)

29 lembranças, com um Rio de Janeiro construído afetivamente em sua memória; Museu Darbot e outros mistérios, em 1994, livro que deu ao escritor o prêmio Jabuti de 1995 e que trouxe como tema central a arte sob uma contundente reflexão acerca da sociedade em geral e do próprio cânone, do qual Victor, injustamente, não chegou a fazer parte.

Giudice publicou dois romances em vida: Bolero, de 1985, e O

Sétimo Punhal, de 1995, deixando inacabado o romance chamado O catálogo das flores, publicado logo após a sua morte, em novembro de

1997.

Na obra de Giudice, encontram-se seres mágicos, metamorfoses e universos paralelos. Este trabalho, entretanto, atenta para aquilo que norteia grande parte da escrita de Giudice: seu narrador alienado, perplexo e conformado, que reporta, de maneira insípida, cenas que provocam a revolta do leitor, de modo que este não consiga, de fato, apreender o sentido do que está sendo narrado. Conforme afirma Nelly Novaes Coelho,

A contundência maior das denúncias patentes ou latentes na ficção giudiciana vem da contradição entre a natureza de seu discurso narrativo (objetivo, impessoal, despojado de emotividade, calculadamente “burocratizado” e percorrido por humor) e a natureza de sua “fabula” (a tragédia Humana sem horizonte de possível redenção)24.

Na sequência deste capítulo, trato desse narrador passivo e da expectativa de Giudice em relação ao seu leitor. A fantasia com que retrata seu universo demonstra o tamanho da sua lucidez enquanto homem comum, isto é, um trabalhador que se reconhece explorado, e enquanto um escritor que fez de seu texto ácido e vivo um manifesto revolucionário.

24

COELHO, Nelly Novaes. “Necrológio: um realismo ao avesso”. In: ______. Escritores brasileiros do século XX. São Paulo: Letra Selvagem, 2013. p. 939.

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30

1.2. NARRATIVA PÓS-MODERNA EM VICTOR GIUDICE

O narrador é capaz de retratar o que ouve, o que vê e o que vive, dando testemunho do mundo através de suas palavras. A narrativa, porém, não está isenta de imaginação, de sonhos ou desejos; como afirma Moraes Leite 25, a narração e a ficção nascem juntas e são tão antigas quanto a capacidade do homem de se comunicar.

Nelly Novaes Coelho, em seu artigo “Necrológio: um realismo ao avesso”26

, traz o seguinte comentário a respeito da obra de Victor Giudice, feito por Olga Savary : “[Victor Giudice] investe contra os mecanismos sociais opressivos, dos quais é vítima e delator. O absurdo e a injustiça são os parafusos da engrenagem desse mecanismo social. Victor é o repórter atento desse sistema”27

.

Ao alegorizar a denúncia da nossa torpeza, o narrador de Giudice se rebela contra o sistema sem nunca alterar sua voz. Conforme advertido pela crítica, o narrador age como um correspondente de guerra observando e descrevendo os fatos, sem emitir qualquer julgamento, dar uma resposta ou sugerir uma solução, contando apenas com a pretensa indignação de seu leitor-modelo.

Coelho afirma, ainda, que a impassibilidade emotiva com que o narrador de Victor Giudice conta a tragédia humana é uma das marcas mais importantes da ficção pós-moderna. Longe daquele romancista humanista que representa mazelas sociais por meio da revolta, o narrador pós-moderno de Giudice assume uma alienação imperante e atua como partícipe da degradação humana, na medida em que relata friamente a naturalização das circunstâncias que oprimem as personagens28.

No texto crítico “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, Walter Benjamin afirma que, por mais familiar que soe seu nome, o narrador nunca está presente entre nós. Benjamin inicia o ensaio já anunciando a extinção da arte de narrar. São cada vez mais raras, de acordo com o pensador alemão, as pessoas que sabem narrar corretamente, e essa dificuldade seria uma espécie de privação de uma

25

LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo (ou A polêmica em torno da ilusão). São Paulo: ática, 1985. Série Princípios. (p. 25-70)

26

COELHO, Nelly Novaes Op. cit. 27

SAVARY, Olga, 1973 apud COELHO, 2013 [op. cit.]. p. 926. 28

(31)

31 faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências29. Segundo o autor,

Uma das causas desse fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo. Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo que nunca, e que da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior, mas também a do mundo ético sofreram transformações que antes não julgaríamos possíveis30.

