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Cardeal D. Henrique : um pensamento em acção (1539-1578)

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CARDEAL D. HENRIQUE: UM PENSAMENTO EM ACÇÃO

(1539-1578)

Dissertação para obtenção do grau de Mestre em História Moderna Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Maio de 2004

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CARDEAL D. HENRIQUE: U M PENSAMENTO EM

ACÇÃO

(1539-1578)

Dissertação para obtenção do grau de Mestre em História Moderna

Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Maio de 2004

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A Cristina À Tia Céu

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Quero agradecer à Professora Doutora Elvira Mea a orientação desta dissertação, demonstrando enorme sensibilidade, extrema solicitude e um amplo respeito pela minha autonomia e responsabilidade, incentivando-a e exponenciando o meu gosto pela História, não se eximindo às criticas sempre pertinentes e enriquecedoras.

Do mesmo modo não posso esquecer o meu irmão Ricardo, que realizou o processamento do texto, de forma abnegada e totalmente empenhada, decifrando uma letra muitas vezes quase ilegível com um amor incomensurável. Sem o seu contributo esta dissertação não teria sido possível.

Creio, sem exagero, devo incluir neste grupo, a minha namorada Cristina que abdicou das suas férias para proceder aos ajustes finais, sem os quais o texto ficaria irremediavelmente comprometido, nomeadamente no que tange ao processamento de revisões e bibliografia, bem como de uma pequena parte da dissertação.

A Professora Doutora Amélia Polónia agradeço a solicitude e disponibilidade que teve sempre para comigo, facultando bibliografia extremamente importante e beneficiando com o seu conhecimento sobre D. Henrique.

Devo ainda uma palavra de agradecimento ao Jorge Sobrado por me ter beneficiado com a sua amizade incondicional, patente na generosa partilha dos seus conhecimentos e ensinamentos teológicos-biblicos, imprescindíveis ao enquadramento de parte significativa da dissertação, capitalizados em proveitosos diálogos. Do mesmo modo o Manuel Magalhães me prestou válidos esclarecimentos sobre religião, que não posso deixar de agradecer.

Ao Dr. Teixeira Lopes agradeço a sua amizade e a leitura critica que fez do trabalho. Agradeço ao Pedro Sobrado pelos mesmos motivos, mesmo que não tenha podido 1er o texto.

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processamento de alguns anexos e também à Lucinda Ribeiro pela sua amizade e a possibilidade que me deu de conhecer o Pedro Mesquita que me emprestou, quase sem me conhecer, imensa bibliografia extremamente útil, demonstrando enorme generosidade.

Agradeço ao Professor Doutor Amadeu Coelho Dias as importantes indicações bibliográficas sobre Mística.

Agradeço o apoio e companheirismo da Raquel Patriarca, e Lurdes Sá manifestados desde a parte lectiva do mestrado.

Não posso deixar de agradecer a amizade da Sílvia Trilho, Manuela Pereira e à mais recente amiga Eliana.

Por último devo um agradecimento aos funcionários da Biblioteca da Faculdade de Letras do Porto.

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(...). O pouco que percebo dessa massa teatral

caótica pode inscrever-se na pauta de uma

interpretação menor. Não compreendo nada.

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Introdução 7 Normas de transcrição de documentos 15

Parte I - Enquadramento Historiográfico 16

Capítulo 1 - História e Biografia Histórica 17 1.1. História e Historiografia: Posicionamentos 18

1.2. Biografia: Aproximações 29 1.2.1. Fixação Epistemológica 30 1.2.2. Demarcação Tipológica: A Biografia Histórica 30

Parte II - D. Henrique: Acção do Pensamento 36

Capítulo 2 - O D. Henrique e o Humanismo: O Pensamento e a Acção 37

2.1. À volta do Humanismo: Discussão do Conceito 38 2.2. O Humanismo em Portugal: Antecedentes e Impulsionadores 43

2.3. D. Henrique e o Humanismo 44 2.4. Educação de Corte e a Tratadística do Príncipe Ideal 49

2.5. Os Mestres Humanistas e D.Henrique: Formação e Influência ao

longo da vida 51 2.5.1. Aires Barbosa (1470-1540) 51

2.5.2. André de Resende (1500-1573): Dados Biobibliográficos..57

2.5.2.1. Resende e o Erasmismo 62 2.5.3. Clenardo (1493/4-1542): A Influência do Mestre na

Educação de D. Henrique 66 2.5.4. Pedro Nunes (1502-1578) e D. Henrique: O Percurso do

Mestre e as bases de uma relação 70 2.5.5. Damião de Góis (1502-1574) e D. Henrique 76

Capítulo 3 - O Cardeal e a Inquisição: A Acção e o Pensamento 81

3.1. Antecedentes 82 3.2. A Inquisição 84

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4.1. Introdução ao texto 144 4.2. Análise do texto: Aproximações 154

4.2.1. Do Nascimento do Nosso Redentor 154 4.2.2. Oração do Minino Jesu posto no Presépio 158

4.2.3. Da circuncisão do nosso Salvador 158

4.2.4. Sobre os Reis Magos 161 4.2.5. Sobre o que o Leproso disse a Nosso Senhor 164

4.2.6. Sobre o que disseram os Apóstolos a Nosso Senhor 166

4.2.7. Da Purificação de Nossa Senhora 167 4.2.8. Homilia da Quarta-Feira de Cinzas 169 4.2.9. Homilias dos três Domingos da Quaresma 171

4.2.10. Meditação sobre o cântico "De Magnificat" 174 4.2.11. Meditação sobre a Assunção de Nossa Senhora 174

4.2.12. Meditação sobre a conversão de Santa Maria

Madalena 175 4.2.13. Meditação sobre a Oração do "Pater Noster" 176

4.2.14. Oração do Amor Divino 179

4.3. Síntese das Temáticas das Meditações: Aproximações à

coerência textual 181

Capítulo 5 - 0 contexto específico das Meditações: Correntes Filosóficas

e Espirituais 185 5.1. Correntes Filosóficas: A Escolástica 186

5.1.1. Nominalismo 187 5.1.2. Relações entre o Nominalismo e o Biblismo 187

5.1.3. Tomismo 188 5.2. Correntes de Espiritualidade 191 5.2.1. Literatura Anti-Semita 191 5.2.2. Literatura Mística 196 5.2.2.1.0s Místicos do Norte 198 5.2.2.2. Os Místicos Italianos 201

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5.2.2.3. A Mística Espanhola 203 5.2.2.4. A Devotio Moderna 204

5.2.2.5. OPietismo 205

Capítulo 6 - A s Meditações: Um exemplo do Reformismo Católico? 209

6.1. A inspiração congreganista das Meditações 210

6.1.1. Os Agostinhos 210 6.1.2. Os capuchinhos 210 6.1.3. A Espiritualidade Jerónima 211

6.1.3.1.Heitor Pinto: Autor da Imagem da Vida Cristã..211

6.1.4 A Influência Jesuítica 213 6.1.5 A Influência Dominicana 215

6.1.5.1. Granada e o Cardeal D. Henrique 216 6.1.5.2. A Carta ao Christiano Lector de Granada 220

6.2. As Meditações e a Inquisição 229

Capítulo 7 - Textos que o Cardeal D. Henrique mandou fazer 232

7.1. A Oração Contínua 233 7.1.1. As causas da Oração 237

7.1.2. O Mosteiro de Santos: Um exemplo prático? 241

7.2. As Lembranças 245 7.2.1. Lembranças para qualquer pessoa examinar sua

consciência segundo a obrigação do cristão 245 7.2.2. Lembranças para o Rei deste Reino ver o que deve fazer

E examinar sua consciência segundo a obrigação do

Rei 255

Conclusão 259 Fontes e Bibliografia 269

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INTRODUÇÃO

Isto não é uma biografia! Assim respondemos de imediato, imaginando a força de uma interrogação que, pela sua inevitabilidade, se impõe ao nosso espírito e se transfere para os mecanismos intelectuais, vertendo-a da forma que se segue e escalpelizando a sua lógica.

A questão a que aludimos deve colocar-se, em termos sucintos, do seguinte modo: que classificação genérica pode albergar este trabalho e o esforço de investigação que nele se consagra e imprime? É, sem sombra de dúvidas, uma interrogação apresentada de forma directa e simples.

Sem querer dissertar longamente sobre o grau possível e entrevisto de dificuldade das «coisas» simples, nem sobre as virtudes da simplicidade, no que convoca de meridiana clareza, racionalidade controlada e expressividade serena, não podemos esconder que a questão nos desarma e deixa perplexos, espanta, e obriga a pensar, e a perplexidade cede posto a uma tentativa de recomposição: da surpresa, inaugurada pela evidência e de um sentido que a intelecção configura.

