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CORRENTES DE ESPIRITUALIDADE

O CARDEAL D HENRIQUE: O PENSAMENTO DA ACÇÃO

CORRENTES FILOSÓFICAS:

5.2. CORRENTES DE ESPIRITUALIDADE

5.2.1. LITERATURA ANTI-SEMITA

Perante as "Meditações e Homilias (...)" há entre outros aspectos uma questão que se coloca, uma situação que se apresenta, um problema que se põe. A pergunta é a seguinte, este texto poderá pertencer ao grupo da literatura anti-semita?

Eis a situação que se nos depara: a relação entre literatura anti-semita no século XVI e as "Meditações e Homilias (...)", de molde a adivinhar ou perceber eventuais contornos, naturais coincidências e convergências, prováveis assimetrias, dissonâncias, pólos de afastamento.

Deve considerar-se, em primeira instância, a possibilidade de circulação e de interferência entre o discurso literário e as práticas sociais com carga religiosa e política, o primeiro influenciando as segundas, e sendo por elas afectado.

Os critérios ou os limites da procedência cronológica não são fáceis de determinar e estabelecer, tão turvas e indissociáveis as implicações mútuas. Todavia, convém admitir o seguinte: os inquisidores eram, na sua maioria, homens cultos com uma formação intelectual e teológica que lhes permitia ajustar e condicionar a sua acção em função do que liam e estudavam, da informação doutrinária que digeriam. Por outro lado, a sua aprendizagem constituía adequação aos quadros empíricos em que se moviam, reagindo a uns, criando ou moldando o curso de outros.

Foi, sem dúvida, importante a mobilização anti-semita da Inquisição portuguesa desde os primeiros momentos, atingindo uma expressão forte, iniludível e dominante, tornando-se prioritária em meados de quinhentos.

A situação complica-se, se tivermos em conta que parte da literatura anti-semita foi escrita e produzida por cristãos novos que assim procuravam; atestar a veracidade da sua conversão, proteger-se e garantir condições para a sua sobrevivência e aceitação quotidiana junto dos cristãos-velhos. Por isso, por vezes, o posicionamento daqueles tornava-se mais rígido, intransigente, mesmo inflexível, do que o de alguns cristãos ortodoxos, menos firmes na assunção da sua fé e do respectivo ideário. Talvez esta postulação se entenda melhor e não resulte tão estranha e inusitada, assomando como lógica, se a confirmarmos no seio dos processos inquisitoriais.

Entre os cristãos novos, os testemunhos anti-semitas eram, por vezes, tão ou mais severos que os dos inquisidores, tanto mais que alguns deles tiravam partido do facto de conhecerem por dentro, de terem vivido intima e diariamente a fé que renegavam.

Os textos anti-semitas mais conhecidos nesse conspecto são posteriores à época henriquina, embora dela tributários; por isso os referimos e foram escritos pelo converso João Baptista Deste em 1616 e 1621. Talvez a sua divulgação tenha assentado na respectiva qualidade literária, na solidificação da sua identidade em meios cultos, cujo eco se expandiu de forma pródiga e consistente.

Será eventualmente reflexo do amadurecimento dos procedimentos inquisitoriais ou paralelos à consolidação desta imensa rede que se preparava para tempos de menor e menos permanente fervor, cujo enaltecimento era entendido como problemático, indesejável, constituindo perigo a desincentivar, neutralizar e, se possível, no mais apetecível dos cenários, desactivar.

Muito anteriores às "Meditações (...)" foram os esforços de João de Barros em 32 na Ropica penefena e posteriormente, em 42, no "Diálogo Evangélico Sobre os artigos da fé contra o talmude dos judeus"313. Estes dois textos demonstram dupla e

diversa atitude que podia tomar a literatura anti-semita, respectivamente, a confirmação e consolidação da fé cristã em geral, e católica em particular; e por outro lado, a acusação liminar e severa ao judaísmo, pulverizando as tentativas de legitimação e assimilação da crença judaica.

Normalmente, esta segunda via era a mais presente, interessava prioritariamente abrir um frentismo ostensivo e doutrinário contra os judeus, ao invés de reflectir serena e internamente sobre os desequilíbrios do cristianismo e do catolicismo, procurando corrigi-los.

O "Diálogo (...)" de Barros tinha uma forma comum à maioria da literatura polémica anti-semita. O seu teor não se dirigia à promoção da controvérsia, da discussão aprofundada de ideias ou à discórdia. Antes fortalecia a ortodoxia, tal a índole instrumental deste universo textual. A figura do "discípulo" limitava-se a confirmar, catalizar e impulsionar as doutrinas do mestre, funcionando a sua figuração como enriquecimento do dispositivo narrativo e da engrenagem discursiva.

O "Diálogo (...)" de Barros é ainda mais interessante porque o autor o dedica ao Cardeal D. Henrique, então Inquisidor Geral, confirmando-se a vontade de

interpenetação entre a prática institucional, a dar primeiros passos, e a literatura, esta última, neste caso concreto, impulsionada por intelectual tão prolífico e respeitável como era João de Barros, cujo prestígio e poder de influência resultavam inquestionáveis e sinais claros de uma concertação entre o que se fazia e o que se escrevia: "(...) Na dedicatória a D. Henrique, a intenção do autor era prevenir as possibilidades de contaminação crescente da fé católica. O livro é, em seu entender, um instrumento de ajuda, uma tentativa de colaboração de um leigo com a autoridade

T i / : eclesiástica" .

Os textos de Amador Arrais, posteriores ao tempo e espaço de intervenção henriquinos, também foram importantes pelas diferenças decisivas que demonstraram em relação aos anteriormente citados de Barros, mas não seriam dominantes enquanto D. Henrique viveu. Os escritos de Arrais não evidenciavam um programa estabelecido, uma disciplina de escrita devidamente estruturado, um plano coerente e deliberado.

Entendia, todavia, aquele autor que uma atitude polémica estritamente anti- judaica e realizada pela negativa não era tão benéfica quanto uma outra que privilegiasse a valorização dos princípios fundamentais do cristianismo, alicerces da sua defesa e suposta vantagem.

Uma atitude radical constituiria forma de publicação do judaísmo, momento de sua divulgação, ainda que para contraditá-lo. Por outro lado, era um meio de enfraquecimento da crença de cristãos velhos, cujos conhecimentos fossem mais frágeis, evidência de uma fé menos aprofundada .

Ambas as tipologias esboçadas partilham algo: as temáticas, que são as seguintes, de um modo geral e sem grandes variações ou oscilações assinaláveis: "(...) Em primeiro plano deparamo-nos naturalmente com o tratamento mais ou menos circunstanciado das divergências doutrinárias entre judaísmo e cristianismo. Assim, são pólos de discussão, em todos os textos citados, a vinda do Messias, a encarnação do verbo, a humanidade de Jesus, o sentido da vida e da Paixão de Cristo e o Mistério da

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