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D. HENRIQUE E O HUMANISMO: O PENSAMENTO E A ACÇÃO

2.5. OS MESTRES HUMANISTAS E D HENRIQUE: FORMAÇÃO E INFLUÊNCIA AO LONGO DA VIDA

2.5.1. AIRES BARBOSA (1470 1540)

Ao iniciar a abordagem deste autor, convém tomar em linha de conta que, mesmo sem inquérito ou sondagem prévios, um dado assoma incontornável: Aires Barbosa será, talvez, das figuras menos conhecidas e populares do Humanismo Português, ou a ele afecto

À margem da sua filiação humanista, um facto é irrefutável. Trata-se de uma personalidade ainda mal conhecida dos públicos alargados, sendo o seu estudo circunscrito a círculos académicos e afins. Para tal contribuiu a recente tradução e reedição das suas obras .

O retrato e a análise em torno de Aires de Barbosa e a abordagem bibliográfica permitem uma sistematização e um conhecimento mínimo da relevância intelectual do autor; perceber o percurso académico do autor como humanista e entender de que maneira essa percepção condicionou e aprofundou o conhecimento do seu perfil intelectual.

Estes desideratos estão dependentes da configuração de Aires de Barbosa como um pensador que, mesmo nos seus escritos, nunca deixou de ser essencialmente professor e pedagogo, voltado para a análise da palavra como semente da acção, defensor intransigentemente dum programa vocacionado para a utilidade social de um trabalho centrado no latim e no grego. Também D. Henrique era um homem de acção, como já se disse, e as "Meditações (...)", que analisaremos mais adiante, tinham igualmente esse cunho, acusando, todavia, uma preocupação pedagógica mais difusa e num sentido lato. Esta dimensão só se entende se devidamente enquadrada nos anos 80 de quatrocentos, mais concretamente entre 82 e 88. Depois dos primeiros estudos e mais básicos ensinamentos, Aires de Barbosa rumou a Salamanca .

José Henrique Rodrigues Manso - op. cit.

64 Aires Barbosa era filho de Fernando Barbosa e de Catarina Figueiredo, de cuja a família se conhece

um maior número de elementos. Catarina Figueiredo era irmã de Martim de Figueiredo, doutor em direito civil e canónica, membro de Conselho Geral de D. João III. Poeta e latinista de renome tinha passado por Florença onde colheu preciosos ensinamentos do Poliziano.

O seu exemplo poderá ter influenciado o percurso do sobrinho, que também haveria de aportar a tais paragens e ouvir lições do mesmo mestre.

Mas, antes disso, fez os estudos básicos ainda em Portugal. Em 82 dirigiu-se a Salamanca para se licenciar em artes, na área das humanidades clássicas, detentora de pouca fama, ao contrário da teologia e do direito.

Aires Barbosa não desistiu, o seu ânimo estava longe de esmorecer. Atesta-o a perseverança com que terá cursado as 7 artes liberais e que se mantinham, com figurino diverso, desde a Idade Média.

Barbosa não se quedou pela formação salamantina. Prosseguiu estudos de latim e grego com Poliziano. Cerca de 1495 regressou a terras de Tormes, tornando-se o primeiro professor da catedrilha de grego, criada na década anterior, mas nunca ocupada. Os seus créditos foram-se firmando e tornou-se num helenista da estirpe de Aleandro ou Budé, ainda que sem obra escrita que o impusesse nesse domínio, ao contrário daqueles e, todavia, tal prestígio granjeou-lhe o epíteto de mestre de grego e mesmo de latim. Recebeu o exemplo de mestres seus, que não mais largou, como Nebrija ao qual se referiu, ou Roa, que elogiou. Contactou, ainda, com outros cultores da erudição transalpina, o siciliano Lúcio Marineo Siculo, que ocupava a cadeira de retórica desde 1484 e Pedro Mártir, natural de Milaneso, que lhe inculcaria o gosto pelas civilizações clássicas, impulsionando-o a mudar mais uma vez de rumo, seguindo o seu caminho.

Em 1503, graças à sua formação em Itália, Aires Barbosa foi formalmente aceite no seio dos académicos, tomando posse de uma cátedra de prima, a de retórica. Mas a sua ambição não se ficou por aqui.

No ano seguinte concorreu à cátedra de Gramática que entretanto vagara, por morte do titular, Espinosa. Todavia, Nebrija65 perfilou-se e Barbosa abdicou; cinco anos

volvidos Nebrija foi para Alcalá.

Em 1509, por concurso, Aires Barbosa conseguiu o que sempre quisera; tornou- se titular da cátedra de prima de gramática, que não mais deixou, até à jubilação.