Ora, se por um lado só o entendimento pode resgatar a perplexidade da questão posta, não é suficiente, uma vez que o postulado cartesiano comparece para ser matizado.

Para Roberto Calasso, "(•■■) a história do óbvio é a história mais obscura"1. Tal

pressuposto também se aplica à pergunta que se designa, colocando-a de modo análogo. Não é ingénua a paráfrase que exercitamos na primeira frase do texto, ao qualificar este trabalho.

René Magritte titulou um dos seus quadros "Ceci n'est pas une pipe" e o que se representa, aparentemente na tela; um cachimbo. Deste modo, Magritte questiona os limites da percepção, admite o debate em torno de conceitos como ambiguidade e põe em causa outros como o de representação e recepção da obra de arte.

Correndo o risco de afirmar pela negativa o que pretendemos com esta investigação, admitimos a incapacidade de encetar uma demarcação tipológica de outra forma.

É claro que é ambígua, põe em causa os mecanismos de representação e em alerta os da recepção deste esforço. Mas é, julgamos, o único modo de expressar a nossa

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dificuldade e a perplexidade que enfrentaremos. Sejamos mais precisos. Este trabalho não é uma biografia, mas situa-se no limiar da biografia histórica.

Esta dissertação obriga a clarificar os critérios de precedência da historiografia. É um trabalho que se filia na História Religiosa e cultural, cruzando as vertentes institucional e intelectual, tendo em conta os contributos da literatura e da Filosofia.

Trata-se de uma investigação que se inscreve no âmbito da historiografia da época moderna, procurando seguir a acção inquisitorial do Cardeal D. Henrique e as linhas mestras do seu pensamento, tanto ao nível da impressão nele inculcada pelos seus mestres e pelos homens que pertenciam ao seu círculo de amigos, como da expressão, através dos escritos henriquinos.

Isto não é uma biografia. É uma narrativa, sobretudo entendida como discurso, mas com alguns pontos de contacto relativamente à corrente historiográfica que consagrou o narrativismo.

A biografia histórica também é uma narrativa, próxima de algumas áreas e formas de abordar a História com as escolas Positivista e dos Annales/História Nova, que não lhe foram indiferentes, de modos diversos.

A abordagem da biografia, nomeadamente da história nas diversas vertentes e possibilidades servir-nos-á para sedimentar uma caminhada de aproximação, sem adesão incondicional, de afastamento, sem repúdio sumário.

A nossa investigação elege, como objecto da sua indagação, uma personalidade histórica com a importância e relevância pessoal e institucional iniludíveis, o Cardeal D.

Henrique.

Pouco importarão, em primeira instância, as relações que, no plano de estudo ou reflexão, com ela mantivemos ao longo da nossa formação geral no ensino primário e secundário e mesmo no ensino superior. De qualquer modo, não são absolutamente negligenciáveis, na medida em que julgamos relevante indiciar a formação e evolução da nossa sensibilidade historiográfica, inseparável do subjectivismo do nosso objecto e por ele condicionada.

Temos que admitir que nos seduziu a ideia de nos centrarmos em figura que julgávamos neutra, incipiente, inexpressiva, e uma outra associada à precedente; empolgou-nos a perspectiva de questionar os limites da biografia e as suas especificidades, de molde a demonstrar que não se faz só do modo que enunciámos e estava inculcado no nosso subconsciente, gerando resistências ao género biográfico. Ora, o nosso percurso pessoal entronca, neste passo, na problemática descrita.

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Nos currículos do terceiro ciclo, nos anos 80 e do secundário dos anos 90, tributários, julgamos, grosso modo, da História dos Annales, o Cardeal D. Henrique comparecia como figura frágil no fim de vida, nos últimos anos da sua actividade como rei, envolvido na encruzilhada da substituição do sobrinho e na eminência de ele próprio deixar, por doença ou morte, de dirigir os destinos da governação, precipitando-se a problemática da sucessão.

D. Henrique emergia como figura secundária, subsidiária de outras, tida por antipática, sombria, retrógrada ou, mais importante ainda, desprovida de iniciativa. Esta conjugação das críticas deve ser reposicionada e colocada no seu devido enquadramento.

Começamos pela última "característica", que nos parece a mais injustamente formulada e que pode, implicitamente, pelo seu equacionamento, ter estudado na base das outras. O cardeal D. Henrique era um indivíduo pragmático, dotado de espírito empreendedor no quadro das suas responsabilidades, nomeadamente no seio da Igreja.

Só no decorrer dos estudos universitários, ainda assim parcialmente e, sobretudo, nos levantamentos preparatórios desta investigação, nos apercebemos da importância da acção deste homem, Arcebispo de Braga, Évora, Lisboa e, de novo, Évora, Inquisidor durante 39 anos, regente e rei.

Talvez os silêncios da grande parte deste trajecto nos caminhos liceais advenham da subalternidade (i)legítima da História Institucional e Religiosa e de julgamento moral e pedagógico acerca da Contra-Reforma...

Será conveniente estudar a forma como o Cardeal D. Henrique foi sendo abordado nos currículos académicos liceais após 1974 e até aos dias de hoje, divisando-lhe os pressupostos historiográficos e ideológicos.

A abrangência da nossa temática não se compadece com esse aprofundamento. Vincamos, todavia, tal desejo. Talvez tenha cabimento mais uma pequena história pessoal, é certo que alguns objectarão eventualmente a sua pertinência, deslocando-a para um âmbito classificativo pouco abonatório, entendendo-a como tergiversação, desvio do essencial, mas sentimos necessidade de a contar, primeiro porque consideramos que influenciou decisivamente o percurso que a seguir se apresenta e também porque a postulação precedente do advérbio "alguns" talvez só tenha valor retórico e, nossa tão grande culpa, admitimos a sua viabilidade no aprofundamento de um monólogo interior, em que testamos os nossos limites.

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De repente ocorre-nos outra analogia, adequada porque nos julgamos insuspeitos para o fazer, uma vez que não somos religiosos, pelo menos no sentido de pertença a uma confissão.

O labor introdutório de uma investigação funciona, em certa medida, como um confessionário, se entendermos a confissão como prática introspectiva, eventualmente exteriorizável, com aquele pressuposto cumprido ou como via da sua mais completa efectivação.

Criadas as condições, construído o cenário, eis a história prometida: a nossa actividade primordial é a docência, ainda que nem sempre a desenvolvamos. Talvez assim se explique a vontade de entender e perceber os meandros do sistema educativo, capitalizando a busca em torno de uma questão historiográfica: a imagem do cardeal D. Henrique nos currículos.

É certo que o que acabamos de dizer tem um enredo mínimo, é mais uma nota pessoal, de cariz biográfico, mas ajuda-nos a perceber melhor a nossa escolha.

A exteriorização dessa percepção é relevante, na medida em que permite projectar a auto-reflexividade. O esforço que agora se apresenta teve uma gestação com avanços e recuos, percorrida por anseios, dúvidas, hesitações.

É o momento de as demonstrar, concretizando uma seriação. Permita-se-nos uma imagem: procuraremos neste trabalho usar um mecanismo semelhante ao dos ilusionistas de hoje em dia; explicar os seus truques, ou pelo menos simular uma explicação, que muitas vezes enriquece o que se está a ver, porque é artifício deliberado com esse fim. Três avisos prévios: nem faremos magia, nem usaremos "truques", apenas explicaremos o que fazemos.

Por outro lado, a mudança de tema de dissertação, após três anos de trabalho, foi, ao mesmo tempo, a decisão mais importante e definitiva que tomámos, sempre devidamente apoiados e uma primeira limitação ao texto que agora apresentamos e desenvolveremos seguidamente, uma vez que implicou reequacionamento de problemas e hipóteses de investigação, bem como uma fase de pesquisa bibliográfica e de fontes.

A este nível deparamo-nos com documentação inquisitorial patente na Torre do Tombo e a existência de fontes impressas, fundamentalmente as "Meditações (...)", na Biblioteca Nacional. Também efectuamos pesquisa na Biblioteca de Évora e na da Ajuda. Embora, neste ultimo caso, não tenhamos tido que nos deslocar à Instituição, que, pronta e rapidamente, nos enviou a documentação, nos restantes fizemos viagens para seleccionar as fontes que nos foram, seguidamente, de forma solicita, facultadas.

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É claro que esse processo teve a sua tramitação sujeita a alguns impasses naturais, certas demoras, mas nunca exorbitando largamente prazos de entrega muito razoáveis. Contudo, a pesquisa inicial foi sendo sempre ajustada à medida que realizámos a investigação, o que obrigou a naturais adaptações e adequações progressivas, moldando-as ao devir do nosso texto que, mercê das suas aportações, também foi influenciado por elas, impondo-lhe não raro, desvios de rota...

