PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM PSICOLOGIA
MESTRADO EM PSICOLOGIA
A RELAÇÃO AGENTE PENITENCIÁRIO/SENTENCIADO: A VISÃO DO APENADO
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu
em Psicologia, da Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Psicologia.
VINÍCIUS DE ALENCAR VIEIRA
ORIENTADOR: Prof. Dr. VICENTE DE PAULA FALEIROS
7,5 cm 7,5cm
V657r Vieira
,
Vinícius de Alencar.A relação agente penitenciário/sentenciado: a visão do apenado / Vinícius de Alencar Vieira. – 2006.
ix, 200 f. ; 30 cm
Dissertação (mestrado) – Universidade Católica de Brasília, 2006. Orientação: Vicente de Paula Faleiros
1. Prisão. 2. Agente penitenciário. 3. Detentos. I. Faleiros, Vicente de
Paula, orientador. II. Título
Sensu em Psicologia da Universidade Católica de Brasília, sob a orientação da Professor Doutor VICENTE DE PAULA FALEIROS.
Examinada e aprovada pela banca:
___________________________________________
PROFESSOR DOUTOR VICENTE DE PAULA FALEIROS
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA
_____________________________________________________
PROFESSORA DOUTORA DENISE BOMTEMPO B. CARVALHO
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
_________________________________________________________
PROFESSOR A DOUTORA MARIA APARECIDA PENSO
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA
________________________________________________________
PROFESSORA DOUTORA MARIA AUXILIADORA CÉSAR
“A pior coisa que pode acontecer a um homem
é a perda de sua liberdade.”
“Não sou nada Nunca serei nada Não posso querer ser nada À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo Janelas no meu quarto.(...) Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, (..) Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu (...). Falhei em tudo Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.(...) Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa! E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo? Fiz de mim o que não soube E o que podia fazer de mim não o fiz
O dominó que vesti era errado. Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara. Quando tirei e me vi no espelho,
Já tinha envelhecido. Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado. Deitei fora a máscara e dormi no vestiário Como cão tolerado pela gerência Por ser inofensivo E vou escrever esta história para provar que sou sublime.”
Para Nair, mulher forte
que suporta a luta cotidiana, aos seus,
mas não a uma dedicatória.
Para Renato e sua sempre otimista visão das coisas,
capaz de clarear em uma só palavra o breu no caos.
À D. Laura, cujos olhos diariamente me visitam.
Para Fábio e sua disponibilidade de sempre
socorrer -me, sendo sempre justo no tamanho e na forma.
Ao Leo, que ainda não conheço, mas que já o tenho comigo.
À Renata que me apresentou o Leo.
À Eduarda que me apresentou um novo amor.
Á D. Sinhá, meu pé.
À Renata, aquela que me faz querer sempre mais
Ao professor Moreira, incompreendido por mim na época da graduação,
mas que possibilitou-me a iniciação da formação de uma consciência crítica
acadêmica.
Ao Eugênio Prado e Geraldo Carozzi, pela forma suave de lecionar,
privilegiando mais as perguntas que as respostas que norteiam minha atuação
como docente.
Ao Délcio, amigo e mestre. Ao Mauro com saudades!
À Jaqueline Moreira, Lilany Pacheco, pelo incentivo à escrita.
À Walderez, Nathália, Luiz Carlos, Fernanda, aos Carlinhos, Aninha,
Lucas, Leliane e Fernando, que nos acomodaram em suas casas inúmeras
vezes, cedendo suas camas e nos enchendo de carinho nessa longa jornada.
Aos amigos de perto e de longe, todos sempre próximos.
À família de Belo Horizonte, tios, tias primos e primas que vibram a cada
vitória minha.
À “Vó” Aurélia, mulher apaixonada, da qual fui objeto de uma de suas
paixões, e de quem guardo uma doce lembrança de carinho.
Aos meus pais, que juntos cada um a seu modo, pavimentam o caminho
que me manda cada vez mais para eles, na medida em que caminho no
sentido oposto.
À Geisa, cujos passos eu vou seguindo.
trabalho e por abrir as portas da Penitenciária a um ex-funcionário.
Aos sentenciados e agentes penitenciários da PAOJ.
À polícia civil de Paracatu por permitir a entrevista na cadeia pública da
cidade.
Aos sentenciados da cadeia pública de Paracatu.
Ao Wilson pela disponibilidade e pela abertura de portas.
À turma do Mestrado em Psicologia da UCB – 2003, turma especial, rica
nas suas semelhanças e diferenças e que, por isso, possibilitou o crescimento
deste autor e deste trabalho.
Ao grande Professor Vicente Faleiros, que com sua sabedoria, soube
suportar minhas dificuldades e conduzir-me de modo a não me desestimular e
a quem eu devo a finalização deste trabalho.
Aos membros das bancas de qualificação e de defesa de dissertação
Vieira, Vinícius de Alencar (2006). A relação Agente Penitenciário/Sentenciado: A visão do apenado. Dissertação de Mestrado. Curso de Pós-graduação em Psicologia. Universidade Católica de Brasília.
O presente trabalho teve por objetivo analisar a relação entre o Agente
Penitenciário e o sentenciado, sob a ótica do apenado além de verificar as
estratégias de enfrentamento do sentenciado frente ao aprisionamento. Para
tanto, apoiamo-nos, principalmente nos estudos de Foucault, Girard, Goffman e
May.
Todos estes autores e seus conceitos, durante o trabalho, foram
relacionados ao conceito de sobrepena que seria as penas ou as dificuldades
acessórias impostas ao sentenciado, por sua condição de preso, pelo Agente
Penitenciário.
O trabalho opta pela análise qualitativa, privilegiando observações e
entrevistas como formas de obtenção de dados e de construção de uma
percepção acerca da vida do sentenciado. A coleta de dados ocorreu em uma
penitenciária de estado de Minas Gerais na qual o pesquisador atuou como
psicólogo por dois anos e meio e em uma cadeia pública na cidade de
Paracatu-MG.
O estudo demonstrou, apesar das dificuldades encontradas, por meio da
resistência da Instituição penitenciária em facilitar a coleta de dados, que as
relações intersubjetivas a que estes dois atores estão submetidos estão
vinculadas à questão do poder e interferem na interpretação do contexto e das
relações que nele ocorrem.
O sentenciado tende a perceber a ação do Agente penitenciário sobre si
como uma manifestação de poder total, via o exercício do pequeno poder e
pautado em sistemas de Represália-medo, colonização-submissão e Negação
do Outro-Eu.
Vieira, Vinícius de Alencar (2006). The relation between the Penitentiary Guard/Inmate: the sight of the imprisoned. Master’s Dissertation. Post Graduation Course in Psychology. Catholic University of Brasília.
The aim of this work was analyze the relation between the penitentiary
guard and the inmate, by the sight of the latter and verify the inmate’s coping
skill on facing the imprisonment.. The work was specially supported in the
studies of Foucault, Girard, Goffman and May.
During the work, all these authors and their concepts were related to the
concept of over-sentence, that would be sentences or accessories difficulties
imposed by the penitentiary guard to the inmate, for his inferior situation of
being imprisoned.
The work choose the quantitative analysis, privileging observations and
interviews as forms to obtain information and built the perception about the
inmate life. The information was collected in a penitentiary of Minas Gerais
State, where the researcher has acted as psychologist for two years and six
months, and in a public jail in Paracatu-MG.
Although the difficulties found in collecting information, specially because
of the resistance of the penitentiary institution in provide them, the study
showed that the intersubjective relations that both actors are submitted are
linked to the matter of power and they interfere on the interpretation of the
context and on its relations.
The inmate tends to feel the penitentiary guard’s action over him as a
manifestation of a total power, thought the exercise of the small power and
supported by systems of revenge-fear, of colonization-submission, and of
negation of the Other-I.