Ainda conforme Benjamin, o evento da Guerra Mundial foi decisivo na desvalorização da experiência, afinal, o que se observou, com o final da Guerra, foi que os soldados voltavam dos campos de batalhas em silêncio, empobrecidos de experiência comunicável. O crítico afirma que nunca houve vivência mais radicalmente desmoralizada do que essa. A justificativa está no fato de que essa geração de homens, que ia à escola em bondes puxados por cavalos, enxergou o diminuto tamanho do corpo humano diante da imensa devastação causada pelas bombas e explosões incontidas.

No mesmo texto, Walter Benjamin classifica o narrador em três categorias de narrativa. A primeira, a narrativa clássica ou tradicional, que tem sua origem na oralidade; a segunda seria a narrativa de romance, que ganha destaque a partir da invenção da imprensa e do livro impresso; por fim, a terceira é a narrativa jornalística ou de informação, que foi impulsionada pela ascensão da burguesia e permanece até hoje como braço do capitalismo.

Para o crítico alemão, as melhores narrativas escritas seriam aquelas capazes de se igualar às narrativas orais contadas pelos inúmeros indivíduos anônimos, uma vez que a fonte de todas as narrativas se encontra na troca de experiências entre as pessoas. A categoria classificada por Benjamin como a verdadeira narrativa, capaz de fazer esse intercâmbio de vivências, é a narrativa clássica ou tradicional. O valor do narrador tradicional, por sua vez, estaria em sua capacidade de dar conselhos, transmitir sabedoria, falar exemplarmente,

29

Idem p. 197. 30

(32)

32

imergir em si mesmo e, a partir disso, trazer vigor para o que está sendo narrado, incorporando à narrativa sua própria experiência e carregando consigo algum ensinamento moral na forma de uma sugestão prática ou por meio de uma norma de vida.

Nesse sentido, o que se vê é que Victor Giudice mantém seu narrador sempre a uma distância considerável do narrador tradicional benjaminiano. O caráter proverbial utilitarista da narrativa tradicional não pode ser encontrado na escrita burocratizada e seca de Giudice. Quando imerso nas cenas grotescas e insólitas nas quais os personagens estão envoltos, o narrador giudiciano se mantém como se estivesse apenas a transmitir as informações, isento de qualquer julgamento.

Um exemplo da apatia do narrador pode ser encontrado no conto “A lei do silêncio”, que tem por enredo a cena de um assassinato, diante do qual o policial chamado para atender à ocorrência presencia um feminicídio tomado pela indiferença. O oficial notifica o assassino apenas pelo barulho causado durante o disparo dos tiros que mataram sua esposa, ignorando completamente o corpo sem vida que repousa sobre o tapete da sala. Em seguida, o policial inicia um diálogo absurdo com o homicida, por meio do qual ambos trocam informações referentes a peças de colecionador e outras trivialidades sem a menor relação com o crime ali testemunhado.

A descrição do narrador segue como se a grande tragédia se resumisse ao sangue que manchara o tapete caro ou à estátua quebrada em decorrência de um erro de mira do atirador. Impassível, o narrador não se comove ou se indigna, de modo que a cena de violência é mantida em segundo plano:

Aproximou-se da mulher o mais que pode e desfechou o quarto tiro. Bem melhor. Pela posição da mancha devia ter atingido o estômago. Pelo menos, os movimentos se tornaram mais lentos e os gritos mais abafados. O tapete é que ficaria imprestável. Quanto não custaria hoje um legítimo Lurçat de cinco por quatro? Talvez fosse esta a causa da perfeição obtida nos dois últimos disparos. Na meia hora seguinte, recolheu os cacos da estatueta, prevendo uma possível reconstituição e passou

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33 algum tempo examinando as nódoas do tapete, maldizendo uma impossível lavagem31. Com um discurso narrativo direto e inabalável, Giudice é capaz de contar as maiores atrocidades criadas por uma mente humana. Seus personagens são colocados, a todo o momento, em situações paradoxais, enquanto o narrador giudiciano não demonstra qualquer sinal de estranhamento ou empatia. Pelo contrário, ele segue linearmente, sem emitir opinião ou lançar dúvida sobre a veracidade dos fatos narrados, se distanciando, portanto, da definição trazida por Benjamin do narrador tradicional:

Assim definido, o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida. Daí a atmosfera incomparável que circunda o narrador, em Leskov como em Hauff, em Poe como em Stenvenson. O narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo32.