Inicialmente, no primeiro projecto que desenvolvemos, tinhamos planeado uma revisão historiográfica sobre o Cardeal D. Henrique, mas, com a definição de prioridades, revelou-se tarefa impossível. Também gostaríamos de aprofundar as questões relativas às constituições diocesanas de Braga e Lisboa, todavia pelos motivos apontados e pela especificidade de que se revestem, merecem um estudo à parte e especifico, em articulação com as restantes actividades diocesanas. Contudo, tal esforço obriga a uma consignação aturada que não estamos em condições de desenvolver. Na mesma situação encontram-se as temáticas relativas à regência de D. Henrique, ocorrida entre 1562 e 1568, nomeadamente das Cortes de 62, ou à Mesa de Consciência e Ordens, cujas vertentes institucionais foram já, de forma extremamente sistemática e exaustiva, tratadas por Maria do Rosário Themudo Barata2. O seu estudo é de tal modo

rigoroso, que em termos da exploração de fontes inéditas correlativas não pudemos adiantar muito mais.

As provisões de D. Henrique aos inquisidores de Lisboa, que vamos desenvolver, deverão, em próximas investigações, ser cruzadas com o estudo em causa, mas não o fizemos porque nos interessam as provisões em si e em função das temáticas do pensamento e da espiritualidade do Cardeal D. Henrique. Por outro lado, o aspecto que mais tem sido enfatizado pelos estudos em torno de D. Henrique, como já dissemos, é o político, não só como regente, mas também como Rei, e em função da crise da sucessão. A inversão desta tendência tem vindo a ser operada, nomeadamente por trabalhos de Amélia Polónia, Idalina Rodrigues ou Madureira Dias, centrados em aspectos diferentes, desde a acção pastoral à espiritualidade Henriquina. É nessa linha que nos inscrevemos e situamos, deixando, por isso, a análise do epistolário do Cardeal Rei, cujo excelente inventário foi realizado por Joaquim Veríssimo Serrão. Analisadas as limitações decorrentes da não realização de determinadas abordagens, convém aduzir

2 Cf. Maria do Rosário Themudo Barata - As Regências na Menoridade de D. Sebastião: elementos

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outras, de par com as vicissitudes inerentes ao tratamento de fontes exploradas, articulando esse esforço com o da apresentação das temáticas respectivas.

A investigação fília-se no âmbito da História da Cultura e, neste, sobretudo da História Intelectual e das Ideias, mais do que na das mentalidades, na linha de autores como Lucien Fébvre e, principalmente Silva Dias, ou das aportações no âmbito da literatura de Pina Martins, Costa Ramalho.

Partilhamos a perspectiva de Ivo Carneiro3, vertendo-a para o nosso texto: A

dissertação centra-se na história cultural e encaramos os textos em função das suas dimensões simbólicas e das respectivas representações ou intenções, sem esquecer o contexto social epócal em que se inserem.

Na nossa investigação cumpriremos este itinerário, com certo ajustamento, em nome de alguma circularidade: partiremos do contexto histórico geral, conferido pelo Humanismo e pela Inquisição, para o texto das "Meditações (...)" e destas para o seu contexto específico.

A abordagem é sobretudo histórico-literária e histórico-filosófica e não tanto sociológica. O nosso trabalho centra-se nas "Meditações (...)" como corolário do pensamento do Cardeal D. Henrique, nele incluindo o pensamento, ou seja, a sua formação e actividade intelectual e a espiritualidade. Os estudos diversos de José Adriano de Carvalho e Idalina Resina Rodrigues foram estruturantes da nossa pesquisa. Sejamos mais claros, o nosso estudo incide sobre aquilo a que Raul Rolo chamou a "vida intelectual" aplicando o conceito a Bartolomeu dos Mártires e associando-o ao daformação. O seu trabalho intitula-se "Formação e vida intelectual de Bartolomeu dos Mártires" e foi muito importante para enquadrar o nosso esforço, tanto mais que Mártires e D. Henrique foram contemporâneos e dois arautos da Reforma tridentina. Para cumprir uma investigação baseada nos princípios enunciados, tentando responder à pergunta: Foi o Cardeal D. Henrique um humanista? Dividimos o texto em três partes, intitulando-o "Cardeal D. Henrique: Um Pensamento em Acção".

3Ivo Carneiro de Sousa - História da Antiguidade da Cidade de Évora. 1993. p. 2

Diz o autor: "Esta é uma investigação em História Cultural e não projecta seguir as competências próprias de estudos e ensaios literários. Apesar de dois domínios de análise se deverem (e poderem) interligar intimamente em função de um mesmo texto, os estudos de História da Cultura pretendem, no entanto, reconstruir e explicar os funcionamentos das representações e programas culturais do passado, recorrendo à sua aproximação aos contextos sociais históricos (...)"

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Na primeira parte fazemos o enquadramento historiográfico da temática em apreço, procurando dar-lhe destaque epistemológico e não a enfileirando apenas nas questões metodológicas.

Na segunda parte tentaremos dar um contexto histórico alargado às "Meditações e Homilias" do Cardeal, referindo-nos, para tal, em dois capítulos distintos; à formação do Cardeal e à influência que tiveram, ao longo da sua vida, pensadores humanistas no primeiro caso e, no segundo, a acção inquisitorial daquele, enquanto Reformador Geral, máximo representante do Conselho Geral.

Tentaremos entender se existe antinomia absoluta entre o humanismo e a acção inquisitorial no Pensamento de D. Henrique, procurando comprovar que foi em ambos os campos um homem de acção, daí o título unificador da segunda parte. A acção do pensamento está mais vinculada à questão da Inquisição e o pensamento ao Humanismo, embora naquela o Cardeal se tenha revelado também reflexivo e neste activo.

Do ponto de vista metodológico, o nosso estudo não versa um grande número, ou, sequer, extensão apreciável de fontes primárias, manuscritas e impressas. O principal objectivo é equacionar, em modos diversos, aprofundando-as, determinadas temáticas em relação ao Cardeal. Para isso, a investigação constitui uma "encenação" que cruza as referidas fontes com bibliografia, tanto quanto possível pormenorizada.

No que respeita ao Humanismo foi muito importante o inventário bibliográfico de Isaltina das Dores Figueiredo Martins. Já sobre a Inquisição afigura-se-nos mais relevante especificar as fontes manuscritas que desenvolvemos, baseadas em documentação variada do Conselho Geral, nomeadamente das suas diversas disposições e, sobretudo, as provisões aos Inquisidores de Lisboa, muito importantes para perceber as ordens dadas pelo Inquisidor Geral, ou as informações trocadas entre todos. Assim se poderá entender melhor o funcionamento efectivo do Conselho Geral, cujo enquadramento legislativo data de 1570.

As provisões implicam, contudo, algumas dificuldades; são geralmente lacónicas, visando a rapidez e eficiência da sua difusão e do sistema que representam. Difícil é estabelecer relações entre elas, construir uma narrativa que as una e explicite. Parecem muitas vezes dispersas. No entanto, ordená-las é um desafio estimulante.

Na terceira parte encetamos finalmente a análise das "Meditações (...)", tendo em conta o que afirmámos nas partes anteriores e estabelecendo relações entre todas. Ao abordarmos as "Meditações (...)" temos em consideração que a discussão, em

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profundidade, do teor e significado da espiritualidade henriquina sobreleva as intenções deste trabalho e constituiria, por si só, objecto de uma área de investigação específica.

Amélia Polónia aponta os seguintes aspectos constitutivos da espiritualidade henriquina: "a explicitação das tendências espirituais dominantes no espaço em que ele viveu, nomeadamente, a Corte; o perfil dos seus mestres, directos impulsionadores de influências esprirituais; o circulo das relações pessoais que privilegiou ao longo da sua vida; as obras de espiritualidade cuja reprodução e avaliação favoreceu; a análise de componentes ideológicos e espirituais da sua biblioteca pessoal e das suas próprias produções literárias, e, finalmente, as suas práticas de devoção e piedade, reflexo exterior da sua interioridade"4. O perfil dos mestres e a produção literária do Cardeal

são os dois aspectos que, tanto quanto possível conjugadamente, tentamos aprofundar. Maria Idalina Resina Rodrigues, Amélia Polónia e Madureira Dias realizaram estudos sobre as "Meditações (...)", no caso das duas primeiras subsidiariamente em relação aos respectivos temas, nomeadamente: Frei Luís de Granada e o estudo de D. Henrique como Arcebispo em Évora. Já Dias dedicou-se expressa e explicitamente às "Meditações (...)", num pequeno artigo, em que nelas se centrou em exclusivo. Era importante aprofundar esta abordagem, alargando-lhe o espectro, colocando em diálogo as "Meditações (...)" com os vários géneros literários e outros textos do Cardeal. À terceira parte demos o seguinte título: "O Pensamento da Acção", centrada que é em textos escritos do Cardeal ou mandados fazer por ele.