SUMÁRIO
DEDICATÓRIA vi
AGRADECIMENTOS vii
RESUMO ix
ABSTRACT x
INTRODUÇÃO 15
CAPÍTULO I
A QUESTÃO DA SOBREPENA NA RELAÇÃO AGENTE
PENITENCIÁRIO/SENTENCIADO 30
1.1 - O AGENTE PENITENCIÁRIO 30
1.2 - O APENADO 1.3 - O PSICÓLOGO
1.3.1 - PERIODIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DE PODER NA PENITENCIÁRIA AGOSTINHO DE OLIVEIRA JÚNIOR
34
37
40
1.4 - A SOBREPENA 46
1.5 - OBJETIVOS 58
1.5.1 - OBJETIVO GERAL 58
1.5.2 - OBJETIVOS ESPECÍFICOS 58
CAPÍTULO II
2.2 - A RELAÇÃO COM O OUTRO E O ANIQUILAMENTO 68
2.3 - A EXECUÇÃO DA VINGANÇA 75
2.4 - A PERDA DA IDENTIDADE NA INSTITUIÇÃO TOTAL 80
2.5 - O MICROPODER E AS SOBREPENAS 2.6 - O ENFRENTAMENTO
91
105
CAPÍTULO III
OS ATORES PENITENCIÁRIOS NA LEI 116
3.1- A DISCIPLINA DOS AGENTES PENITENCIÁRIOS 123
CAPÍTULO IV
MÉTODOLOGIA DA PESQUISA 130
4.1 - INSTRUMENTOS 4.2 - O SETTING
131
132
4.3 - PARTICIPANTES 134
4.4 - COLETA DE DADOS 137
4.5 - DISCUSSÃO DE DADOS 139
CAPÍTULO V
APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS 141
CAPÍTULO VI
PAOJ – Penitenciária Agostinho de Oliveira Júnior SEDS – Secretaria de Estado e Defesa Social
SOP – Superintendência de Organização Penitenciária COC – Centro de Observação Criminológica
INTRODUÇÃO
O ingresso no sistema prisional é cercado de fantasias, seja essa estréia
como profissional, seja como interno, ou como visitante. A vivência deste
pesquisador iniciou-se em maio de 2002 após uma entrevista com o diretor do
presídio e o burocrático trâmite de papéis. A primeira sensação, quando se
percorre os 9 km em estrada de chão que separam a penitenciária da estrada
que liga duas importantes cidades do noroeste mineiro, Unaí e Paracatu, é a
apreensão. Além da expectativa e insegurança naturais de um novo emprego,
a incerteza do que se viverá durante os meses ou anos seguintes, apanham o
novato, permeado pelos preconceitos característicos de um membro da
sociedade, no que se refere ao tipo de pessoas que se encontra dentro de uma
prisão.
Rebeliões, agressões, ofensas, ameaças, vir a se tornar refém, muitas
são as fantasias porque passam os debutantes do universo prisional. Mas
também curiosidade. Como vivem, como são, o que têm de diferente de nós,
viventes extramuros, o que fizeram para ali estarem, enfim, suas histórias.
A imensa estrutura de concreto que se avizinha vai aumentando uma
sensação de insignificância. Os olhares curiosos de uniformizados, uns
profissionais e outros internos, realçam as fantasias. A revista na entrada é
outro procedimento que, a todos, iguala. Presos, Agentes Penitenciários (Aps),
e os demais profissionais da casa passam pela mesma rotina de revista no
Dentro do presídio, porém, os contatos são, inicialmente, amenos. Tanto
dos colegas trabalhadores quanto dos internos. Estes demonstram, apenas,
uma maior curiosidade e, logo ficam sabendo quem é aquele novato e que
função exercerá. Costumam ficar muito felizes se esse for advogado, porém
não se entristecem em saber que se trata de um outro técnico assistente.
Quem ajuda parece ser bem-vindo.
Os dias se seguem sem muitas oscilações, apenas uma gradual
acomodação, na qual ninguém mais se estranha. As expectativas se reduzem
a um nível imperceptível, somente relembrado nos silenciosos instantes que
antecedem as rebeliões. Excetuando-se estes momentos, cuja densa
atmosfera parece, novamente, igualar a todos, os dias se transcorrem em um
ritmo que, em pouco difere, de várias outras profissões atuais.
Percebe-se que as histórias dos sentenciados têm várias similaridades,
que nos confere o direito de extrair da massa aprisionada algumas
características comuns, como as baixas renda1 e escolaridade2 e a jovialidade3.
A relação que estes sentenciados estabelecem com o setor de
psicologia da instituição penitenciária é, quase sempre, ameno. Vez por outra,
quando os profissionais que são responsáveis pela elaboração de laudos
psicológicos que, somados a outros procedimentos possibilitam ao apenado
uma progressão de regime de aprisionamento ou uma liberdade condicional, é
que pode haver uma tensão um pouco maior. Nos demais momentos, ao
menos na experiência deste pesquisador, o trato é amistoso, muitas vezes
cordial.
1
Renda familiar inferior a dois salários mínimos. (Dados retirados da ficha prisional dos sentenciados)
2
A maioria possui, apenas o ensino fundamental. (Dados retirados da ficha prisional dos sentenciados)
3
Mas essa visão não é comungada por todos. Há aqueles que possuem
tal relação com os sentenciados, que as visões recíprocas tendem a ser menos
amistosas.
Inundado pela visão contextualizada das relações que cercam o
sentenciado, o pesquisador interessou-se em debruçar-se sobre uma delas e
mais especificamente, sobre como o apenado a vê. Com o olhar privilegiado,
pela posição que ocupava, e investido da curiosidade sobre a vida do preso
que, desde antes de atuar profissionalmente, o acompanhava, decidiu por
sistematizar este olhar por meio deste trabalho, na convicção da contribuição
do olhar científico para o entendimento das questões humanas, como a que se
segue.
O sistema prisional, pelas paixões que desperta, vem sendo foco de
convergência de muitos olhares (ainda que divergentes) sociais e,
conseqüentemente, científico. Este foco deriva de uma necessidade de
compreensão do fenômeno da violência e dos destinos desta e de seus atores
na sociedade contemporânea.
O agente da violência mais alardeado no mundo de hoje é o indivíduo
que deliberadamente, ao menos aos olhos da sociedade, vai de encontro às
normas sociais e as infringe, impondo à(s) sua(s) vítima(s) além do sofrimento
inerente à ação violenta, o sentimento de impunidade e impotência dentre
outros.
Este indivíduo quando identificado e capturado pela polícia, vai a
julgamento e, quando considerado culpado, passa a estar exposto a uma série
I - privativas de liberdade;
II - restritivas de direitos;
III - de multa.
Entretanto, as penas de privação de liberdade são a forma sobre a qual
se pautam as punições e a repressão criminal brasileira na atualidade. São
largamente aplicadas e costumam ser a pena desejada, pelas vítimas para os
seus agressores.
Uma vez submetido a uma pena de privação de liberdade este indivíduo
é conduzido a um Estabelecimento Penal. É neste estabelecimento que se dá a
execução penal, que tem como objetivo, segundo a Lei de Execução Penal em
seu Artigo I “efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.”. (BRASIL - LEP, 1984)
A criminalidade crescente e de maneira acelerada, traz à tona uma
conseqüente demanda social pelo recrudescimento das condições de reclusão
do indivíduo sentenciado pela acusação de cometimento de um crime. À
medida que ocorrem crimes que a sociedade considera incompreensíveis,
brutais ou desumanos, novas ondas de repúdio e solicitadoras de novas
posturas jurídicas vêem à superfície. Estes clamores sugerem que o aumento
da dificuldade da vida no cárcere traz à sociedade uma maior sensação de
justiça e de vingança.
Este clamor, nos diz Sawaia, fundamenta-se no medo originário da
A violência social tem múltiplas e variadas faces, (...) uma delas é a do medo da violência e a manipulação político-ideológico deste sentimento. (...) Esse vetor captura o sofrimento para convertê-lo em apoio a líderes ou movimentos que catalisam a esperança de paz e de segurança, paradoxalmente, pelo incentivo à violência física ou moral contra os eleitos como inimigos da democracia e do povo. E (...) pela restrição da liberdade.
O medo da violência opera no sentido de incentivar a aceitação e a submissão ao cerceamento, policiamento e a desvalorização da civilidade e da cortesia (...). (Sawaia, 2004, p. 21).