É preciso notar que esse tipo de narrativa, tão cara a Benjamin, entra em declínio junto com o declínio da troca de experiências citada anteriormente. Isso faz com que a narrativa de romance, já muito antiga, ganhe o espaço antes ocupado pela narrativa clássica, na medida em que o romance é impulsionado pela invenção da imprensa. Rompendo com o ciclo da tradição oral, a narrativa de romance está intimamente ligada ao livro e à escrita, como salienta Benjamin:

31

GIUDICE, Victor. “A lei do silêncio”. In: ______. Os Banheiros. Rio de Janeiro: Codecri, 1979. pp. 33-34.

32

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O que separa o romance da narrativa (e da epopéia no sentido estrito) é que ele está essencialmente vinculado ao livro. A difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa. A tradição oral, patrimônio da poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa - contos de fada, lendas e mesmo novelas - é que ele nem procede da tradição oral nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los. Escrever um romance significa, na descrição de uma vida humana, levar o incomensurável a seus últimos limites33. Portanto, a grande diferença entre o narrador clássico e o narrador de romance é que o primeiro utiliza a experiência, seja a dele ou a de outros, para narrar uma história construída a partir do intercâmbio entre narrador e ouvinte. Já o narrador de romance conta uma história fechada, sem que haja troca; ele se mantém à espera do leitor, se isola sem conseguir dar ou obter conselhos, evidenciando unicamente a experiência que se consolida na mente do autor do romance. Na medida em que se afasta da experiência coletiva, o narrador torna evidente a solidão do autor e a do leitor do texto, o que, em última instância, representa a solidão da própria sociedade industrial capitalista.

Com a consolidação da burguesia, a terceira classificação de narrativa feita por Benjamin passa a se destacar, tornando-se um dos instrumentos mais importantes do capitalismo. Tão distinta da narrativa clássica quanto do romance, a narrativa de informação constitui uma ameaça muito mais poderosa do que a anterior narrativa de romance.

A informação surge como uma narrativa que necessita de validação imediata, com fatos que já chegam acompanhados de explicações e esvaziados de sentido, sendo, por isso, impossibilitados de

33

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35 qualquer reinterpretação. A informação só existe no exato momento em que foi criada, contrariando a narrativa clássica. Sobre esta, Benjamin tece uma comparação relacionada às sementes de trigo, que durante milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente nas câmaras das pirâmides, mas que conservam até hoje suas forças germinativas.

Benjamin34 ressalta que, com a informação, recebemos notícias do mundo todo a cada manhã, mas lamenta nosso empobrecimento de histórias que surpreendam. A veracidade imposta à narrativa de informação deslegitima a narrativa clássica no aspecto da fé no que foi dito, nos saberes que circulam pelos séculos e que são incapazes de ser provados, mas que, ao mesmo tempo, são cheios da autoridade adquirida pelas vivências do narrador e do próprio ouvinte.

A respeito das mudanças nas formas de narrativas, o teórico alemão nos lembra que elas ocorrem ao longo dos milênios de forma muitíssimo lenta, podendo ser comparadas às movimentações ocorridas na crosta terrestre. Foi justamente esse fator que colaborou para a manutenção da narrativa clássica, que necessita ser moldada pelas mãos do narrador de forma artesanal através do intercâmbio das experiências. A partir da ascensão da burguesia, entretanto, o mundo passa a se movimentar mais rapidamente e consolida a informação como forma da narrativa moderna, colocando em risco, assim, a sobrevivência da narrativa tradicional.