Dividimos esta última parte em quatro capítulos: o primeiro incide sobre o texto propriamente dito, procurando perceber a sua natureza; no segundo, tentamos entender a que género, grupo ou família de textos as "Meditações (...) poderão ou não pertencer, aquilatando das respectivas condições culturais de produção e efectivação; progressivamente, depois de na segunda para a terceira parte termos partido do contexto geral para o texto, nesta última fazemos o contrário, do texto para o seu contexto específico e, no seu terceiro capítulo, abordamos a espiritualidade portuguesa, procurando entender a pertença ao Congreganismo e ao seu comprometimento com o Contra-Reformismo e a dinâmica inquisitorial. O último capítulo dedica-se à comparação das "Meditações (:..)" com textos que o Cardeal mandou fazer: a "Oração

Amélia Polónia - Cardeal D. Henrique Arcebispo de Évora: um prelado no limiar da viragem Tridentina. 1989. p.58

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Contínua" de 1574 e as "Lembranças (...)"5, rastreando um possível espirito

Contra-Reformista, comum a todos. O ano de 78 é um ano fulcral, nele terminou a acção inquisitorial do Cardeal, nele morreu D. Sebastião e D. Henrique tornou-se Rei. Terá isso alterado a sua conduta no domínio do pensamento e da espiritualidade? E o que procuraremos saber. Assim se compreende que a datação subjacente ao nosso título 1539-1578 tenha razão de ser; baliza, respectivamente, o início e o fim da acção inquisitorial de D. Henrique, incorporando, nos seus limites, todos os textos do Cardeal que estudámos.

Esperamos com este trabalho contribuir para perceber melhor o pensamento do Cardeal D. Henrique, entendendo alguns dos seus textos em função da formação humanista e da dinâmica espiritual. Gostaríamos ainda de poder comprovar uma última hipótese: o Cardeal era um homem com um pensamento estruturado, fundamentado e nada frágil, ou indeciso, como alguma historiografia tentou fazer crer.

Normas de transcrição de documentos

Nesta investigação resolvemos respeitar inteiramente a grafia e aforma de escrita patentes nas fontes manuscritas e impressas. Nessa medida não actualizamos as palavras e a linguagem respectiva. Todavia, como excepção, substituimos o "i" pelo " j " no início das palavras.Sempre que nos deparamos com consoantes dobradas no interior dos vocábulos conservamos a grafimos original. Quando duvidámos na transcrição de uma palavra assinalámos a dúvida com um ponto de interrogação (?) e colocámo-la entre

parêntisis recto.

5 A questão da autoria é complexa e difícil no que respeita a (...) "Oração" e as Lembranças no entanto,

trataremos o Cardeal como seu autor, uma vez que sabemos da importância de as ter mandado fazer, sendo delas o mentor

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PARTE I

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CAPÍTULO I

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1.1. HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA: POSICIONAMENTOS

Na actualidade ressurgem movimentos ou historiadores de cariz positivista e assiste-se à eclosão dos pós-modernismos oriundos de outras áreas de pensamento, assentes numa visão fínissecular, baseada num pessimismo antropológico e num cepticismo por vezes radical, eventualmente na linha de Nietzsche.

Alguns historiadores reclamam o retorno ao acontecimento, dando primazia a uma história narrativa, assente na consolidação de biografias particulares ; outros defendem que a história, mais do que uma ciência, é narrativa verosímil .

Há quem veja nos ressurgimentos o estertor do Annales, o corolário da

Q . . .

fragilização e fragmentação da escola surgida após 1929 . Os mais radicais negam, nomeadamente aos pós-modernismos9, bases sólidas, confundindo-os com o abuso

estéril de artifícios de linguagem, desligado do que acontece e fluí, acusando-os de antireferencialidade ou antirepresentacionalismo.

No limite, consideramos que estas ultimas acusações são discutíveis, uma vez que o contexto exterior se transforma em texto e não é totalmente negligenciado . Julgamos que, tanto a análise discursiva do texto historiográfico, quanto os ressurgimentos narrativos, aos quais aquele método se aplique, são válidos e importantes, desde que conciliados com abordagens centradas na cultura e mentalidades, herdadas dos Annales e se não forem tomados como absolutos.

Uma aproximação biográfica deve surgir em auxílio, prestimoso e importante, da historiografia e não isolada, ou tomada como ciência autónoma. Esta questão é problemática, como de resto devem ser a história e a biografia histórica que se têm de

6Cf. Maria de Fátima Boniácio - "O Abençoado Retorno da Velha História". 1995. p. 151-157 7 Cf. Paul Veyne - "Como se Escreve a História". 1987. O autor defende o conceito de

verosimilhança e aproxima História e Literatura na análise de discurso, que partilha com outro percursor nesta linha e inspirador que foi Michel Foucault: ver "A Arqueolgia do Saber" sobre as relações entre narrativa histórica e literária; ver estudo fundador de Paul Ricoeur: "Temps et Recif\ (s/d)

8 Cf. Peter Burke - "A Revolução Francesa da Historiografia: os Annales" 1992 p. 81 e ss. O autor

defende esta Escola de forma entusiástica, bem documentada e não isenta de polémica, mas não deixa de reconhecer, ainda que timidamente, o seu estertor.

9 O pós-modernismo não é movimento uno e cristalizado. Há quem observe, em História, duas

correntes: A de Foucault e a de Michel de Certeau. A discussão sobre a identidade pós-moderna de Foucault está longe de finalizar.

10 Cf. A este propósito ver polémica recente entre Perez Zagórin - Rejoinder to a Postmodernist.2000.

p. 201-209 o pós-modernista Keith Jerkins -A Postmodern Reply to Perez Zagorim 2000. p. 181-200.. (in Revista History and Theory Studies in The Pholosophie of History. 2000) adepto do desconstrutivismo de Derrida

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afastar dos automatismos de uma história obcecada com a objectividade e a cientificidade, segundo modelos inspirados nos das ciências naturais.

O debate vai sempre ao encontro das correntes historiográficas oitocentistas e do século XX, nomeadamente o positivismo11 e a Escola dos Annales.

Se a História é, incontestavelmente, a ciência do passado humano, estudando o devir dos homens, a historiografia tem um "passado" que constantemente se intromete no "presente", como legado a respeitar, a seguir, como referência positiva ou negativa, como exemplo a contraditar.

A História é ciência ideográfica,13 sem negligenciar a procura de leis gerais,

apenas como guias, concentrando-se no que fluí ou acontece e no discurso coevo ou historiográfico sobre os "factos", que não são dados em bruto mas construídos. A síntese entre perspectivas aparentemente antagónicas é possível.

Pode fazer-se história política14, tradicionalmente do domínio positivista, sem

negligenciar a relação entre datas e contextos históricos, conciliando o estudo de uma personalidade com o da sociedade da sua época ou de uma instituição em que aquela se tenha distinguido, indicando quadros mentais, intelectuais, numa simbiose entre o individual e o colectivo.

A história política que hoje se pratica não é repositório de datas, reinados, batalhas, vistos do lado do vencedor. A perspectiva utilizada ultrapassa a dicotomia belicista: ganhador/perdedor e usa as datações como instrumentos facilitadores de interpretações.

Da herança dos Annales aproveitaremos, sobretudo, alguns elementos metodológicos,15 nomeadamente os que respeitam ao alargamento do objecto de estudo,

já que a interdisciplinaridade ou a diversificação de fontes são requeridas de forma

11 O Positivismo não deve ser visto de forma estanque. Ranke era um heterodoxo, para muitos

históricista. Taine e Coulanges são diferentes nos seus posicionamentos e ambos menos dogmáticos ou enciclopédicos do que Lainglois e Seignobos - autores do manual fundador. Por exemplo, Coulanges não enjeitou as mentalidades ao estudar a "Cidade Antiga", na sua obra homónima "A Cidade Antiga.19%8. Por outro, lado as criticas interna e externa dos documentos são ainda hoje importantes. A experimentação empírica das hipóteses é que é impossível como provou Bloch.

12 Cf: Lucien Le Febvre - "Combats pour l'histoire" e Marc Bloch - "Introdução à História". 1953 13 Por comparação com as nomotéticas segundo Nagel ou Piaget.

14 Cf: Rui Ramos, "A Causa da História do Ponto de Vista Político.1992 Ensaio perspicaz,

inteligente.

