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D. HENRIQUE E O HUMANISMO: O PENSAMENTO E A ACÇÃO

2.3. D HENRIQUE E O HUMANISMO

"D. Henrique (...) nasceu em Lisboa a 31 de Janeiro de 1512, filho dei Rey D. Manuel e o sétimo da segunda mulher, a Rainha D. Maria" 50. Assim, principia a

descrição de D. Henrique elaborada por António Caetano de Sousa, na sua "História Genealógica da Casa Real Portuguesa".

Concretizando, o intuito principal da sua investigação era estabelecer o registo e notação da genealogia dos reis portugueses, como D. Henrique, que viria a ser o último da dinastia de Avis51. Muito antes disso, o quarto filho na linha varónica do venturoso

seguiu a vida religiosa, uma vez que não era primogénito e não estava na linha directa da sucessão de seu pai, ao contrário do seu irmão mais velho, D. João III.

Em 1526, com apenas 14 anos, recebeu ordens menores e tornou-se prior comendatário de Santa Cruz de Coimbra. De ressaltar o prestígio deste cargo, em tão importante mosteiro, existente desde a Idade Média e destacado centro de espiritualidade e cultura religiosa nacional. D. Henrique iniciava a sua carreira eclesiástica muito relevante e em crescente e contínua ascensão.

Esta problemática depende do ângulo de abordagem em que a situemos, do período da vida do Cardeal que divisemos ou, tão só, do critério que enfatizemos. Mesmo estas asserções devem ser tomadas com cautela e de forma avisada, como guias, pistas, perspectivas, visando precauções do foro metodológico. A título de exemplo, convém ter em conta que, apesar de poder evoluir com o avançar da idade, uma mentalidade individual tem alguns traços constantes e perenes.

É certo que o infante beneficiou de uma educação de corte, que o seu irmão D. João III queria conciliar poder temporal com ascendência no religioso, granjeando, para tal, prestigio que lhe alargasse o poder e o tornasse mais consistente. Nesta conjuntura, para cumprir tais objectivos, que se tornaram desideratos, e, depois, imperativos,

Américo da Costa Ramalho - O Humanismo. 2000, p.375.

Ver Anexos: Cronologia de D. Henrique e da Inquisição Portuguesa

50António Caetano de Sousa - História Geneológica dos Reis de Portugal. 1947 p. 371-394. vol. Ill 5'António Caetano de Sousa- op. cit.

adoptou na corte um modelo de educação que glosava o das cortes europeias, que pretendia imitar, seguindo a "moda" então vigente.

Mais do que o aprofundamento em direcção a um humanismo que conciliasse a vertente filológica e a vocação cívica, de intervenção na sociedade, seus costumes e hábitos, interessava incutir um humanismo filológico, voltado para a exegese bíblica, não ferindo importante e intransigentemente o tradicionalismo dominante.

Deste modo, D. João III chamou para a corte: Aires Barbosa, Clenardo, Pedro Nunes e André de Resende, para preceptores dos príncipes. Quase todos vocacionados para o latim e gego (nomeadamente Aires Barbosa) e para a teologia (Resende, Clenardo), ou seja, para as disciplinas do trivium, só um ensinava matemática e astronomia (Pedro Nunes).

Uma outra diferença assomava entre os três primeiros e o último, aqueles convergiam para a adaptação do humanismo filológico a contexto cristão, enquanto Pedro Nunes pertencia ao chamado Renascimento Português, de feição fortemente prática e empírica, voltado para a aplicação da inventividade à técnica, e desta aos instrumentos de navegação, propícios à gesta das Descobertas. Evidenciava um humanismo que se centrava na experiência, no experiencialismo

Admitimos a possibilidade de todos os humanistas terem influenciado D. Henrique, por acção mais directa - como provavelmente aconteceu com Clenardo ou Pedro Nunes - ou indirecta, enquanto professores dos seus irmãos, como Aires Barbosa53 e André de Resende. Este último foi numa fase posterior pregador do

Cardeal. Torna-se imperativo sistematizar o percurso de cada um destes mestres, na ânsia de conhecê-los melhor, de concretizar trajectórias, visando traçar linhas paralelas, tangentes e divergentes com D. Henrique, ao longo da vida deste.

O Cardeal D. Henrique nunca foi poeta, não se especializou na escrita de epístolas, nem de epigramas, tão pouco lhe interessava a prosa de cariz ficcional.

Esteve, por outro lado, sempre ligado à produção de teor legislativo: a antecipação dos decretos tridentinos, a sua publicação, as constituições diocesanas de Lisboa de 1565 e 1568.

Cf. José Sebastião da Silva Dias - Os Descobrimentos e a Problemática Cultural do Século XVI. 1988.

Não se dedicou, portanto à imitação dos clássicos. Os seus textos, ou por si inspirados eram, como é bom de ver, reveladores do seu espírito empreendedor, voltado para a concretização. O impulso dado à criação dos colégios e à universidade de Évora é bem revelador. Acresce que, a única obra de reflexão "sistemática" que nos legou foram as "Meditações e Homilias" (1574-1577), que não eram puramente de reflexão, nem totalmente sistemáticas. Tinham o fito de defender a prática da oração e não constituíam peça literária particularmente original.