Devemos imaginar a transformação das formas épicas segundo ritmos comparáveis aos que presidiram à transformação da crosta terrestre no decorrer dos milênios. Poucas formas de comunicação humana evoluíram mais lentamente e se extinguiram mais lentamente. O romance, cujos primórdios remontam à Antiguidade, precisou de centenas de anos para encontrar, na burguesia ascendente, os elementos favoráveis a seu florescimento. Quando esses elementos surgiram, a narrativa começou pouco a pouco a tornar-se arcaica; sem dúvida, ela se apropriou de múltiplas formas, do novo conteúdo, mas não foi determinada verdadeiramente por ele. Por outro lado, verificamos que com a consolidação da burguesia - da qual a imprensa, no alto

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capitalismo, é um dos instrumentos mais importantes - destacou-se uma forma de comunicação que, por mais antigas que fossem suas origens, nunca havia influenciado decisivamente a forma épica. Agora ela exerce essa influência. Ela é tão estranha à narrativa como o romance, mas é mais ameaçadora e, de resto, provoca uma crise no próprio romance. Essa nova forma de comunicação é a informação35.

As transformações nas formas de narrar citadas por Benjamin também dizem respeito às transformações históricas ocorridas no mundo. O declínio da troca de experiências também é o declínio da ética e o empobrecimento da própria experiência humana, tendo por consequência vivências como as das guerras, da inflação e da percepção da fragilidade do homem diante de bombas e explosões que minam até mesmo a possibilidade de comunicação. Como afirma Löwy a respeito de Benjamin, essa visão nostálgica tanto da narrativa quanto do mundo não torna seu pensamento retrógrado, mas, antes de tudo, é um pensamento crítico sobre a “quantificação e a mecanização da vida, a reificação das relações sociais, a dissolução da comunidade e desencantamento do mundo”36

.

A coisificação do homem trazida pelo capitalismo transforma experiências em traumas e alimenta a alienação em que a sociedade está inserida, ao mesmo tempo em que a informação massificada parece adequada a uma sociedade que se baseia no consumo e na mercantilização da vida. A sabedoria e a experiência necessitam de tempo para serem construídas e transmitidas; por isso, em meio à acelerada produção da sociedade industrial, não haveria espaço para o desenvolvimento da narrativa clássica.

Entretanto, apesar do pessimismo benjaminiano quanto às novas narrativas advindas desse processo, o desconforto e estranhamento de alguns autores podem revelar formas brilhantes de compartilhamentos e transmissão de conteúdo artístico. A literatura de Giudice encontra-se justamente nesse desconforto, uma vez que, descolado de qualquer emoção, o narrador giudiciano foge daquilo que Benjamin chama de

35

idem, p. 202. 36

LÖWY, Michael. Walter Benjamin – Aviso de Incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de História”, de Walter Benjamin. Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2005. p.18.

(37)

37 comunicação artesanal do narrador clássico (que seria o imergir na própria vida do narrador, trazendo de lá seus registros impressos na narrativa).

Em Giudice, assim como na narrativa de informação, há interesse na transmissão do puro em si da coisa narrada, como uma espécie de relatório informativo. Nesse sentido, percebemos que o narrador giudiciano está muito próximo do narrador pós-moderno trazido por Silviano Santiago37. Esse narrador tenta extrair a si mesmo do texto narrado, como um repórter ou um espectador que percebe a ação como espetáculo, nunca como atuante da narrativa, afinal, para o ensaísta mineiro, é o movimento de distanciamento e rechaço da narrativa clássica que dá à narrativa o aspecto pós-moderno.

No ensaio “O Narrador pós-moderno”, Santiago dialoga com Walter Benjamin ao analisar os contos de Ediberto Coutinho, e afirma que o autor alemão crê que a humanidade se encontra privada da capacidade de troca de experiência. Por isso, Benjamin desvaloriza as características existentes na narrativa de informação, que seria incapaz de transmitir qualquer sabedoria. Isso é evidente na síntese que Santiago faz da evolução das formas de narrativas:

Dessa forma, Benjamin pode caracterizar três estágios evolutivos por que passa a história do narrador. Primeiro estágio: o narrador clássico, cuja função é dar ao seu ouvinte a oportunidade de um intercâmbio de experiência (único valorizado no ensaio); segundo: o narrador do romance, cuja função passou a ser a de não mais poder falar de maneira exemplar ao seu leitor; terceiro: o narrador que é jornalista, ou seja, aquele que só transmite pelo narrar a informação, visto que escreve não para narrar a ação da própria experiência, mas o que aconteceu com X ou Y em tal lugar e tal hora. Benjamin desvaloriza (pós-moderno valoriza) o último narrador38.