15 Josep Fontana considerou os "Annales" mais como movimento político, de pendor metodológico,

que esquecem a reflexão teórica e epistemológica, em detrimento de uma cultura de demarcação face ao Positivismo e de mistificação da "novidade". Consideramos, contudo, que talvez Le Febre e Bloch tenham feito algum esforço de conceptualização, de algum modo relevante, mas insuficiente e sem continuadores. Josep Fontana Lazaro, "Ascenso e Decadência de la Escuela de los Annales ". 1985, p. 109-127

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controlada, mais a primeira do que a segunda. A história da época moderna faz-se sobretudo com documentos escritos.

No século XX, os Annales e a Nova História foram os momentos que maior adesão e futura crítica granjearam, em coexistência com outros, mais antigos ou emergentes, albergando contradições e divergências no seu seio.

O conceito movimento não é isento de polémica e mesmo os estudiosos da História da historiografia permitem discussão, pelo posicionamento aberto - o que constitui virtude - e não esquivo, por essa via a, contradição interna, que não deixa de ser positiva e de ressaltar, sublinhando, os seus aspectos fundamentais.

A problemática em apreço é suficientemente rica e discutível, sendo de assinalar os espaços que procurem debatê-la. Por outro lado, e em sequência não paradoxal, permite constantes precisões conceptuais, não isentas de especificações por vezes conducentes ora a relativismo quase impune, ou a um esquematismo, de reminiscência epistemológica e metodológica estruturalista, com vantagens, por albergar sistematizações úteis e importantes, e desvantagens, pelo fixismo que não irradica em certas ocasiões.

Exemplo elucidativo é o trabalho de Peter Burke, não neutral nem ideologicamente asséptico, que se filia na trajectória do seu autor, herdeiro dos Annales, defensores da História Nova, cujas críticas, não elidiu nem esqueceu, enfrentando-as em investidas esquemáticas que consolidaram um esforço centrado na diacronia, que a História da Historiografia pode reivindicar. A utilidade desse percurso investigativo não é negligenciável e deve ser equacionada, pois concita e possibilita abordagens gerais, amplas, sólidas, suficientemente panorâmicas para permitirem outras mais específicas, satisfatoriamente alicerçadas para encorajarem as mais diversas, de pendor generalista. Uma primeira afirmação, a nosso ver fundamental: para Burke os Annales são essencialmente um movimento, mas não deixa de lhes chamar "Escola". O primeiro termo é mais aberto e fluido, traduz atitudes, comportamentos, o segundo reporta-se à sua institucionalização, conferindo-lhes enquadramento mais ou menos legal.

Por vezes o movimento transcende a "Escola", ainda que nela tenha origem, noutras têm geração independente e coexistem. Situações há, ainda, em que a "Escola" não chega a ser movimento.

Cf. Peter Burke, "Popular Culture in Early Modem Europe". 1978. Defende esta ideia e ressalta as dificuldades do estudo da época moderna.

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Cremos que a interdisciplinaridade é viável e defensável, desde que se não transforme numa panaceia universal, aplicável a tudo indiscriminadamente, sem que sejam definidos: fronteiras, prioridades, prevalências e, essencialmente, critérios.

A interdisciplinaridade deve ser uma prática e não um sofisma, um modelo estanque, impermeável a diversas usurpações. Partilhamos com Braudel a centralidade conferida à História, no seio das outras ciências do homem, ainda que eivada de previsível, mas compreensível, excesso de voluntarismo.

Apesar do êxito e da importância que detinha e foi sedimentando, "O Mediterrâneo (...)" não foi imune às mais diversas criticas, algumas delas com bastante a propósito, revelando perspicácia e sentido de pormenor .

Braudel foi, em suma, pioneiro ao inaugurar o conceito de complexo "histórico-geográfico". Tal preocupação é, sem dúvida, louvável e conjunturalmente fez escola em currículos académicos, ganhando foros disciplinares.

Por outro lado, é certo que não se faz história sem exemplos passados, antecessores que modelem a trajectória e, para Le Goff, eram-no, entre outros; Voltaire e Michelet, representantes da historiografia iluminista e liberal, para além de referências mais próximas como Febvre e Bloch. Com este tipo de argumentação, comum nos partidários da tradição como legitimadora e aglutinadora da "Nova História", os seus defensores, propiciaram margem de contradição, de modo algum a coberto de críticas.

Concordamos com Olabérri Gortazar, quando diz: "No me parece injusto ni exagerado afirmar que, definida asi, la expression 'Nouvelle Histoire' (...) - adernas de poço original - favorece el confusionismo y contiene muy poço poder explicativo, adernas de despreender en algunos casos un inconfundible tufillo propagandístico" .

Sistematizamos: a tese da falência Burguesa não colhe para os Paises Baixos; no que respeita à insignificância de Lepanto, Braudel poderá ter sobrevalorizado a questão. Também se lhe aponta a pouca importância dada à História das Mentalidades e a noções como honra, vergonha ou masculinidade.

Braudel não discutiu cristianismo e humanismo. Também se lhe acusa a pouca relevância conferida à História política, eventualmente impulsionada pela dissociação entre os factores sócio-geográficos e os exemplos. Uma outra critica dirige-se à não postulação problematizadora de uma questão como a tripla duração, essa duração é, outrossim, antecipada pelo autor, e encarada, por vezes, como arquétipo rígido.

Possivelmente, um dos mais fortes e, quiçá, justos reparos centra-se no determinismo de Braudel, cujo "Mediterrâneo (...) " parece, em largos momentos, insensível ao humano e respectivo controlo. Trata-se, aparentemente, de uma História sem homens. Peter Burke discorda em parte, contrapondo com a existência de caracteres individuais na terceira parte do texto. Julgamos, todavia, que aquela crítica é pertinente.

É certo que Braudel talvez exagere na sua dedicação à Geo-História. Não se deixam, contudo, de realçar os muitos aspectos positivos do texto braudeliano. Antes de mais, a centralidade e o equacionamento de noções como as de espaço-tempo, reconfiguradas. Também o mar e o mediterrâneo foram beneficiados com e por este estudo; as noções de distância e de comunicação não passaram incólumes. Cf. Peter Burke .op. cit.p. 51 e ss

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Interessa-nos, sobretudo, o seguinte aspecto. De algum modo, o nosso estudo também é monográfico, mas, ao invés de se limitar a certa circunscrição territorial, tenta centrar-se numa personalidade aglutinadora e impulsionadora da acção territorial; D. Henrique. Na medida do possível, tentaremos divisar os limites da verosimilhança atinentes aos processos inquisitoriais.

Mas, mais relevantes para o nosso percurso, são os retornos à política e à História Narrativa, intimamente ligados, e que não deixaremos de convocar, de forma crítica é certo, todavia no âmbito de um questionamento que julgamos importante e reputamos de imprescindível.

É evidente que, no sentido amplo, quando nos referimos à acção inquisitorial do Cardeal D. Henrique, acolhemos uma dimensão política, aparentada com a capacidade de agir, estribada nessa vontade ou disposição. Por outro lado, o comportamento político é manifestação de poder, que pode ser entendido como atributo, na linha de Hobbes, ou relação, na de Maquiavel, actualizada contemporaneamente por Foucault.

A homologia entre poder e política, centrada num jogo, no facto de o poder não ter origem fixa, ou, ainda assim, não relevante para a reivindicação de determinada constelação teórica é anacrónica, serve-nos apenas como instrumento conceptual de demarcação especulativa.

Sem dúvida que exploraremos o foco tensional entre o pensamento de um homem, e a institucionalização de uma série de gestos, patenteada na edificação e no desenvolvimento da Inquisição. É claro que não é necessário um esforço de memória muito agudo e premente para se chegar à seguinte conclusão: mesmo os mais "agressivos" defensores dos Annales, numa Ia fase Febvre, numa segunda Braudel, não

ignoraram ou negligenciaram em absoluto o facto político. É certo que não constituía tema central, mas intrometia-se nas discussões ou nas problematizações encetadas e desenvolvidas, tanto assim que, para justificar a valorização da estrutura, Braudel não foi alheio ao tempo breve, o do acontecimento.

O que estava em causa não era a política enquanto temática, mas a contestação do seu tratamento pela metodologia positivista. Em sentido restrito a Inquisição, enquanto pólo de acção permeável à interpretação entre o temporal e o espiritual, ligava-se à afirmação do Estado, com ele coexistindo, de forma pacífica ou em sobreposição de uma das partes.

Embora nas últimas décadas a política tenha vindo a ser estudada talvez mais em função da época contemporânea - convém citar-se para tal os já clássicos de Vovelle e

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Fauret - não deixa ser factor essencial, em moldes distintos, na Época Moderna, que nos move.