Para Paulo Sérgio Pinheiro, em sua introdução à edição brasileira do
livro A Cultura do Medo (Glassner, 2003), vivemos sob uma cultura do medo.
Ele aponta que o medo é uma ferramenta útil que auxilia no escape ou no
enfrentamento de situações realmente perigosas. Para tanto, este deve estar
baseado em avaliações condizentes com a realidade. Caso contrário, quando o
medo advém de “estimativas irrealistas” ele produz um temor neurótico, fonte
de sofrimento, apenas, além de determinar políticas de enfrentamento
equivocadas. Seria necessário “aprender a identificar os medos exagerados ou falsos, (...) aprender a distinguir entre acontecimentos isolados ou rumores e aqueles legitimamente verdadeiros”. (Glassner, 2003, p. 14).
Para Pinheiro (Ibidem), “quase todos os pavores disseminados (...) surgem da tendência a tratar como causa do perigo não as distorções sociais mais inquietantes, mas as práticas isoladas perpetradas por indivíduos perturbados” (Glassner, 2003, p. 15). Assim, as práticas isoladas, tendem a se transformar em práticas universais dentro da sociedade e as quais estaríamos
Em diálogo com Michael Moore no documentário Tiros em Columbine,
(Moore, 2003) Glassner deixa clara a exploração da mídia no que se refere à
criminalidade:
“É isso. Minha estatística preferida entre as estatísticas que avaliei é a que mostra que o crime decresceu em 20 por cento, mas as notícias sobre o crime aumentaram 600 por cento. O crime cai, o medo do crime aumenta. “ (Glassner em Moore, 2003)
Embora esses dados refiram-se ao universo estadunidense, é claro que
há uma repercussão mundial. A escalada de programas pseudojornalísticos e
as inserções cada vez maiores de reportagens sobre crimes em programas
jornalísticos é uma constante na TV Brasileira. Há hoje, diversos títulos de
programas em diversos canais da TV aberta que se dedicam, exclusivamente à
divulgação de crimes.
Uma das razões que Glassner nos apresenta que nos faz precipitarmos
e avaliarmos mal a situação e, conseqüente nos percebermos sob um estado
de terror perene, é a forma sensacionalista pela qual são difundidas tais
histórias, principalmente por meio da mídia televisiva que abusa das imagens
de impacto e do texto melodramático nos quais, quase sempre “as vítimas são
simpáticas; o criminoso é um bruto sem sentimentos. Os detalhes do crime,
embora chocantes, são fáceis de repetir.” (Glassner, 2003, p. 76-77).
As conseqüências deste olhar míope é que as verdadeiras causas do
crime permanecem obscuras na sociedade e nas medidas estatais incipientes
no que se refere à diminuição da desigualdade social, onde repousa uma boa
estereotipado, que é transmitido pela mídia, conforta a sociedade e desvia-lhe
o foco das políticas públicas e das mazelas sociais.
Glassner, 2003, apoiando-se numa pesquisa de Gerbner, verificou que
pessoas que assistem a muita TV apresentam maior tendência do que outras, de acreditar que o bairro em que vivem é inseguro, a supor que os índices de criminalidade estão aumentando e a superestimar a probabilidade de se tornar vítimas da violência.” Gerbner, citado textualmente por Glessner diz: “Elas podem aceitar e inclusive acolher com grado, medidas repressivas como mais prisões, pena de morte, sentenças mais duras – medidas que nunca reduziram o crime, mas nunca deixaram de dar votos aos políticos – se isso promete aliviar ansiedades. Este é o dilema mais profundo da TV repleta da violência. (Gerbner, citado por Glassner 2003, p. 100)
Almeida e Almeida, 2004, nos apontam para o fato de que um medo
imaginário acaba sendo gerado em conseqüência da exploração que a mídia
faz dos crimes violentos, aumentando assim, as manifestações sociais
“exigindo uma polícia mais eficaz, capaz de deter a onda de violência. O discurso é dirigido ao Estado, do qual se espera o uso da violência “legítima” para combater o crime organizado(...)” (Almeida e Almeida, 2004, p. 108)
E a legislação acompanha esta demanda social. O Estado, por meio do
poder legislativo, ainda que de forma lenta, costuma responder aos apelos
oriundos do povo. Os legisladores, pressionados pela sociedade e sensíveis às
exigências dos lobbies ou, simplesmente, como portadores de interesses articulados, têm realizado alterações nos textos da Lei de Execução Penal
(LEP). Essas alterações se referem, principalmente, ao aumento da pena de
reclusão, à perda de alguns benefícios e à tipificação de crimes mais graves,
socialmente, agora conhecidos como hediondos. Assim, a cultura do medo
Entretanto, como a mudança legal está sempre atrás da evolução dos
crimes e, conseqüentemente, da demanda social por uma ação legal mais
apropriada, pelo menos aos seus olhos, a legislação está sempre defasada. Ou
seja, a sociedade sente-se sempre descoberta e desamparada pela Lei.
É exatamente sobre este déficit, que se situa a permanente
insatisfação social com o destino que se dá aos seus membros desviantes, os
criminosos. Essa insatisfação por sua vez, se transporta, por meio da equipe
dirigente, para o ambiente intramuros, aumentando a tensão e diminuindo a
qualidade de vida do apenado. Assim, o medo social encontra ninho propício
na figura de seus representantes que lidam diretamente com o agente desse
sentimento. A equipe dirigente é, pois, o veículo pelo qual a sociedade tem a
possibilidade de sobrepenar4 o indivíduo apenado. Esta sobrepena é o modo
pelo qual a sociedade pode se ver, finalmente, justiçada, pois a pena, por si só,
não é suficiente para tanto.
A equipe dirigente que, segundo Goffman (2003), é o grupo de
funcionários, tem a função de supervisão do grupo de internados, ou seja, os
presos. No caso das Instituições Penitenciárias mineiras, este grupo dirigente é
composto por:
- Diretores: Geral, Administrativo, de Segurança e de Reeducação;
- Técnicos: Advogados, Assistentes Sociais, Dentistas, Enfermeiros,
Médicos, Psicólogos e técnicos de enfermagem;
- Pessoal administrativo;
- Agentes penitenciários: I, II e III. (AP)
4
As penas aplicadas, aos infratores da Lei, são a parte do código penal
que lhes cabe. A regra social vigente reza que, uma vez infringida uma Lei,
resta ao seu agente uma sanção penal proporcional à falta cometida. Esta
proporcionalidade é suposta pelos legisladores a fim de tornar justa a punição,
pretendendo que esta não seja mais leve que o ato criminoso de modo a
causar um sentimento de injustiça à sociedade e de leveza ou não punição ao
sentenciado, para que este não se sinta impelido ou à vontade para cometer
outro ato indevido. A punição também não deve ser mais branda que a ação
delituosa, sob o risco de provocar um dó social face ao criminoso e o
sentimento de revolta do preso pela pena exacerbada.
Essas percepções sociais e individuais são, via de regra, divergentes
pelo seu caráter subjetivo. Não se encontra um consenso no que se refere à
eficácia da proporcionalidade pretendida na sanção. Como temos construído,
os dois lados tendem a ter visões opostas acerca da mesma pena.
Ignorando-se essas divergências, as Leis se aplicam e recaem sobre os
infratores que, ao cometerem um crime, por mais que acreditassem que não
seriam flagrados ou capturados, sabiam que cometiam um ato ilícito e que, por
isso, estariam sujeitos a sanções previstas na própria Lei que infringiram.
Portanto há um contrato social acordado por intermédio de uma lei que
se propõe a disciplinar as relações interpessoais. Esse é o acordo: todos os
indivíduos têm liberdade para realizar quaisquer atos, desde que, sendo este
ilegais, se submetam às conseqüências legais atribuídas à ação. Conforme a
prática atual, a maior parte das penas atuais dão conta da privação de
impedir que estes repitam o ato indesejado e de possibilitar uma reintegração
adequada deste indivíduo à sociedade.