De acordo com Santiago, o narrador pós-moderno, ao subtrair-se da ação presente no conto, se identifica com um segundo observador: o

37

SANTIAGO, Silviano. “O narrador Pós-moderno”. In:_____. Nas Malhas da Letra. Rio de Janeiro. Rocco, 2002, p. 44 – 60

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38

leitor. “Ambos se encontram privados da própria experiência na ficção e são observadores atentos à experiência alheia”39

. No caso, a pobreza na troca de vivências entre leitor e narrador ressalta a real importância da personagem na ficção.

Santiago atenta para a questão de quem verdadeiramente poderia narrar uma história, se seria aquele que a experimenta ou aquele que a observa, se seria aquele que narra a partir das ações de que participa por si mesmo ou aquele que narra ações das quais foi testemunha, e, dali, adquiriu algum tipo de conhecimento.

Ao responder a este questionamento, Santiago contraria a ideia de Benjamin, que sugere a impossibilidade da transmissão de sabedoria sem o mergulho na experiência da coisa narrada. Para Santiago, o narrador de informação ou pós-moderno é capaz de transmitir uma sabedoria por meio de observações das vivências alheias a ele. Isso, por si só, caracteriza-o como um puro ficcionista, capaz de conferir autenticidade a uma ação que não é respaldada pela empiria, sabendo que a realidade é uma construção da linguagem.

Essa reviravolta estética não é sem conseqüência para o tópico que queremos discutir, visto que a figura do narrador passa a ser basicamente a de quem se interessa pelo outro (e não por si) e se afirma pelo olhar que lança ao seu redor, acompanhando seres, fatos e incidentes (e não por um olhar introspectivo que cata experiências no passado)40.

Santiago salienta, ainda, que o homem contemporâneo tem mesma postura do narrador: ele se mantém como mero espectador, seja de ações vividas, ações ensaiadas ou representadas, guardando uma postura de quem, mesmo fora da ação, consegue sentir, pensar e se emocionar.

A literatura pós-moderna existe para falar da pobreza da experiência, dissemos, mas também da pobreza da palavra escrita enquanto processo de comunicação. Trata, portanto, de um diálogo de surdos mudos, já que o que realmente vale na

39

idem, p. 51. 40

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39 relação a dois estabelecida pelo olhar é uma corrente de energia, vital, silenciosa, prazerosa e secreta41.

Nos contos que pretendo analisar nessa dissertação, a narrativa predominante se dá em terceira pessoa, com um narrador onisciente seletivo cujo ponto de vista está sempre muito próximo da personagem central da trama. “O Arquivo”, assim como “Jurisprudência”, apresenta um exemplo claro daquela definição de narrador pós-moderno trazida por Santiago.

Em “O Arquivo”, conto que narra a história de um trabalhador que, após um ano de trabalho, recebe como prêmio por seu bom comportamento uma redução salarial, notamos que o narrador mantém certo distanciamento da cena, assumindo na maioria das vezes uma postura neutra em relação à personagem. Esse narrador se compromete apenas com o relato dos fatos acontecidos, sem lançar um julgamento referente àquilo que conta. Mesmo diante de uma realidade objetificante vivenciada pela personagem, esse narrador não altera sua naturalidade e indiferença em relação à história.

Com uma linguagem seca e protocolar, o narrador de “Jurisprudência” dá a impressão de não se comover com a condenação prévia recebida pela personagem, sem que esta tivesse a menor chance de defesa. Com poucas informações referentes àquilo que antecede o momento infausto da prisão, o narrador giudiciano se mantém como um observador no centro da cena, desvendando os acontecimentos, assim como o leitor, no desenrolar da própria trama.

Além da afinidade entre narrador e leitor existente na escrita de Giudice, o que mais chama atenção em seus contos é a reação, ou a falta dela, por parte de seus narradores. A sensação que temos em relação à resposta destes quando alguma emoção é revelada é a de que geralmente ela é sentida pelo próprio protagonista, e que não passa de uma exposição dos sentimentos experimentados. É possível notar esse procedimento na descrição espacial feita pelo narrador no seguinte excerto do conto “Jurisprudência”:

A partir daí, as lembranças começam a funcionar como um pesadelo. Caminhou por uma infinidade de corredores de cem metros, que a memória dilata para quilômetros, e

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40

terminou numa cela de dois metros, que a memória reduz para centímetros. Acorrentados na parede, equilibravam-se dois estrados cobertos por colchões muxibentos42.