O ressurgimento da história narrativa relaciona-se directamente com o reposicionamento e consequente valorização da liberdade e do arbítrio humano e une-se nesse aspecto ao retorno político, todos contra o determinismo. Assim se entende o interesse crescente suscitado pela biografia histórica que convocaria idealmente os diversos campos expostos e com cuja definição nos confrontaremos sem aderirmos em absoluto aos seus condicionalismos, nem tão pouco procedendo à respectiva erradicação.

A nossa investigação não despreza nenhum dos domínios a que acabamos de aludir. Talvez o centro aglutinador esteja na concepção de História que a define como narrativa de factos verosímeis. Todavia, convém ter em consideração os três elementos de asserção: a narrativa, referente ao discurso; os factos, relativos à "matéria" analisável e a "verosimilhança", categoria difícil e prolixa, que aproxima História e Literatura, para depois, consoante as teorias mobilizadas, de um lado e de outro, se afastarem.

A História como narrativa, enquanto relato, discurso, no caso vertente, escrito, não implica, no nosso entender, a ideia da eliminação da História como ciência, pelo contrário, fortalece-a, fornecendo-lhe fundamentação lógica. Por outro lado, narrar não é neutralizar o juízo do sujeito cognoscente, obliterando-o em favor da pura objectividade e da total transparência do referente exterior veiculado pelos documentos. Comparece desde logo uma aparente contradição: o passado é indubitavelmente sujeito a transposição documental e portanto mediatizado e inatingível na sua essência. A respectiva reconstrução exige e convoca o engenho do historiador.

Mesmo os defensores mais acérrimos do narrativismo, de ressonância lato senso positivista sabem-no quando reputam aquele adestramento de implícito, subliminar ou sub-reptício, insurgindo-se contra a construção de teorias que obstruam e entorpeçam a "realidade histórica", desfigurando-a.

É desejável um equilíbrio entre os dois extremos, aberto a uma dinâmica susceptível ao uso de recursos pertinentes. Não se pretende, ao aludir-se a esta posição simbólica, parcialmente de síntese, entrar num relativismo absoluto, sem saída, ou, mais grave, defesa possível.

A aproximação à biografia histórica pode ser um dos instrumentos de clarificação do nosso ponto de vista, partindo de um pressuposto; o discurso histórico e historiográfico é uma construção textual que não é produto puro da imaginação histórica

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de quem o concebe, mas que se estriba num contexto exterior mediatizado. A concretização destes itinerários, tendo como ponto de mira a Biografia Histórica, obriga a enquadramentos prévios e gerais que sirvam de base a especulações futuras...

Entre os retornos, o da história narrativa é talvez o que mais se enquadre, nalguns dos seus desenvolvimentos, naquilo que genericamente se designa historiografia pós-moderna.

Convém indagar a procedência da afirmação que incorpora o retorno narrativo num pensamento pós-moderno, identificando-os. Interessa perceber os moldes da assimilação entre domínios, intentando interpretar formas de convergência e níveis de afastamento, se não de ruptura.

O uso da imaginação em história, ligado à dimensão compreensiva desta ciência, não constitui propriamente uma novidade, antes pelo contrário. As teses de Marrou comprovam-no e as de Mattoso reforçam-no: "(••-) todavia, o esquema metodológico orientador deste trabalho não é apenas de natureza cientifica, ou seja, lógica, racional e discursiva, tem de se inspirar também nos processos de imaginação e de perspicácia. É preciso destacar as anomalias, fazer falar indícios mudos, acumular provas, inventar formas indirectas de revelar o que os documentos não dizem abertamente" .

Para Lacapra, o historiador deve dialogar com o passado, uma vez que o considera suficientemente autónomo às tentativas de redução à ordem desenvolvidas por muitos historiadores. Concordamos parcialmente com esta posição, nomeadamente no tocante à autonomia e incontestável irredutibilidade do passado.

Para White, a ironia oferece bases para a sua própria transcendência e não é a única forma de compreensão histórica.

Lacapra valoriza a história social, mas critica o reducionismo que passou para a história intelectual e das mentalidades e considera-a populista, dado que que valoriza exclusivamente a História de baixo para cima, e há outras.

Durante décadas dominou hegemonicamente a cultura de elite. A necessidade de suparação, com a qual concordamos genericamente, ditou uma progressiva inversão de tendência, conduzindo, por seu turno, a um quase exclusivismo em sentido contrário, que também não é aconselhável.

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O tipo de estudo a desenvolver e o domínio em que se enquadra determinam a ênfase na cultura de elites ou na cultura popular. Quem se dedique, como nós, a estudar uma personalidade; o Cardeal D. Henrique, especialmente na sua acção inquirisitorial, sabendo a sua preponderância social e o trajecto que lhe imprimiu, perceberá um ajustamento automático e uma conformidade com a cultura de elites.

Mas, esta assunção não é tão linear quanto isso, uma vez que, admitindo o pressuposto inicial incontornável, convém matizá-la, através da activação de um exemplo que esperamos elucidativo. Enquanto responsável máximo da Inquisição e, a partir dei 570, do seu órgão mais importante, o Conselho Geral, o Cardeal D. Henrique tinha de responder a pedidos de resolução de desenvolvimentos processuais equívocos, vindos uns dos inquisidores, outros, em contestação da acção destes, dos réus.

Ora, os processados, em muitos casos provinham de níveis sociais menos favorecidos, dependendo do "crime" de que eram acusados. Assim se promove, ainda que mínima ou esporádica, a intersecção de níveis sócio-culturais que, no seu núcleo, albergam diferenciações que implicam derivações. De algum modo não negligenciaremos a noção de crítica literária, operacionalizada e utilizada como método na abordagem histórica por White e Lacapra, mas de forma condicionada e adaptada aos nossos objectivos e à observância de caracteres próprios da temática versada, ultrapassando-se o sentido genérico de exploração do discurso já consignada e comum a qualquer esforço histórico-filosófico.

A abordagem do texto henriquino: "Meditações e Homilias (...)" implica certa proximidade em relação à crítica literária, contextualizando-a e desenvolvendo-a em função da crítica histórica.

Talvez White seja demasiado intransigente na redução do contexto ao texto e não partilhamos essa perspectiva. O seu posicionamento, no que tange à crítica literária, baseia-se quase no que denominaríamos por axioma: as estruturas narrativas são medidas de compreensão de toda realidade, fundando-a inclusivamente.

As estratégias narrativas prefigurativas de que aquele se muniu como conceitos operativos subjacentes à sua teorização foram: o enredo - trágico, cómico e satírico; o argumento - formalista, mecanicista, contextualista; a ideologia - sobretudo oitocentista, época de estudo do autor - anarquista, radical, conservadora e liberal e os tropos literários, dos quais já destacámos a ironia, mas também, a metáfora, a metonímia ou a sinédoque.

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É incontestável que a consignação da verdade como um absoluto - um aspecto natural e completamente objectivavel, categoria pragmática ou então moral - é contemporaneamente posta em causa e, de forma cada vez mais pacífica, conciliada com o contingente, o particular, o tangível, o parcelar, o relativo.

A conjugação de "tempos narrativos" e "históricos" de Ricoeur tem clara inspiração "dans une filiation augustienne et phénoménologique" .

O primeiro tempo, ou mimesis I, implica e contém uma organização narrativa intrínseca e potencial a pedir narrativização. Ricoeur nega que a realidade tenha, desde a base, forma de relato, denuncia o excesso de White e a sua inflação tropológica, a nosso ver com a propósito e de forma justa. Partilhamos do cerne desta crítica. Por outro lado, Ricoeur considera que a História tem por objecto o Humanismo e não se resigna à parte dele que se mantém intocada, massa informe e história não contada. É evidente que tal é incontornável e o passado construído através do relato que se dirige para a acção e vice-versa.

Julgamos que este movimento é comum em qualquer trabalho historiográfico, pelo menos nos seus princípios gerais, mesmo que os autores não o explicitem, ou até não sigam aspectos específicos da perspectiva de Ricoeur.

Num plano prático, diríamos que o "tempo prefigurado" de que nos ocuparemos é o do Cardeal D. Henrique irrecuperável de forma natural e apenas transponível no discurso. Para Ricoeur, a intriga, correspondente ao tempo configurado, é mediadora a três níveis: entre acontecimentos e História como um todo; entre agentes, fins, meios,

interacções, circunstâncias e entre os seus caracteres temporais. Operacionalizando, num primeiro nível tentaremos perceber os principais acontecimentos que marcaram a vida do Cardeal D. Henrique, sobretudo no que diz respeito à sua acção inquisitorial, de molde a entender como influenciou e determinou o fluxo institucional ao longo das décadas durante as quais o Cardeal exerceu as suas funções; por outro lado, tentar-se-á cruzar a sua acção inquisitorial com a política, e a administração eclesiástica em Braga, Évora, Lisboa, e, de novo, Évora.