Entre 1512 e 26 são poucos os dados de que dispomos acerca deste filólogo cuja obra essencialmente didáctica é centrada em questões literárias e gramaticais. Um ano antes da primeira data, em 1511 começou a ser publicada a obra "Ari Barbosae

Lusitaniae in verba M. Fabri. Quid? Quod At Reliqua Relectio De Verbis Obliquis";

seguiram-se: "A Epometria e seu Demetiendi Carmina Oratione" (1515); "O

Sobre as possíveis relações entre Nebrija e Barbosa veja-se o resumo do artigo de Francisco Rico:

Epigramatum Seu Operam Poeticarum" (1516) e a "De Prosódia, Scilicet, Relactio, Seu De Poética, Ac Recta Scribendi Ratione" (1517).

No ano de 1520 foram publicados três opúsculos em louvor de Pedro Margalho, no seu compêndio de física: "Epigrama in laude in Petri Margalli" (1520); "Epistula

Latina, Aris Barbosa Lusitanis, Margalhus Theologo DoctorF (1520); "Ad Iuvens Studiosos Bonarum artium Carmen" (1520)66. Os trabalhos citados destacam um labor

essencialmente filológico, ao qual D. Henrique não viria a ser sensível, nem nas suas "Meditações (...). " posteriores em cerca de três décadas e meia à morte de Aires Barbosa.

A jubilação ocorreu 3 anos depois, em 1523, culminando num período de grande actividade pedagógica e editorial. Regressou a Portugal mas não ainda para escrever a "Antimoria", projecto que tanto acalentava.

Esperavam-no um convite e um apelo irresistíveis de D. João III ensinar, como perceptor do Infante D. Afonso, Cardeal desde os 7 anos, então com 14, e talvez do Cardeal D. Henrique67. O príncipe D. Afonso estava em Évora mas a corte mudou

muitas vezes de lugar. Um projecto que Barbosa tinha previsto para 3 anos e demorou mais. Em 1530, o perceptor recolheu-se finalmente a casa, na zona da Esgueira, na companhia dos filhos Margarida e Fernando.

Mas a "Antimoria" só ficaria concluída em 1536 e foi o único texto de Barbosa impresso em Portugal, em Santa Cruz de Coimbra, nas oficinas de Germão Galharde. Grande parte do pensamento filosófico e teológico do autor encontra-se condensada nesta obra e no referido comentário à obra de Arator, a "História Apostólica".

Em ambos os textos desenha-se um humanismo que alia o classicismo e uma leitura cristã. Nunca D. Henrique fez qualquer Comentário, nem o respectivo espírito comparece nas suas "Meditações e Homilias (...)".

O Comentário em formato discursivo que retoma tradição medieval, num outro âmbito, congrassa diversos níveis de leitura: o histórico, o epistemológico, o sintáctico, o semântico, o métrico, o bíblico e o teológico: "(...) os factos históricos explorados por Aires Barbosa (...) fornecem um quadro bastante nítido de uma época, onde nos surge esta obra singular que terá também por objectivo, reabilitar o dogma como centro de fé

Esta enumeração das obras de Barbosa é feita por José Henriques Manso - op. cit. p.9-16.

67 Esta afirmação constitui apenas uma hipótese. Não encontramos fontes primárias que a

confirmassem cabalmente. Contudo, no sentido contrário à afirmação.

Cf. Sebastião Tavares de Pinho "Les Etudes de Grec à l'Université de Coimbra (XVI Siècle) 1994. p. 89- 90.

e confirmam a autoridade papal como expoente máximo e único em matéria dogmática68".

Antecedendo a História Apostólica publica-se uma carta a Floriano e outra a Virgílio, Papa em meados do século VI. Embora a "História Apostólica" de Arator date da época medieval, o "Comentário (...)" de Barbosa tenta que seja um exemplo para a sua própria época.

O comentário, seguindo o exemplo medieval serve a Aires Barbosa de pretexto para expressar opiniões face à sociedade do seu tempo. As "Meditações (...)" de D. Henrique têm espirito semelhante, mas manifestam-se de forma mais disseminada, difusa e sobretudo, rebuscada

Por seu turno, a etimologia não é das áreas mais focadas no Comentário de Barbosa. A ela se recorre quando é preciso explicar o significado de certa palavra, se o vocábulo for antigo ou resultar necessária a indagação da sua raiz o grego é um excelente instrumento auxiliar neste domínio. Nesta matéria as "Meditações (...)" são omissas.

A ordem, a concordância e o sentido das palavras e frases também foram tidos em conta. Aires Barbosa privilegiou uma abordagem sistemática semântica do texto, de Arator, tendo sempre em conta que estava a editar reflexões que constituiriam acima de tudo amplo suporte à actividade pedagógica dirigida mais a ouvintes do que a leitores e em que o recorte erudito interessava pouco. O texto das "Meditações (...)", embora mais intimista, partilhava alguns destes pressupostos, nomeadamente o menor interesse pela erudição.

No plano da síntese, Arator respeitou a existência de ordem no verso latino, invertendo-a. Ao contrário daquele, que colocava o verbo no fim da frase, Barbosa elegeu a seguinte sequência: sujeito, predicado, complementos.

No campo semântico, Aires Barbosa privilegiou os seguintes processos: paráfrases, sinónimias e explicação semântica perifrástica. No plano estilístico as "Meditações (...)" viriam a manifestar-se menos variadas e ricas.