A tutela do Estado se dá em instituições específicas e em cujas
dependências as relações se estabelecem, respeitando-se hierarquias na qual
o indivíduo aprisionado ocupa o mais baixo posto dessa escala hierárquica.
Percebe-se no cotidiano intramuros, que a relação do sentenciado com
os funcionários da Instituição Penitenciária, principalmente com os Agentes
Penitenciários, como veremos no decorrer desde trabalho, é permeado por
pequenas ou grandes punições que não constam do rol de sanções às quais
estariam expostos os apenados. Com elas, uma série de dificuldades
acessórias são criadas na interface preso/Instituição Penitenciária, esta
representada pela figura do Agente Penitenciário.
Como exemplo dessas dificuldades extras, o pesquisador lembra da
ocasião em que atendera a um sentenciado e este se apresenta ao consultório,
no final do expediente, em prantos:
“- O Senhor não recebeu o meu recado?
- Que recado? – Perguntou o pesquisador.
- Eu pedi para o agente lhe pedir que eu fosse atendido na frente dos
outros, pois hoje é dia de ligação lá no bloco5 e eu precisava ligar para minha
mulher. Ela trabalha depois das duas horas da tarde. Agora só conseguirei falar
com ela na semana que vem, se tiver sorte. Ia pedir a ela que me mandasse
dinheiro e queria lhe avisar que estava aqui, pois fui transferido de Belo
horizonte pra cá e ela ainda não sabe que estou aqui. Nem eu sabia que viria
5
pra cá, nos colocaram em um “bonde” e só desci aí na porta. Fui saber onde
estava quando perguntei pros manos no bloco.”
Ou seja, o apenado que seria atendido pelo psicólogo, solicitou ao
Agente Penitenciário responsável pelo seu traslado cela/consultório, que
pedisse ao profissional a prioridade de atendimento e dando-lhes os motivos
para tal solicitação. O Agente se recusou, arbitrariamente, a fazê-lo. Resolveu,
por conta própria, impor ao sentenciado uma pena adicional, a de não poder se
comunicar com sua esposa.
Tem-se a impressão de que, caso o sentenciado não tivesse explicitado
sua demanda, como as consultas transcorreriam em ordem aleatória, com
sorte ele teria sido colocado entre os primeiros a serem atendidos e com isso
conseguiria sua ligação interurbana. Com a divulgação da demanda foi lhe
retirada a possibilidade da sorte lhe atender a demanda que estaria implícita.
Fatos como esse nos levam a considerar que o estilo de relacionamento
nessa fronteira, sentenciado/agente penitenciário, acabam por criar um
ambiente ainda mais penoso e hostil para os que ali vivem. Essas dificuldades
extras, não previstas na Lei, se configuram em uma pena auxiliar, ou seja, em
uma pena dentro da outra: a sobrepena.
Existem agora duas penas: a descrita na Lei, a reclusão e a sobrepena,
sentida e vivida cotidianamente pelo sentenciado. Uma, a primeira, pública e a
outra privada, pois a sociedade, por ignorância ou negligência, fecha seus
olhos para ela.
Pois é à relação do sentenciado com um dos integrantes da classe
maneira pela qual o sentenciado a percebe. Nenhuma outra função ou pessoa
está mais próxima do sentenciado do que este indivíduo. Nem mesmo os
familiares dos apenados estão tão presentes, fisicamente e em alguns casos
até emocionalmente, em suas vidas. É nessa relação que se personificam as
ordens ou leis. São eles que fazem cumprir as normas. Eles são para o
sentenciado o rosto do Estado e, por conseguinte, da sociedade. A justiça que
segundo Girard (1990) entra para barrar a vingança infindável por dissociar o
vingador do objeto vingado tende a perder este caráter nesta relação onde à
personificação do AP concede ao sentenciado a face outrora interditada pela
justiça. Agora ela já tem em quem se vingar ou a quem culpar pelo seu
sofrimento.
Neste estudo vamos pois, fundamentar a análise desta relação, tomando
em primeiro lugar o referencial teórico e, em seguida, a metodologia da
pesquisa. Aliado a isso, vamos utilizar, no decorrer deste, às observações
colhidas pelo pesquisador enquanto este trabalhava como psicólogo do
sistema penitenciário do estado de Minas Gerais.
O cotidiano carcerário oferece-nos uma imensa gama de exemplos que
esclarecem-nos as relações recíprocas que ali se estabelecem. Embora a
literatura técnica seja pouco esclarecedora sobre este aspecto, a literatura
autobiográfica romanceada de sentenciados que permanecem nas prisões ou
que já se encontram fora delas, nos apresentam as situações pelas quais
passaram e que permaneceram ainda vivas em suas lembranças.
Observadores outros, à parte dessa relação, também nos contam sobre
trabalharam, profissional ou voluntariamente, que não na função de agente
penitenciário e que por isso nos dão dados que esclarecem a compreensão
dessa interface.
Procuraremos aqui, vez por outra, reportarmo-nos a algumas citações de
quatro autores para ilustrar questões expostas numa vertente mais teórica, em
uma tentativa de ilustrar ou evidenciar as construções pretendidas: Mendes,
Jocenir, Varella e Wolfmann. Os dois primeiros são representantes da massa
carcerária.
Mendes um réu confesso de histórico criminoso desde os sete anos de
idade, e que cujas experiências lhe conduziram para a criminalidade
desmedida. Mendes nos relata suas experiências de vida dentro e fora de
estabelecimentos penais. Até a data em que foi publicado seu livro
autobiográfico, Mendes ainda continuava preso, entretanto, relata em seu livro
como a leitura e o contato com voluntários do ambiente intramuros lhe
mudaram a forma de ver o mundo. Ao conhecer um preso que amava filosofia
e ser iniciado nesta, Mendes se vê às voltas com questões internas que lhe
fizeram refletir sobre si mesmo e sobre o mundo no qual ele estava inserido.
Esta abertura para uma nova forma de ver o mundo lhe possibilitou o contato
com novas pessoas que, segundo ele, lhe possibilitavam crescimento pessoal.
Jocenir, ao contrário de Mendes, diz-se inocente, preso em uma
caótica e atrapalhada ação policial. Ficou famoso entre os sentenciados e entre
os apreciadores de RAP (Rhythm and poetry), pela letra de uma composição musicada por Mano Brown, gravada pelo grupo Racionais MC’s: O diário de um
Varella e Wolfmann, são dois representantes do segundo grupo. Varella,
médico, atuou por anos na Casa de Detenção do Carandiru e revela-nos
histórias vividas e ouvidas no período que lá trabalhava.
E, por fim, Wolfmann, um antigo diretor da mesma cada de detenção.
Advogado, atuou na função por quarenta anos em diversas instituições
penitenciárias no estado de São Paulo.
Todos eles citam, de alguma forma, características desse dois atores do
sistema penitenciário e sobre a relação que aqui nos compete. Desse modo,
consideramos serem úteis no auxilio à compreensão deste fenômeno.
Este trabalho será organizado partindo da conceituação da sobrepena a
partir do duo Agente Penitenciário/Sentenciado, observados pela figura do seu
tertius, o psicólogo. No segundo capítulo, privilegiaremos a exposição da
contribuição que os quatro autores, nos quais nos apoiaremos com maior
ênfase, oferecem ao nosso trabalho.
Partiremos de René Girard que nos esclarece que o sistema judiciário
atual é a mais eficaz forma de frear o interminável ciclo da violência já criado
pelo homem. Ainda com este autor, construiremos a idéia de que, na relação
com o outro, principalmente no contexto de clausura, o aniquilamento de si e
do outro é o que tende a ocorrer.
Foucault, nos auxiliará, tanto na questão da compreensão da eleição da
prisão enquanto ponto central do aparelho judiciário, quanto na elucidação da
teoria do micropoder enquanto norteadora das relações interpessoais, inclusive
Por fim, encerrando o segundo capitulo, recorreremos a Rollo May que,
juntamente com Goffman, nos esclarecerão as estratégias de enfrentamento ao
poder e a perda da liberdade disponíveis ao sentenciado.