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Procuraremos, num segundo nível, reconstruir as relações do Cardeal com os outros agentes da acção inquisitorial. Em cada um dos momentos existe um durante, a

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sincronia, correspondente ao último nível da intriga .

No que respeita ao nosso estudo, calendariza a acção henriquina, situa-a no âmbito dos seus mestres e contemporâneos, é discutível se no domínio estrito do conceito de geração, mas sem dúvida versando temáticas adjacentes mais ou menos explicitas, sem deixar de ter em conta as agruras, dificuldades e especificidades daquele conceito, indubitavelmente complexo e eventualmente não isento de polémica. Os "vestígios" de que nos ocuparemos centram-se na documentação inquisitorial,

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cruzando-a sempre que possível .

Convém esclarecer que o abismo entre História e ficção não é absoluto, uma vez que a primeira também convoca a imaginação como forma de reconstituição do passado, cujos traços são frequentemente evasivos.

Ricoeur refere-se ao trabalho historiográfico como ilusão controlada "(...) illusion qui, au sens precis du terme, confond le 'voir commme' avec un voir-voir (...) je parlerais volontiers d'illusion contrôlée"23. Concordamos com a ideia de ilusão

controlada, parece-nos feliz, dado que não afasta a imaginação, sujeitando-a a uma vigilância. Assim se urdem as dinâmicas de "reconstrução do passado", longe da consideração da história como poesia, pelo menos em sentido restrito. Já o termo

poética, mais próximo da crítica literária, não é tão despropositada, pois com ele o

historiador tem em comum a operação intelectual: a crítica, deslocando-a e afectando-a, tornando-a historiográfica.

Clarifiquemos o que acabamos de dizer, precisando o sentido de poética e recorrendo à conceptualização encetada por Leduc, reveladora de capacidade de sistematização, permeável a outras perspectivações: " (...) théorie literaire, recherche de généralités spécifiques à la littérature. Plus generalment, étude des principes et procédures esthétiques à l'oeuvre dans un texte ou un ensemble de textes" .

No que respeita ao último grau de mimesis, o terceiro, de reconfiguração, relacionado com a leitura, Ricoeur centra-se na literatura, embora procuremos aproximá-lo da História, que também tem os seus leitores, eventualmente com menor autonomia ao nível da imaginação, uma vez que se trata de uma área sempre permeável ao ensaio, tomada ou não enquanto ciência.

22 Nomeadamente do Conselho Geral. Por exemplo, provisões e processos de Lisboa, para além de

focamos o Regimento de 1552.

23 Paul Ricoeur - op. cit., tomo III, p. 338. 24 Jean Leduc - op. cit. p. 205.

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Em suma, a nossa investigação priviligia a critica positivista, sobretudo a interna, encarando a acção inquisitorial do Cardeal numa prespectiva cronológica e diacrónica, mas em busca de interpretar os seus nexos e seus sentidos internos.

Por outro lado, dos Annales recolhemos a noção de interdisciplinariedade, no nosso caso entre a história, a literatura e a filosofia como ficará patente na análise das Meditações, também sensivel a um certo criticismo pós-moderno.

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1.2. BIOGRAFIA: APROXIMAÇÕES

Convém não esquecer que, independentemente do nosso arbítrio, ao nascermos pertencemos a uma família e a um país. Ainda os traços identitários e de personalidade mais essenciais não são verbalizáveis, persistimos, passe a coloquialidade, em não 'passar cartão' a ninguém e já nos passaram um: o bilhete de identidade, símbolo burocrático e padronizado de pertença a um país, mas também exercício simplificado de aproximação genealógica; esboço mínimo de biografia.

Tantas vezes nos confrontamos, no quotidiano, com gestos quase automáticos exigidos pelo pragmatismo de situações em que nos envolvemos. Quem, numa qualquer repartição pública, dos serviços de saúde às finanças, não teve de puxar de um cartão identificativo?

A resposta é coincidente com a do Romeiro de "Frei Luís de Sousa", mas mais óbvia, menos enfática, e sem dramatismo existencial ou metafísico: - "Ninguém!".

O vocábulo biografia convoca um conjunto de forças que concorrem para concretizar e enfatizar o seu carácter polissémico, assumindo vectorial imanência, ancorando-se num devir passível de circunscrição.

A palavra é de origem grega e designa, em tradução literal, registo de vida de um determinado indivíduo, do nascimento até à morte. Pressupõe certa extensão que mobilize a parametrização de um lapso temporal adstrito à diacronia , sem descurar a selecção e fixação de alguns aspectos de um percurso, filiados numa temática específica de uma análise sincrónica.

Existem vocábulos, próximos da área da biografia, que ajudam a entender o seu sentido, iluminado por um foco tensional que concilia as noções de extensão e concentração; totalidade e aproximação.

Num primeiro grupo encontram-se as palavras radiografia e radioscopia e, no segundo, termos como retrato, perfil e silhueta26.

O estudo da biografia reclama uma perspectiva que salvaguarde a pluralidade de formas que pode assumir e resguarde a diversidade de níveis de leitura que lhe confiram

Depende da opção metodológica que se tome na segmentação do campo de estudo. Cf. Daniel Madélenat - "La Biographie". 1984

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coerência formal, configurando-lhe a identidade, entendida como dinâmica, permeável a contextualizações que a circunscrevam e actualizem.

A segmentação do campo de análise é imperativa e obedece a critérios vinculados à temática versada, à especificidade que acarrete, modelando e reiterando investidas que estreitem o perímetro de abordagem, dissecando os respectivos elementos. Seguem-se a fixação epistemológica e a demarcação tipológica da biografia.

1.2.1 FIXAÇÃO EPISTEMOLÓGICA

Impõe-se um aviso prévio que "vale tanto para a teoria quanto para a prática:

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estamos perante um terreno em vias de construção" .

Alguns autores alertam para o facto de não existir uma ciência da biografia, mas ciências da biografia, e, mesmo que existisse hipótese daquela se cumprir, seria apenas no âmbito das articulações interdisciplinares das ciências biográficas .

A atribuição do estatuto de ciência e o apuramento dos graus de cientificidade que percorram a biografia são assuntos difíceis, sinuosos e de modo algum lineares, ou sensíveis a reducionismos que atinjam um simplismo impossível de sustentar e manter através de argumentação minimamente lógica e credível.

A discussão assenta em bipolaridade curiosa: os defensores da interdisciplinaridade como procedimento metodológico imprescindível, cientes da sua amplitude, apelam à operacionalização do conceito. Esta noção é recuperada pelos que sustentam posição oposta para exprimirem os seus juízos pessimistas, assentes na ausência de um objecto próprio da biografia, o que a torna subsidiária de outros âmbitos disciplinares29.

1.2.2. DEMARCAÇÃO TIPOLÓGICA: A BIOGRAFIA HISTÓRICA

A biografia histórica lida, desde a génese dos vocábulos que conjuga e harmoniza, com duas palavras com percursos paralelos e diferenciados, umas vezes

Michel Legrand - "L'Approche Bibliographique: Théorie, Méthode, Pratiques ". 1992, p.499. ' Cf. Bryan Roberts - Biographical Rearch. 2002, p. 22 e ss. (maxime, p.31)

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divergentes, outras concordantes. Um pressuposto avulta desde logo com nitidez suficiente e exequibilidade indiciária: A Historia é, como já vincámos, disciplina e ciência autónoma. A biografia, em nosso entender, não. Pode em relação com aquela ter papel relevante ou até determinante do ponto de vista temático, conservando dependência estatutária, resultante do desempenho da função de auxiliar da História e da sua sub-especializacão.

Talvez seja demasiado arriscado dizer dela o que Strauss disparou acerca da História que considerou método sem objecto. Na sua relação com a ciência de Clio é assim que perspectivamos a biografia.

Alguns objectarão este arrazoado com aparente tautologia, que não deve ser anulada, ou esvaziada do seu sentido, mas parcialmente neutralizada em função de reequacionamento. É a seguinte: A biografia tem por objecto a vida de um indivíduo, tomada na sua totalidade ou em parte.

Esta observação é lacunar e imprecisa, tornando-se injusta para a própria biografia. Lacunar, porque se esquece que a historia, enquanto ciência do humano no tempo, tanto individual como colectivamente considerado, tem procedência institucional, que lhe advém de maior e mais abrangente definição do campo de estudo. Imprecisa, porque a vida dá tantas voltas e em piso tão escorregadio quanto a sua definição, de molde a torná-la reserva exclusiva da biografia.

A injustiça deriva da consignação e consagração implícitas do individual enquanto sentido obrigatório do fazer-se biográfico, absolutamente alheio à intromissão do colectivo.