Ao narrar as tragédias vivenciadas pelo homem, Giudice nos choca com a passividade de seu narrador. A naturalidade assumida diante do insólito e do grotesco são marcas da denúncia do escritor acerca do comportamento que banaliza a barbárie e adota a alienação como forma de seguir ignorando o que deveria ser posto em xeque.

Nesse sentido, sem aprofundar muito a teorização do conceito de ironia, pode-se assumir esse alheamento do narrador giudiciano como um recurso irônico de sua literatura. Linda Hutcheon43 no livro Teoria e

política da ironia, afirma que ironia é algo que surge da percepção das

contradições ideológicas existentes e da necessidade de enfrentamento e de transformação que essas contradições demandam. Além disso a ironia seria capaz de provocar respostas emocionais tanto naqueles que a identificam em um texto quanto nos que não a percebem.

Hutcheon44 ainda afirma que a ironia questiona nossas certezas e revela o mundo como uma ambiguidade. Isso fica evidente quando estamos diante do narrador de Giudice: já que os sentidos deixam de ter o significado que esperávamos que tivessem, não há revolta no momento em que esperamos uma revolta, não há indignação quando esperamos qualquer indignação. Nossos valores são questionados diante da ambivalência de sua narrativa, e então somos colocados diante de um espelho que reflete a nossa própria indiferença.

42GIUDICE, Victor. “Jurisprudência”. In: ______. O Museu Darbot e outros mistérios. Rio de Janeiro: Leviatã, 1994. p. 68.

43

HUTCHEON, Linda. Teoria e política da ironia. Trad. Julio Jeha. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. p.56

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2. A FRAGMENTAÇÃO COMO TEMA

"Eu me interesso pela linguagem porque ela me fere ou me seduz." (Roland Barthes)

Conforme demonstrado anteriormente, Victor Giudice foi um escritor múltiplo, que se dedicou com afinco a todos os seus projetos. Com a escrita de romances, músicas e peças de teatro, o artista carioca se destacou em cada um de seus empreendimentos. Nesta dissertação, escolhi trabalhar com o contista Victor Giudice, pois foi através de seu texto curto e direto que o escritor foi capaz de questionar os paradigmas impostos pelo meio social e, ainda, denunciar a inércia e a alienação que regem a sociedade de aparências na qual vivemos, pois, para além de sua potência narrativa, Giudice foi capaz de se mostrar sempre atento ao contexto em que estava inserido.

Os contos escolhidos para análise são “O Arquivo”, que é parte do seu aclamado livro de estreia (Necrológio), e “Jurisprudência”, conto que integra o livro vencedor do prêmio Jabuti-Ficção de 1995, intitulado

O Museu Darbot e outros mistérios. Essa analise será feita a partir de

conceitos teóricos da literatura, como veremos mais adiante, mas, acima de tudo, o que pretendo neste trabalho é discutir, por meio da criminologia, a sociedade brasileira contemporânea.

Sobre a criminologia, Salo de Carvalho45 afirma que esta se consolidou como ciência dentro da esfera jurídico-penal. Mesmo que a sua pesquisa seja pluralista e com ramificações nas mais diversas áreas de saber, Carvalho acredita que a restrição burocratizada e historiografada imposta pela concepção científica da criminologia faz com que seu ensino acabe se limitando a manuais e tratados que dão um aspecto linear e evolutivo a suas pesquisas e distanciam o pesquisador do mundo real. Já a literatura de acordo com Foucault:

faz parte desse grande sistema de coação através do qual o Ocidente obrigou o cotidiano a se pôr em discurso; mas ela ocupa um lugar particular: obstinada em procurar o cotidiano por baixo dele mesmo, em ultrapassar os

45

CARVALHO, Salo. Antimanual de Criminologia. 6a ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 154.

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limites, em levantar brutal ou insidiosamente os segredos, em deslocar as regras e os códigos, em fazer dizer o inconfessável, ela tenderá, então, a se pôr fora da lei ou, ao menos, a ocupar-se do escândalo, da transgressão ou da revolta. Mais do que qualquer outra forma de linguagem, ela permanece o discurso da “infâmia”: cabe a ela dizer o mais indizível – o pior, o mais secreto, o mais intolerável, o descarado 46.