Desde sempre, mesmo nos anos que precederam Trento e sobretudo depois: "o Cardeal D. Henrique tem preferências que vão no sentido da articulação do classicismo literário com a inspiração do integrismo teológico"54. Após o Colóquio de Ratisbona e

realizada a primeira fase do Concílio Tridentino, o Cardeal acentuou a segunda vertente, sempre presente, arriscamos até que esse espirito estava bem patente em 1541, aquando da realização das instruções da Inquisição.

Quanto ao Humanismo Cristão, Erasmo é, sem dúvida, dos humanistas que maior fortuna crítica tem tido ao longo do tempo, senão a mais proeminente. Não exageraríamos se dissermos que é impossível contabilizar os estudos sobre o Roterdamês, ou contabiliza-los, de tal modo são abundantes e diversificados. A discussão do Humanismo Cristão não deve, nem pode, ser insensível ou indiferente à sua figura mais conhecida e proeminente.

Esta relevância prende-se, em primeira instância, com a circulação do humanista por toda a Europa, pessoalmente ou através dos seus escritos, quase nenhum recanto lhe foi ou ficou indiferente. Passe algum exagero retórico eventual, o número de edições das suas diversas obras, ainda em vida do autor, não desmente a popularidade granjeada e a fortuna da recepção do humanista e dos textos. De tal modo que mais ninguém conseguiu à época tamanha fama, pelo menos de entre os eruditos, talvez só um recuo até Petrarca desenhasse prestígio semelhante, mas o italiano era conhecido em França, Países Baixos, Europa Central e no seu país de origem. Todavia, ao contrário de Erasmo, como reconhece Peter Burke, "a sua fama no se estendia desde Portugal a Polónia como era el caso de Erasmo hacia 153O"55. Porém, as décadas de mais frutuoso

êxito do roterdamês foram os de 1500 a 1520, no que tange à Europa no seu conjunto.

José Sebastião da Silva Dias - op. cit. p. 701 e ss. A ideia de integrismo teológico deve ser encarada com certo cuidado e alguma cautela e por isso Silva Dias se refere a ela em termos como "inspiração" É uma questão a desenvolver, que não cabe o âmbito e espírito desta nota.

No caso português o impacto foi mais tardio. Resende tentou conhecer Erasmo em 29 e Damião de Góis correspondia-se com ele na década de 20. A necessidade de trazer Erasmo a estas páginas não é alheia ao seu acolhimento, favorável - como no caso citado -, indiferente ou crítico por parte do humanismo português.

Dos mestres que gravitaram em torno de D. João III só Pedro Nunes, provavelmente pela sua formação, terá permanecido incólume à influência do mestre de Roterdão que, apesar de ser conhecido pelo nome da terra em que nasceu, era mais europeu do que do seu país, sendo conhecido por "Erasmo da Europa" ou "Erasmo da Cristandade". Este reconhecimento não terá sido alheio a vários factores. Erasmo expressava-se em latim, era um tradutor de prestígio, sobretudo de textos cristãos, não desconhecia os editores mais influentes, de quem era próximo, conhecido, amigo. Esta situação facilitava o contacto nos mesmos moldes com outros humanistas.

A especificação do tipo de relação encetada e desenvolvida por Erasmo e pelas personalidades que foi encontrando por toda a Europa foi objecto de estudo atento e perspicaz de Peter Burke que distinguiu empregados ou amigos; conhecidos e destinatários de cartas e admiradores à distância56.

O autor situou os portugueses citados no último grupo e não se coibiu de referenciar ainda as rupturas57, aqueles que, por uma razão ou por outra, deixaram de

estar próximos de Erasmo.

Talvez a dimensão do roterdamês fosse um dos seus trunfos e o tenha levado a ter admiradores entre católicos e protestantes, numa fase inicial, mas foi progressivamente tomada com indignação e criticada por uns e outros. Também quem com ele rompeu não lhe terá perdoado o facto. Os humanistas italianos, de matriz pedagógica e linha ciceroniana, acusá-lo-iam do contrário, se disso tivessem oportunidade.

O certo é que ninguém deixaria de se pronunciar num sentido ou noutro sobre Erasmo. Talvez assim se explique a sua importância, tanto mais que "Erasmo no era un personage carismático. Era un escritor prolífico pêro no un grand pensador. No tenia nada realmente original que decir y sus idéales del 'buen aprendizage' (bonnae litterae)

'Peter Burke - Idem, Ibidem. Peter Burke - Idemjbidem.

y la 'Filosofia de cristo' (Philosophia Christi) son quanto menos algo imprecisos. Era

CO

un buen erudito, pêro no excelente, si nos guiarmos por los parâmetros actuales" . Erasmo teve particular influência nos Países Baixos ou Inglaterra. O facto de ter vivido nestes países pode ser uma explicação para essa prevalência. Mas, a sua moderação e tolerância poderão ter contribuído. Quanto ao perfil social dos Erasmistas, dos destinatários das suas cartas, 347 eram laicos e 297 religiosos. Destacavam-se eruditos, dirigentes e comerciantes.

58 Peter Burke - Idemjbidem p.49 e ss. Esta ideia é discutível mas já a encontramos, no que respeita à

novidade de algumas das propostas de Erasmo Ivo Carneiro in História da Antiguidade da cidade de

Évora. 1996. Julgamos, todavia aceitável a opinião expedida por se estudar Burke num conhecimento