A relação, em maior ou menor equilíbrio, dos dois eixos vectoriais referidos é uma das constantes das problemáticas atinentes à biografia histórica no entender de Levi, mas há outras, que cremos daquela decorrentes, ou em correlação com ela, como parece admitir o italiano: "la relation entre normes et pratiques, entre déterminisme et liberte, ou encore entre rationalité absolue et rationalité limitée" .

Num esquisso de operacionalização primária destas linhas de força diremos, a

priori, algo que configura e modela o que foi afirmado e se expressa em jogo de

palavras que julgamos não ser estéril ou artificioso.

Esta investigação historiográfica toma como ponto de apoio a biografia histórica, para constituir-se como História de aproximação biográfica. Até certo ponto esta

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derradeira asserção pode ser encarada como redundante, se se admitir que, de forma indirecta, a Historia visa sempre a vida, mas é certo que pela análise excessivamente quantitativa de alguma História Serial, a que já aludimos, não parece...

Félix Torres chama a atenção para o pendor quase absolutamente abstracizante e conceptualizante dos Annales. Talvez os tenha tomado demasiado em bloco, fazendo-os actores de mistificação implícita porventura abusiva, mas não isenta de interesse e assente na postulação de três níveis de leitura: "(...) afin de mieux démêler les enjeux qui soulèvent le renouveau biographique, je pense qu'il serait plus commode de les repartir entrais niveaux ou sous - ensambles, par ordre d'évidence. Le premier c'est, bien entendu, cette revanche éclatante de l'ndividuel qui manifesterait ce retour face a une historigraphie qui privilegia longtemps les trends séculiers (...)" \ Num segundo nível: "le récit biographique est condamnée a osciler entre deux poles majeurs, celui de 1' écriture et celui de la mémoire" .

Para culminar esta conjectura tríplice assoma a: "distortion histoire-vie vécue" . Uma primeira reflexão impõe-se; a identificação entre a biografia e o individual não é uma originalidade do discurso de Torres, fê-la Levi no mesmo sentido, como notámos e é, certamente, comum a outros autores.

Levi identificou quatro formas actuais de biografia histórica34: a biografia modal

e a prosopografia; a biografia e o contexto; a biografia e os casos-limite e a biografia e hermenêutica. As três primeiras colocam em questão a relação entre o individual e o colectivo, a última pode aproximar-se dos dois níveis finais propostos por Torres. Vejamos porque razão, e como, a estreita relação entre indivíduo e sociedade, posta em termos que configurem simbiose, não deve enveredar por raciocínio, a nosso ver erróneo, que aposte no carácter absolutamente comutativo de pressupostos e propriedades.

Bourdieu, sociólogo de renome e relevância reconhecidos, tinha posição assaz critica acerca do papel do indivíduo na sociedade, considerando aquele reflexo das normas e regularidades desta.

O habitus social era entendido como determinante dos comportamentos individuais. Esta posição, muito importante pelo campo teórico que de forma pioneira

Félix Torres - Du Champs des Annales à la Biographie .reflexions sur le retour d' un genre. 1985, p. 141-148

32 Félix Torres - Idem, Ibidem

33 Félix Torres - Idem, Ibidem

(37)

abriu e fez prosperar, não acautela de modo esclarecedor o dinamismo e as contradições internas das normas sociais, propicias, pela sua natureza, a conflitos no seu seio.

Queremos com isto afirmar que o nosso estudo sobre o Cardeal D. Henrique tentará ter em conta os diversos contextos institucionais em que se moveu, nomeadamente o inquisitorial, registando-se as influências recíprocas, a percepção do Cardeal sobre o Santo Oficio, os campos sociais e os níveis socio-culturais patentes na documentação sobre aquela instituição, não tomados como estanques, mas tendo em conta uma certa rigidez da hierarquização social quinhentista, que apenas se compadece com o anacronismo terminológico da expressão campos sociais desde que devidamente ressalvada e a coberto de usurpações fantasistas, pelo menos assim tentamos...

Heléne Millet escreveu um artigo ajustado e com exímias indicações pragmáticas sobre o cruzamento entre o tratamento informático e a pesquisa do singular. Partilhamos com este estudo a escolha de uma personalidade eclesiástica .

A selecção de Millet recaiu sobre o bispo Michel de Creney que viveu em finais da Idade Média. Aqui a divergência é natural. A autora francesa centrou-se no equilíbrio entre o individual e o social como base de exploração porsopografica.

Para Millet, a comparação entre indivíduos deve fazer-se conciliando as respectivas relações com a sociedade e com a época em que vivem e a existência de cada um a nível biológico.

Poderemos, nalguns aspectos, aproximar-nos dos dois primeiros aspectos, e do último apenas na vertente intelectual, sem esquecer a impossibilidade de consignação do psicológico no que respeita ao Cardeal e à sua época.

Sigamos o raciocínio certeiro de Francesa Colomer nesta matéria: "Debemos, en fin, evitar el psicologismo: la intencionalidad de una persona solo se puede esbozar pêro es el mejor que podemos hacer"36. Todavia, estas observações são compatíveis com

outra que salvaguarde a criatividade individual e a imaginação como condicionantes do pensamento e da acção do cardeal D. Henrique, passíveis de apreensão parcelar e cuidadosa que tenha em conta que das possibilidades que oferece cada época, "hay una que es própria solamente dei material humano de la historia: la criatividad"37, irredutível

à influencia de modelos absolutos, ou quantitivismos esmagadores.

Hélène Millet - L'Ordinateur et la Biographie ou la Recherche du Singulier. 1985. p. 115-127

36 Francesca Colomer Pellicer - Biografia e Cambio Social: la historia que estamos vivendo. 1995, p.

171.

(38)

De algum modo, o tratamento informático que Millet propõe corre, se mal direccionado, esse risco, uma vez que a sua aplicação, dado que é porsopográfica, se generalize do singular ao colectivo. Numa perspectiva metodológica o exemplo de Millet constitui referência útil .

38 O esquema que aplicou a Creney foi o seguinte nos seus pontos principais:

1- dados cronológicos - datas de nascimento e morte;

2- inserção geografica-origem e domicilio lugar de sepultura e viagens;

3- inserção social - A) família natural (geração precedente; colaterais e geração seguinte); B) família espiritual (padrinho afilhado; confraria; confessor; pertencente a ordem religiosa); C) laços de familiaridade; círculos frequentados (pertença a uma família; a uma instituição; amigos; pessoas que o designaram como executor testamentário, laço vassálico; aliança por contrato; partido); D) estatuto social (de geração precedente do indivíduo; da geração seguinte; da família aliada);

4- nível económico (bens patrimoniais; dotes; adquiridos; bens moveis; rendimentos; garantias; pensões; elementos do modo de vida; doações recebidas; dividas liberalidades caritativas ou artísticas;

5- nível cultural (formação de tipo secundário; universidade frequentada; disciplina estudada; grau universitário; posse de livros; papel na produção literária e artística, mecenato; obra conservada; assinaturas)

6-carreira eclesiástica - A) regular; B) secular (nível de orientação; beneficio), bispo ou cardeal -; 7- carreira ao serviço da igreja;

8- funções universitárias ou culturais; 9- serviço civil do estado;

10- serviço das colectividades locais; 11-Armada;

12- carreiras práticas; 13- carreiras de negócios; 14- profissão;

15- agricultura;

16- outro tipo de carreira;

17- vida pública (papel político representado próximo do rei, papel político junto de um senhor); 18- missões, ligações, embaixadas; participação numa assembleia; atitude face a um acontecimento; particularidades físicas; saúde; testamento; produção de documentos de arquivos; implicações de um processo; devoções, traços de carácter);

19- fontes; 20- bibliografia.

De todos estes traços os que ajudam a traçar panorâmica da vida do cardeal são os do nível económico que nos escapam mais e tocaremos episódica, transversal e subsidiariamente, por vezes por falta de fontes, outras por não nos centrarmos em fontes como o testamento, ou ainda pelo melindre de algumas matérias tratadas a respeito e em virtude de certas temáticas como é o caso dos benefícios e da prática das administrações diocesanas como por exemplo de Évora.

Os primeiros dois pontos são à partida mais estáticos mas implicam-se, constituindo aspectos fulcrais para execução deste estudo.

Se não tivesse vivido nos limites temporais e espaciais que o nascimento condicionou e proporcionou deixando margem, embora relativa, ao livre-arbítrio, o Cardeal teria sido, parcial e provavelmente, outro.

É obvio que esta conjuntura se reveste de algum perigo, mas não a julgamos desprovida de provimento. A questão da inserção social depende das precedentes e entra em interacção com as restantes, nomeadamente as da cultura, da carreira religiosa e política, em conexão com a vida pública.

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