Nesse sentido, acredito que a literatura seria capaz de promover a reconciliação da criminologia com o humano e o real que visa conhecer, rompendo os limites científicos em que ela está inserida e aproximando esse saber do seu objeto de estudo. Porque o crime, a violência ou até mesmo o sistema penal são recorrentes nas grandes obras literárias; Machado de Assis, Lima Barreto e Jorge Amado, por exemplo, apropriando-se de seu contexto e de sua realidade, traduziram sua época com narrativas que transbordam humanidade.

Para citar exemplos contemporâneos, por que não falar de Rubens Fonseca, que, por meio da crueza de sua narrativa urbana, se utiliza da violência como tema central quase que na totalidade de sua obra? Da mesma forma, a poesia da rua ou o rap nacional, representado pelo grupo Racionais Mc’s, por exemplo, assume o discurso do ente criminalizado e é capaz de naturalizar para seus interlocutores a ideia do desvio, bem como fazer com que entendamos que o crime (ou o criminoso) é constituído por construções sociais e pode ser dissociado da maldade propriamente dita. Sobre esta nova perspectiva na criminologia, Salo de Carvalho afirma:

No sentido inverso da tradicional tarefa de sistematização abstrata dos problemas das violências, as novas tendências optam pelo vertiginoso mergulho no real. Aproximando-se das experiências cotidianas das pessoas que convivem com as violências do cotidiano, novas posturas criminológicas sujeitam-se aos erros e às imprevisibilidades inerentes à vida;

46

FOUCAULT, Michel. Estratégia saber e poder. Coleção: Ditos & Escritos v. VI. Org. e seleção de textos: Manoel Barros da Motta. Trad.: Vera Lúcia Avelar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. n. p.

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43 se à excitação do inesperado que caracteriza o encontro humano47.

A literatura, a música, o cinema ou até mesmo as ruas são capazes de dar voz ao objeto de estudo da criminologia, objeto este que vem sendo silenciado há muito tempo pelas formalidades e assepsias acadêmicas das pesquisas criminológicas. O conhecimento produzido a partir dessas novas fontes de saber realiza o que Carvalho chama de criminologia de aproximação ou de escuta48.

Nesta dissertação, busco uma contribuição da literatura de Victor Giudice para a criminologia. Seus contos, que foram escritos entre as décadas de 1970 e 1990, trazem questões que, apesar de muito pontuais e bem localizadas em seu tempo, ultrapassam esse contexto e nos falam de como se deu a construção da sociedade que conhecemos hoje.

Ao se pensar a literatura a partir da criminologia, talvez pudéssemos encontrar, no enredo dos textos analisados, a abordagem explícita do crime e até mesmo da violência. Entretanto, não é isso que ocorre em Giudice; seus contos podem ser lidos tomando-se um pouco mais de distância, uma vez que, ampliando esse pequeno fragmento da realidade que representa a escrita giudiciana, é possível pensar o disciplinamento ao trabalho e, ainda, a questão da seletividade no sistema prisional. Apoiada nos conceitos da criminologia crítica e da criminologia cultural pretendo, por meio desses dois brilhantes contos do escritor carioca em questão, mergulhar nas dinâmicas cotidianas de suas personagens e transformá-las em objetos de investigação do saber criminológico.

Ao buscar alguma característica capaz de relacionar a literatura e a criminologia, descubro no conto, essa narrativa curta e concisa, um ponto de convergência entre ambos os estudos. Esse ponto é a

fragmentação, afinal, o conto é um gênero literário capaz de retratar o

universo a partir de um pequeno recorte do mundo, por meio de pequenos fragmentos da realidade, já os estudos que se dedicam ao desvio, ao crime ou ao criminoso se configuram como pequenos fragmentos de saber dissociados uns dos outros, compartilhando entre si apenas a nomenclatura. O conto leva em consideração uma partícula de realidade e a transforma em um mundo; as criminologias, no entanto, ficam focadas em seu universo e acabam ignorando seu entorno49. 47 Op. cit., p. 157. 48 Op. cit., p.162. 49

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