O capítulo terceiro atenta para o fato de que ambos os atores, Agentes
penitenciários e sentenciados estão circunscritos na mesma lei e que ambos
estão sujeitos a sanções e direitos que lhes tornam semelhantes sob esta
mesma lei.
No quarto capítulo iremos discorrer sobre a metodologia da pesquisa.
Thompson com sua hermenêutica da profundidade, nos auxiliará a lançar luz
sobre os dados colhidos possibilitando-nos uma interpretação destes. A
interpretação dos dados será explicitada e discutidas no capítulo seguinte. Por
fim, apresentaremos nossas considerações finais no capítulo, homônimo, que
encerra este trabalho.
O objeto de estudo desse trabalho é, pois, a percepção de uma relação
entre dois atores num ambiente de confinamento e de poder, por parte de um
CAPÍTULO I
A QUESTÃO DA SOBREPENA NA RELAÇÃO AGENTE
PENITENCIÁRIO/SENTENCIADO
Neste capítulo apresentaremos aquilo que percebemos como o produto
da relação de poder no ambiente de confinamento, a sobrepena, apresentando
os atores em questão, assim como o tertius dessa relação, o psicólogo.
1.1 – O AGENTE PENITENCIÁRIO
Para Foucault (1977) o carrasco de outrora foi, paulatinamente,
substituído por outros atores, acompanhando as transformações porque
passaram as punições. Elas foram migrando o seu foco de atuação do público
para o privado e do corpo para a alma, como veremos mais adiante.
O autor nos sugere que o carrasco, indivíduo que fazia a pena
acontecer, que representava a mão do estado a impingir no ser desviante a
punição que lhe coubesse, foi sendo substituído por uma infinidade de funções
que hoje se encontram nas dependências das instituições penais atuais. Na
Instituição Penitenciária, organização que mais nos interessa neste trabalho, os
carrascos que se apresentam subdividem-se em distintos níveis que, de acordo
com a função que exercem, poderíamos denominá-los: direção,
No primeiro escalão encontram-se os diretores do presídio que se
localizam na interface Estado (e suas diretrizes) e os demais funcionários da
penitenciária.
Entre o setor administrativo, encontram-se funções que possibilitam à
penitenciária superar os entraves práticos cotidianos, no que se refere à
logística operacional de uma corporação. O setor de pessoal, almoxarifado, a
cozinha, o setor de informática, entre outros.
Os técnicos compõem uma gama de profissionais que prestam
assistência, prioritariamente aos sentenciados, porém, em casos atípicos,
esses servem também, aos demais funcionários da casa. São eles: Os
advogados, assistentes sociais, dentistas, enfermeiros e técnicos em
enfermagem, médicos, professores e psicólogos.
Na execução, encontra-se o setor de segurança do presídio, composto
por agentes penitenciários que executam as disposições penais impostas, pelo
Estado, ao sentenciado. Garantir a segurança daqueles que vivem e trabalham
na penitenciária são suas maiores responsabilidades.
Esse último grupo, em sua maioria, é formado por profissionais
contratados a despeito de poucos efetivos (concursados), fato que se
evidencia, também, nos outros cargos da instituição. A contratação não
obedece a critérios específicos de seleção, a não ser a exigência de possuir o
ensino médio completo. Os treinamentos são preferencialmente oferecidos a
funcionários concursados, pois se tem a expectativa de que terão uma carreira
Uma vez contratado, o novo agente penitenciário, na maioria dos casos,
aprende o seu ofício na relação com os mais antigos e na lida direta com o
sentenciado. Os treinamentos são sazonais mas não há capacitações
específicas quando da entrada no novo funcionário. Assim, o aprendizado,
inclusive das mazelas, como os preconceitos recíprocos entre apenado e
Agente Penitenciário se perpetuam.
Os Agentes Penitenciários do estado de Minas Gerais, se diferenciam
dos demais carcereiros do estado, visto que a guarda dos presos provisórios,
aqueles cuja sentença não se encontra transitada em julgada, são assistidos
por policiais civis. Estes o fazem de forma provisória (muito embora, esse
caráter provisório já se estenda a anos, venha se configurando como uma
função já incorporada) e a contragosto, pois não consideram que essa “função
menor”, como confidenciou um policial civil ao pesquisador, lhes caiba.
Por isso mesmo, ao contrário dos demais carcereiros policiais civis, os
agentes penitenciários não possuem poder de polícia, nem trabalham armados.
Toda a segurança do presídio é realizada, apenas, com a imposição das regras
disciplinares existentes; sem a coação de armas de fogo, somente se vê a
posse de cacetetes. Em muitos desses instrumentos, lê-se a inscrição “DH”,
uma sigla em alusão a expressão “Direitos Humanos”. De alguns agentes se
escutam brincadeiras referentes à necessidade periódica de interseção dos
“Direitos Humanos” para o bom andamento da penitenciária.
Para Wolfman (2000), um antigo diretor de instituições penitenciárias do
estado de São Paulo, entre elas o Carandiru, os funcionários de presídio,
polícia. Há, para ele, uma percepção por parte dos agentes penitenciários, de
que sua função é menos nobre que a exercida pos policiais civis e militares.
Por isso, em certas ocasiões, tendem a exacerbar condutas e recrudescerem
por conta própria, a condição de encarceramento do apenado, de modo a obter
respeito deste.
O autor ainda relata que, quando os agentes recebiam treinamento de
defesa pessoal, os golpes aprendidos eram capazes de aleijar ou matar os
oponentes, os apenados.
Salienta ainda que, e isso foi presenciado pelo pesquisador quando da
inauguração da Penitenciária de Carmo do Paranaíba, tão logo se constrói uma
nova penitenciária, elas são inauguradas sem qualquer treinamento para os
funcionários que aprendem o ofício ao fazê-lo. Isso se deve à premência do
estado em desafogar as delegacias de polícia, sempre superlotadas.
Lemgruber, citada por Oliveira(2003), realça que o
Agente penitenciário não parece angariar simpatias do grande público, ou mesmo de muitos daqueles que têm algum contato com o ambiente prisional por ocasião de vistas esporádicas. Não há dúvidas de que alguns guardas incorporam a imagem que em geral deles se faz: sádicos, cruéis, impiedosos, sem um mínimo de serenidade para exercer a função que lhes foi confiada. (Lemgruber, 1983, citada por Oliveira, 2003, p. 178-179)
A função aqui referida é outro mote de divergência e contradição. Há
para Oliveira (2003) uma enorme contradição entre as incompatibilidades
funcionais, entre o exercício de vigiar e punir, concomitantes à tarefa de
reeducar e ressocializar. A autora declara haver uma impossibilidade de um
incompatíveis. E, voltando a citar Lemgruber que se referindo ao Agente
Penitenciário está
submetido a uma hierarquia rígida, condenado a viver encerrado, a cuidar de abrir portas, a suportar o mau humor dos detentos, o guarda se sente um pequeno empregado a quem se exige que assuma responsabilidades pesadas, mantendo a distância dos detentos e do pessoal mais especializado (Lemgruber, 1983, citada por Oliveira, 2003, p. 179-180)
Oliveira ainda sugere que é difícil de se estabelecer um grau intensidade
da relação que existe entre os Agentes Penitenciários e os sentenciados,
porém ela admite que há uma “grande influência” (Oliveira, 2003, p. 181) que
os primeiros exercem sobre os últimos.
1.2 - O APENADO
São muitos os estudos que nos fornecem características acerca do
sentenciado médio do sistema penitenciário brasileiro. Via de regra, eles são
jovens, entre 18 e 30 anos, analfabetos ou com baixíssimo grau de
escolaridade e com renda média mensal, igualmente baixa. Essas informações,
obtidas durante o período em que o pesquisador atuou como psicólogo da
PAOJ, são condizentes com dados anteriores de pesquisas realizadas por
Oliveira (2003) em Santa Catarina e por Palma, Rogério, e Neves (1997) no
Paraná, ainda que o universo e a época da pesquisa sejam muito distintos.