Antes de se referir à métrica utilizada por Arator, Barbosa contextualiza-a, acusando os seus confrades de serem muito críticas em relação aos poetas cristãos demasiado premissivos com os clássicos. Também nas "Meditações (...)" o Cardeal preferiu a patrística e, sobretudo, os evangelhos.

Arator seguiu dois cristãos: Sedúlio e Juvenco. Sem os copiar, plasmando ou privilegiando os seus métodos e temas, serve-se deles no uso amplo e elástico do conceito de Imitatio que contempla e integra o de inovação, estimulando-o.

Barbosa demonstra conhecimento bíblico sólido e bem fundamentado. O comentário bíblico comprova-o. O mesmo tempo de raciocínio poderia aplicar-se às "Meditações (...)" de D. Henrique.

Os Actos dos Apóstolos são a continuação do evangelho de Lucas. Este termina com a Morte, Ressurreição e Ascensão de Cristo. Aqueles começam com a Ascensão do Espirito e continuam referindo-se à eleição de Matias, o martírio de Santo Estevão, a conversão de S. Paulo e sobretudo destacam Pedro.

A partir do capítulo doze centram-se na personalidade de Paulo. O livro I do Arator corresponde aos primeiros doze capítulos dos autos e o segundo aos restantes. Barbosa notou e explicitou tais correspondências.

Em estudo clássico69, Vitorino Pina Martins encontra ecos de inspiração

erasmiana e da influência do pensador de Roterdão no estilo sóbrio e equilibrado do comentário à História Apostólica de Arator.

Vai mais longe ao vislumbrar reminiscências e fixar reverberações do ideário do humanista na "Antimoria", que seria antierasmiana apenas instrumental e formalmente, à superfície, condenando em Erasmo não o essencial dos seus posicionamentos, mas o estilo e o tom: irónicos, ao jeito de Luciano.

No essencial Barbosa e Erasmo convergiam na visão cristocêntrica, no "Amor Christi", numa piedade pura e impoluta, liberta de deturpações dos rituais primitivos, encobertos por corrupções e esterilidade. A pureza ritual também seria um dos vectores principais das "Meditações (...)".

A "Antimoria" é uma peça poética, de índole retórica, que aposta em diversos recursos estilísticos, como por exemplo a antítese ou metáfora, e num apuro formal que reforça uma estratégia assente em algumas permanências medievas como: a oposição do bem ao mal, a luta cruzadística por aquele, ambas enquadráveis numa lógica de

disputatio mais do que argumentatio. Nas "Meditações (...)" também se nota por vezes

essa tendência, matizada por arreigada confessionalidade.

69 José Vitorino Pina Martins - Humanismo e Erasmismo na Cultura Portuguesa do Século XVI.

A feição humanística cristã da "Antimoria" reconhece-se na citação de autores clássicos e de doutrina cristã. "(.. •) vers 1536, Aires Barbosa est donc, au Portugal, avec son Antimoria, un des représentants, les plus authentiques de l'humanisme chrétien. Son livre, comme d'ailleurs l'éloge de la folie qu'il vise doit être bien compris pour que cet

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humanisme ne soit pas mal intrepreté" .

A "Antimoria" é exemplo claro e vivo do conhecimento da obra de Erasmo cerca de 1536, também comprovado nas palavras elogiosas que Jorge Coelho, ao tempo secretário do Infante D. Henrique, lhe dirigira, segundo as quais houvera um tempo em que se deixara contagiar pela obra de Erasmo, mas, por outro lado, testemunha também a acentuação de preocupações religiosas no nosso humanismo, tendo como centro o círculo de D. Henrique .

Quando Barbosa morreu ainda a experiência inquisitorial de D. Henrique se estava a construir e moldar. Por outro lado, o contacto deste com textos escritos restringia-se às Constituições Diocesanas de Braga -cidade na qual encetara funções de Arcebispo-, que inspirou.

A influência de Aires Barbosa sobre D. Henrique ou até a proximidade entre ambos terá sido muito circunstancial, baseada em provável comunhão ideológica deste para com aquele.

70 José Vitorino Pina Martins - L'Humanisme Chretien au Portugal. 1994.

Jorge Osório reforça esta ideia e dá o seu contributo, referindo-se à Antimoria: "(...) o significado da obra, como já foi observado, não se dirige propriamente contra a Moria Erasmiana, no sentido de pretender rebatê-la, mas, diferentemente, acentua como a célebre declamatio do Holandês conduzia a uma errada noção das finalidades da obra de um autor cristão (...), o português está longe dessa doctapietas no sentido e orientação que lhe propunha Erasmo, a saber: o papel que, no seu plano para o estudo da verdadeira teologia, cabia às línguas antigas, e, consequentemente, o lugar secundário ou nulo concedido aos textos tradicionais da igreja".

Barbosa, não pôs em causa a elegância e erudição de Erasmo, mas a sua suposta colocação ao serviço do elogio dos vícios humanos.