Esses dados nos levam a crer que há um importante fator
sócio-econômico que envolve as prisões. As pessoas que as habitam são aquelas
estavam submetidas e, pela via da criminalidade, tentaram escalar as barreiras
que se impõem entre as classes sociais brasileiras.
Ao contrário dos presos não julgados, os lotados em delegacias e
cadeias públicas municipais, os sentenciados da PAOJ, habitam celas, em sua
maioria, individuais. Mesmo aqueles que dividem a cela com até cinco
companheiros, não o fazem com excesso de lotação. Nestas celas há camas
de alvenaria e não há registros de que nelas, se acomodem um número de
sentenciados superior ao número de leitos. A PAOJ sempre trabalha com um
sub-aproveitamento das vagas pois estas vagas ociosas podem ser utilizadas
provisoriamente para a transferência de presos entre as penitenciárias do
estado.
Por esta característica, a principal novidade que encontram os
sentenciados que ali chegam, vindo das delegacias ou das cadeias municipais
é a menor guerra por espaço, usual nos lugares de origem. Costuma-se ouvir
dos sentenciados que a penitenciária é um lugar bom para aqueles que
desejam cumprir a sua pena e retornar ao convívio social pois minimiza a
possibilidade de atrito entre os presos.
Jocenir nos relata: “Pude perceber uma enorme diferença em relação à cadeia pública, o tratamento era bem melhor, tanto por parte dos presos, quanto por parte dos funcionários.” (Jocenir, 2001, p. 80) E mais adiante: “Para quem havia chegado de uma cadeia onde cada centímetro quadrado podia valer a vida, aquela cela mais parecia um hotel cinco estrelas.”
Outro fator que diminui essa possibilidade de atrito é o fato de que os
exceto sábados, domingos e feriados, nos quais ficam trancados todo o tempo.
Somente nos horários de “tranca aberta” ou “banho de sol” é que podem
receber as assistências penitenciárias previstas por Lei. Em muitas
oportunidades o sentenciado se recusa a ser assistido para não perder o
“banho de sol”.
A rotina é uma das maiores características de uma instituição
penitenciária. Na PAOJ ela se sucede da seguinte maneira. Despertar e café
da manhã às 8:00hs para aqueles que não trabalham e às 6:00hs para os que
trabalham. Almoço entre 11:30hs e 14:00hs. Todos os funcionários se
alimentam com a mesma refeição que é servida aos sentenciados. Café da
tarde de 15:30hs às 16:30hs. Recolhimento às celas daqueles que trabalham e
jantar às 19:00hs.
Se não há uma briga por espaço físico dentro da instituição, os
sentenciados lutam por um espaço subjetivo de poder. Quanto maior for o
prestígio do sentenciado, maior será o seu poder, o respeito que adquirirá dos
outros apenados e, até mesmo de alguns trabalhadores da penitenciária. Esse
prestígio se conquista, segundo Mendes (2001), principalmente, por meio de
feitos criminosos brutais da vida atual e pregressa do indivíduo (exceto
estupros) e sendo leal aos demais internos da penitenciária.
Mentiras, extorsões, delações, amizade com agentes penitenciários,
cobiçar a mulher do próximo, covardia (exceto com estupradores) são
inaceitáveis e costumam ser severamente punidas, até mesmo com a morte do
sentenciado entrevistado para esta pesquisa, “a lei do bandido é mais severa que a Lei normal.”
Assim, o mundo do internado lhe é apresentado como uma drástica
ruptura com sua vida pregressa. Esta ruptura se dá desde sua admissão como
forma de se verificar a potencialidade dos indivíduos de se submeterem ao
papel de sentenciados, pois este é um papel que exigirá deles uma enorme
capacidade de adaptação às novas condições que ali se imporão. Aqueles que
não se mostrarem capazes, desde o início, merecerão um tratamento especial
a fim de que se tornem aptos.
1.3 – O PSICÓLOGO
A função do psicólogo dentro do sistema penitenciário é, da mesma
forma que outras tantas neste contexto, contraditória e dúbia. Ao mesmo tempo
em que a sua presença se deva, exclusivamente, em função da existência do
sentenciado, este só existe em decorrência dos saberes construídos pelos
psicólogos e os demais membros do corpo técnico criminológico. Como nos
apresenta Foucault, os profissionais atuantes no ambiente penitenciário
constroem um corpo teórico acerca dos sentenciados que acabam por definir, e
porque não dizer, criar o perfil e a figura do delinqüente. Este saber tem como
utilidade primordial, possibilitar a previsão e o controle de comportamentos
indesejáveis por parte dos sentenciados, por meio de ações repressivas e
Cabe ao psicólogo, a produção ou a reprodução do saber acerca da
subjetividade do sentenciado, como o seu grau de periculosidade, o
desvelamento aspectos de sua personalidade que auxiliam ou prejudicam a
sua possibilidade de reinserção social. Enfim, um conjunto de características
que dizem de um sujeito/objeto, a sua revelia.
A utilização de técnicas psicológicas como testes e entrevistas
possibilitam a construção deste saber. Os encontros com o sentenciado se
dão, basicamente, por três motivos: Determinação judicial, solicitação do
sentenciado, ou da instituição penitenciária.
Estes saberes, servindo-se ou sendo utilizados por uma ideologia,
expõem para a sociedade um ser com o qual se deva ter uma atenção
específica por se tratar de um membro da sociedade que, pelo menos em tese,
optou por uma atuação desviante do desejado por esta mesma sociedade.
Assim, os saberes produzidos justificam e orientam as ações que se dirigem a
esta nova classe agora caracterizada e denominada: o delinqüente.
Por outro lado, esse mesmo psicólogo põe-se a disposição desde seu
objeto de estudo como um profissional que se dispõe a auxiliá-lo em questões
íntimas no que se refere a solução ou ao abrandamento do sofrimento psíquico
a que estão sujeitos os indivíduos na condição de encarcerados. Neste
contexto o sentenciado é cliente, ou paciente.
Assim, ao mesmo tempo em que o indivíduo se abre na tentativa se
solucionar ou amenizar seu sofrimento emocional ele subsidia o psicólogo na
sua coleta de dados e sua busca de construção de saber sobre este
Neste prisma, sua função liberta e condena, auxilia e prejudica o
sentenciado, a partir da possibilidade que essa abre ao sentenciado de se
haver com suas questões, ao mesmo tempo em que cria um conceito sobre
este, um estigma que o perseguirá e aos seus iguais, por toda a vida.
Essa relação próxima, tanto do grupo de apenados, como também de
um outro grupo de profissionais da Equipe dirigente que Goffman nos
apresenta, os Agentes Penitenciários, possibilita a percepção dos estilos de
relação que se estabelecem nesta interface, a partir de um local privilegiado. É
fato, porém, que a função de psicólogo, nunca será percebida pelo
sentenciado, de modo totalmente dissociada ou desvinculada da equipe
dirigente.
O sentenciado tem a consciência de que o psicólogo constrói um saber
acerca de si. Sabe que este saber interfere, positiva ou negativamente, na
possibilidade de progressão de regime ou obtenção de benefícios. O que ele
desconhece é que este saber individualizado, é também um saber maior,
comungado entre todos os sentenciados, o que inexoravelmente, como já
mencionado, irá estigmatizá-lo.
O psicólogo é utilizado pelo sentenciado. Na ilusão, ou na concretização
da manipulação, o sentenciado vê a possibilidade da construção de um saber
apropriado de si, da mesma forma em que é utilizado pelo psicólogo que, ainda
que sem se dar conta, contribui para o endurecimento das condições de
encarceramento dos sentenciados.
Talvez por isso, na sua atuação profissional, este psicólogo/pesquisador
porém, com significativas reservas. Alguns, poucos, sentenciados
transparecem uma sinceridade e uma abertura sem meias palavras. Outros,
porém, se abrem com restrições e outros, por fim, nunca se mostram. Estes
parecem dizer somente aquilo que, crêem, o psicólogo gostaria de ouvir.
É justo inferir que estas diferentes aproximações reflitam as
inconstâncias e incoerências do trabalho do psicólogo dentro do sistema
penitenciário além das múltiplas visões a que este está submetido nesse
contexto.
As percepções que o sentenciado possui acerca do psicólogo nortearão
a sua forma de interação com o mesmo. Assim, seu nível de abertura frente ao
profissional parece-nos indicador dessa visão. Quanto maior a abertura e a
segurança que o sentenciado sente diante do psicólogo, menor tenderá a ser a
compreensão, por parte do sentenciado, da função ambígua que o psicólogo
executa no ambiente penitenciário.
1.3.1 – PERIODIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DE PODER NA
PENITENCIÁRIA AGOSTINHO DE OLIVEIRA JÚNIOR
A relação entre agentes penitenciários e sentenciados tem como pano
de fundo as diretrizes dos altos escalões internos e externos à penitenciária.
Os estilos de direção interferem na concepção recíproca que fazem estes
atores do sistema penitenciário. Embora não sejam determinantes na
cada grupo se vê e ao outro. Essas visões se manifestam na interação entre
ambos.
Desta forma, preferimos relatar a incursão do pesquisador pelo
estabelecimento penitenciário tendo como pano de fundo as três direções que
passaram pela PAOJ e que tipo de interferência tiveram na mudança ou na
perpetuação de estilos de comportamento e relação entre os apenados e os
Agentes Penitenciários.
Acreditamos, assim, propiciar uma possibilidade de vislumbre da
influência que o estilo de gerência exerce nas relações que se estabelecem
sob suas orientações e regras particulares a cada administração.
1ª fase – Gerson – Desde antes da chegada do pesquisador (abril de
2002) até março de 2003. – A chegada à penitenciária com recepção muito
amistosa por parte da direção e dos colegas.
Por parte dos presos há uma curiosidade muito grande acerca do novo
profissional que entra no presídio. No primeiro dia, presos que estavam
alojados no COC já me chamaram pelo nome, embora não soubessem de
minha profissão. Quando questionado, informei que era mais um psicólogo da
casa (o terceiro até então). A informação mereceu uma desanimada e
agradecida resposta: “Ah, tá, obrigado!” seguido de um grito para que todos ali
escutassem: “Né não, é psicólogo!” Mais tarde descobri que os advogados são
mais esperados que os demais profissionais, pois, mais que nenhum outro
Por outro lado, nota-se que a relação com os advogados tende à
deterioração ou ao desgaste visto que as demandas dos sentenciados, quase
nunca são supridas a contento. Já com assistentes sociais e psicólogos a
relação tende a se solidificar, pois as demandas de obtenção de benefícios
como visitas íntimas (intermediados pelos assistentes sociais) e de escuta
(realizadas pelos psicólogos), são em geral supridas de modo satisfatório, tudo
isso na perspectiva do encarcerado.
Havia, neste primeiro momento, uma rotina de maior liberdade interna
para os presos dentro de seus blocos. Este fato gerava um atrito grande entre
os agentes penitenciários e a direção da penitenciária pois os agentes se
sentiam em uma posição de inferioridade frente aos sentenciados.
Há relatos de insatisfação dos agentes penitenciários que se diziam
obrigados a carregar carnes, carvão e bebidas para a realização de churrasco
intramuros por parte dos presos. “A gente buscava as coisas, caixas e mais
caixas de cerveja, peças inteiras de carne, coisas que nem a gente come em
casa e ainda tinha que ouvir gozação e ordem de bandido... isso é muita
humilhação!”
Os sentenciados tinham a liberdade de ficarem soltos dentro de seus
respectivos blocos, pois as celas ou não tinham portas ou estas ficavam
permanentemente abertas. Essa liberdade, segundo alguns agentes,
possibilitava a troca de informações entre os presos e a conseqüente
orquestração de rebeliões, muito freqüentes nesta época.
Os mesmos agentes penitenciários relatam que eram comuns os dias
fogo, escondidas, mas sem terem a autorização da direção de procurar, junto
aos objetos dos sentenciados estas armas. Só se podia apreender aquelas
armas ou objetos ilícitos que estivessem à mostra ou passíveis de serem
descobertos em uma busca superficial.
Tais dificuldades sentidas pelos agentes penitenciários trouxeram para o
ambiente penitenciário uma tensão acessória, pois se via, claramente, a
existência de uma ruptura na equipe dirigente, entre direção e agentes
penitenciários.
Sob o olhar dos agentes penitenciários, nesta época, todos ganhavam e
perdiam com a situação, a exceção deles próprios que só perdiam. A direção
ganhava o apoio dos sentenciados na manutenção de seus cargos, pois estes
são quem derrubam ou mantém as direções, pois acabam tendo um enorme
poder de barganha, principalmente na ocorrência de rebeliões. Por outro lado a
direção perdia a confiança e a cumplicidade dos agentes penitenciários, pois
estes se viam pouco valorizados e até colocados em risco pela direção ao
serem proibidos de realizarem revistas meticulosas.
Os agentes penitenciários ”perdiam o respeito” dos sentenciados e se
viam em uma situação de risco pois havia o receio de que uma séria rebelião
pudesse ocorrer a qualquer momento. E os presos ganhavam autonomia e
privilégios inconsistentes com sua vida pregressa, em detrimento da perda de
liberdade a que estavam sujeitos eles próprios, os agentes penitenciários.
Os sentenciados chegaram a ter, para o desgosto de muitos, TV a cabo
além das periódicas festas intramuros. Todas as regalias (na visão dos agentes
tudo que consumiam, com dinheiro ou por meio de negociações com uma das
três refeições diárias, por exemplo, normalmente o jantar. Como cada
sentenciado poderia receber de sua família mantimentos e como possuíam
fogões e panelas dentro de suas celas, esta refeição não fazia falta para
aqueles que comandavam as negociações.
2ª fase – Cel. Oliveira – De março de 2003 a agosto de 2003 –
Esta foi uma administração de transição. Após uma rebelião grande,
com três agentes penitenciários mantidos como reféns, houve uma série de
denúncias contra a direção e esta foi afastada e o Cel. Oliveira, foi designado
provisoriamente como diretor, visto que ele assumiria outra penitenciária que
ainda estava em construção.
“O que trouxe estes indivíduos para o sistema penal foi a falta de
disciplina. Assim, isto é o mínimo que precisamos dar-lhes ou exigir-lhes aqui!”
Com esta frase, o Cel. Oliveira inaugurou uma nova fase de relacionamento
entre os agentes penitenciários e os sentenciados. Todas as regalias foram
cortadas e os vigilantes tiveram maior autonomia para executar buscas como
entendiam ser necessário e assim passaram a fazê-lo. As buscas eram
minuciosas não só nos sentenciados como também em seus familiares e
amigos no dia de visitas.
Porém, embora o objetivo de tranqüilizar a penitenciária tenha sido
atingido em parte, pois as rebeliões inexistiram neste período, por outro lado, a
redução ou o fim dos benefícios outrora gozados, trouxe um clima de tensão no
Neste período o ambiente de trabalho foi mais tenso para todas as
funções, possivelmente maior para aqueles que lidavam diretamente com os
sentenciados e que receavam mais fortemente a deflagração de uma rebelião.
Os sentenciados tendiam a perceber os agentes penitenciários como os
culpados pela diminuição da liberdade intramuros à qual já estavam
acostumados os sentenciados, ainda que a decisão tenha sido tomada nos
mais altos escalões do presídio.
Segundo Goffman, os internados sentem-se mais seguros “ainda que de
maneira ilusória, que, embora a maioria da equipe dirigente seja má, o homem
de posto mais elevado é realmente bom – ainda que possa ser enganado pelos
seus inferiores.” (Goffman, 2003, p. 100)
3ª fase – Danunzzio – De agosto de 2003 até os dias atuais.
Esta é a última fase vivenciada por mim na Penitenciária Agostinho de
Oliveira Júnior. Nesta, o estilo de relação entre equipe dirigente e
sentenciados, inaugurado pela direção transitória, foi intensificado. Os presos
passaram a ficar vinte e duas horas diárias trancados dentro de suas celas e,
nas duas horas restantes, dividiam-nas entre os atendimentos oferecidos ao
sentenciado, com o banho de sol e a socialização com os demais
sentenciados. Estas duas horas diárias se restringem aos dias úteis,
totalizando, assim, dez horas “de sol” semanais.
Os agentes penitenciários, quando perguntados, relatam uma intensa
mudança no ambiente de trabalho quando comparado ao ambiente existente
durante a direção da 1ª fase. O respeito próprio teria retornado juntamente com
Era evidente a mudança, inclusive na auto-estima de ambos. Os
sentenciados agiam como se tivessem perdido uma batalha, já que a
diminuição de regalias é, sem dúvida, independentemente de onde se encontra
o indivíduo, um duro golpe em sua vida. Quando este indivíduo encontra-se
enclausurado, este golpe tende a se potencializar já que, o que se tinha, já era
percebido como muito escasso.
Por outro lado, os relatos dos Agentes Penitenciários davam conta de
que o trabalho estava mais fácil e que não mais percebiam chacotas dos
sentenciados diante de suas novas funções. Agora os Agentes Penitenciários
tinham autonomia para revistar quaisquer celas, da forma como melhor lhe
conviesse. Não eram raras as reclamações dos sentenciados da forma dura
em que se davam estas revistas, como que uma revanche pelo tempo em que
estas não podiam ser feitas a contento pelo grupo de agentes penitenciários.
Era como se a situação tivesse sido invertida se comparada à primeira
administração aqui citada. Agora eram os agentes que se impunham e os
sentenciados que se intimidavam frente a relação recíproca entre ambos.
1.4 – A SOBREPENA
A sobrepena no contexto de clausura é aqui percebida, como a questão
que norteia o trabalho. Ela será exposta como é percebida pela observação de
Durante mais de dois anos este pesquisador atuou como psicólogo em
um Estabelecimento Penal, a Penitenciária Agostinho de Oliveira Júnior
(PAOJ), situada no município mineiro de Unaí, a 600 quilômetros de Belo
Horizonte.
Percebe-se, acompanhando a sua rotina interna, que há intervenções
partindo de todos os níveis do Estado visando à melhoria da qualidade de vida
do apenado durante sua permanência no estabelecimento penal. O Estado de
Minas Gerais, por meio da Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS) e
sua Superintendência de Organização Penitenciária (SOP), elabora novos
programas e Portarias, o Juiz da Comarca de Unaí, por sua vez, baixa portarias
que estabelecem novas diretrizes para o trabalho interno e externo dos
sentenciados, visando incentivá-los ao bom comportamento e propiciá-los uma
melhor condição de vida dentro do estabelecimento penal; a direção da
penitenciária busca o cumprimento dessas diversas determinações superiores,
repassando-as aos funcionários e exigindo o cumprimento das ações que lhes
competem.
Apesar dessa presença do Estado, suas intenções e ações surtem um
efeito muito inferior e, na maioria das vezes, irrelevante, em comparação aos
objetivos idealizados quando da formulação dos novos projetos ou diretrizes. O
sentenciados estão sempre a reclamar das condições, segundo eles,
insalubres de aprisionamento.
Ora, se a presença do “Macro Estado”, ou seja, suas instituições,
organizações, os altos escalões, legisladores ou técnicos cujas atuações se
criação dessas diretrizes, em detrimento da ação prática no contato direto com
o usuário do sistema prisional, não surte o efeito desejado quanto à melhoria
das condições de vida dos apenados em seu poder, propõe-se atenção para o
Micropoder nos moldes propostos por Foucault, a saber, as relações entre os
representantes do Estado que lidam diretamente com os sentenciados, são
eles, os diretores de penitenciária, os técnicos e os agentes penitenciários, ou
seja, o Grupo Dirigente, citado por Goffman (2003). Visto que este estilo de
exercício de poder se manifesta de modo mais intenso e contínuo na vida do
sentenciado.
Se as diretrizes, constantemente renovadas em busca de uma melhor
adequação, não têm surtido o efeito desejado, apesar de serem pensadas a
partir de estudos e lógicas coerentes que vão, muitas vezes, ao encontro das
mais modernas concepções e visões acerca do sentenciado, podemos deduzir
que o entrave prático para a obtenção da melhoria da qualidade de vida dentro
do cárcere se dá na relação direta entre o apenado e o Grupo Dirigente. Pois é
na relação entre estes representantes do Estado e os sentenciados que se dá
a interface preso/Estado. Eles são, para o sentenciado o próprio Estado. As
falhas e acertos ocorridos nessa interação nortearão as visões recíprocas entre
estes atores.
Entre os muitos atores desse sistema, um se encarrega diariamente da
fiscalização, do cuidado, da vigília do sentenciado, o agente penitenciário.
Estes agentes, enquanto grupo, são os que efetivamente, mantêm maior
contato com os presos. Ainda que as relações com os demais membros do
à proximidade física e emocional que permeia a relação agente
penitenciário/sentenciado. É essa figura que faz a sanção acontecer no
dia-a-dia. São estes indivíduos, travestidos na figura amorfa de uma função, ou ao
contrário, é essa função revelada por rostos antes incógnitos e indiferenciados
que se faz receptora e receptiva às hostilidades até então contidas pela última
palavra da vingança outrora sem face. Enfim, estabelece-se entre os apenados
e os agentes penitenciários uma relação perene e sem par no que se refere à
proximidade entre ambos.
O grupo de Aps lida de forma diária com os sentenciados. Eles são
responsáveis pelos traslados e pelas revistas dos presos. São os primeiros a
ouvirem suas demandas e a devolver uma resposta sobre elas. É por meio
deles que o apenado tem a capacidade ou a impossibilidade de conseguir
satisfazer suas faltas, carências, desejos, obter privilégios. Mas é também por
eles que se é castigado, delatado (justa ou injustamente) e aviltado. Eles se
encarregam diariamente, enfim, da fiscalização, do cuidado e da vigília do
sentenciado.
Neste estudo, não se objetiva culpar ou inocentar este ou aquele ator
do sistema carcerário. Esta escolha se pauta apenas na já citada intensidade
do encontro entre essas duas partes, que estão também em relação articulados
aos outros atores, a saber, os técnicos, os diretores da penitenciária e os
demais funcionários administrativos. Ainda que nessas relações, espera-se,
envolvam confiança recíproca e, principalmente com os técnicos, uma
capacidade de abertura e confiança, estas relações são mais distantes e
ou com outro técnico, deposite nesse encontro suas carências, angústias,
demandas e esperanças, trata-se de um encontro esporádico, não voltando a
acontecer num espaço de tempo inferior a quatro semanas, normalmente.
A lida com os agentes penitenciários, ainda que não seja tão profunda,
se dá de forma mais estável, cerca de doze horas a cada três dias. Os agentes
[enitenciários trabalham em turnos de doze horas a cada três dias, ou seja, dez
dias por mês, totalizando uma média diária de quatro horas por dia.
Não raras vezes, os agentes penitenciários nos confidenciam6: “o M. (um dos sentenciados) não deve lhe falar toda a verdade, diz? Quando ele chega lá no Bloco (local onde ficam as celas) ele diz que quando voltar vai fazer isso, fazer aquilo, vai matar quem o entregou e roubar um banco.”
A julgar por falas como estas, os sentenciados têm muito mais abertura
para falar o que sentem ou pensam para os Aps do que aos técnicos, ou
pretendem, como estratégia, amedrontá-los, mantendo neles o mesmo nível de
tensão aos quais estão, eles próprios, submetidos.
As revistas periódicas colocam semanalmente, ao menos, estes dois
atores frente a frente. Nestas, o sentenciado disponibiliza sua cela para que
sejam feitas as buscas preventivas ou denunciadas. Relatos colhidos
preliminarmente dão conta de que os APs não dispensam tratos amistosos:
“Se o irmão tá lá com a roupa lavada e dobrada, o Agente vai e joga tudo pro alto pisa em cima, põe uma luva na mão e enfia na privada procurando arma ou bagulho. Depois volta e, sem tirar a luva pega nos nossos biscoitos, e nas roupas espalhadas pelo chão”.7
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Relato obtido durante o exercício profissional como psicólogo.
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