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Tradução em trânsito língua, cultura e viagem

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA GERAL E ROMÂNICA

Tradução em Trânsito – Língua, Cultura e Viagem

ANEXO I

Teresa Miguéns Cardoso

MESTRADO EM TRADUÇÃO

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA GERAL E ROMÂNICA

Tradução em Trânsito – Língua, Cultura e Viagem

ANEXO I

Teresa Miguéns Cardoso

Relatório de projecto orientado

pela Prof.ª Doutora Maria Teresa Casal

MESTRADO EM TRADUÇÃO

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c

ANEXO I

«Falar em Línguas»

pg. 1

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Falar em Línguas

– Ouve-me – disse-lhe eu, numa voz arranhada. – Quero levar-te a casa, mas Dublin fica a cento e sessenta quilómetros.

Lee olhou as suas mãos quadradas. Nem queria acreditar que ela só tinha vindo ao mundo há dezassete anos.

– Onde é que passas a noite? – perguntei. – Numa pousada de juventude.

Entre dentes, roguei pragas à alcatifa manchada de cerveja.

– Não reservei nenhum quarto em Galway e agora já não devo ir a tempo. Estava a pensar voltar de carro hoje à noite. Amanhã às nove tenho de estar no escritório.

Nesse preciso momento, os últimos conferencistas passaram por nós e um ou dois acenaram-me com a cabeça. O suor do ceíli1 secava-lhes nas faces.

Quando me voltei, Lee esboçava o sorriso de orelha a orelha de quem ganhara o dia.

– E que tal as traseiras da tua carrinha, Sylvia? Confortáveis?

Olhei-a fixamente. Não era a primeira vez que mo perguntavam, mas julgara que a última vez fora mesmo a última. «Tem precisamente metade da tua idade», disse de mim para mim. Aos olhos da lei, nem sequer era adulta.

– Até bastante confortáveis, para traseiras de uma carrinha.

Foi um poema que me fez entrar naquela carrinha.

A primeira vez que ouvi a Sylvia Dwyer falar foi num CD de poesia contemporânea em irlandês que requisitei da biblioteca. Esperava que me ajudasse nos exames finais de 12º ano2para eu conseguir sair do colégio de freiras. A Deirdre tinha-me trocado por um rapaz, por isso andava muito aplicada.

O poema número cinco chamava-se «Dhá Theanga». A voz da mulher que o lia tinha fumo e turfa, bacon e chá forte. Eu não fazia a mínima ideia do que o poema

1 Palavra irlandesa, com origem no irlandês antigo céle (companheiro). Evento onde se canta e dança música tradicional gaélica. (NT)

2 No original, leaving cert, abreviatura de «leaving certificate». Exame final do ensino secundário na Irlanda. (NT)

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dizia: para procurar as palavras no dicionário, primeiro tinha de saber como se escreviam e as consoantes mudas soavam-me todas ao mesmo. Ainda assim, ouvi-o noite após noite antes de devolver o CD à biblioteca.

Perguntei à minha mãe porque é que o nome dela não me era estranho e ela disse-me que a Sylvia devia ser a última dos Dwyer que há trinta anos tinham tomado conta dos talhos de Shanbally. Nem queria acreditar que ela era cá do sítio! Se calhar até me tinha sentado ao lado dela na missa.

Mas foi em Cork que a conheci. Entrei para a Queer Soc3 logo na primeira

semana, enquanto ainda tinha lata, e a meio do primeiro semestre já organizava tertúlias regadas a vinho e chocolate. A Sylvia Dwyer, que tinha vindo de Dublin passar o fim-de-semana, foi apresentada a todos por uma ex-namorada, professora no departamento de francês. Fiquei aparvalhada quando descobri que a poeta era uma de nós. Uma «colleen»4, como dizia uma amiga minha. Tinha um cabelo macio, cortado à

tigela, e um fato cinzento metálico que impunham um respeito do caraças. Não me ocorreu nada para dizer. Servi-lhe vinho de pacote e pousei-lhe a taça de amendoins de chocolate junto ao cotovelo.

Mais tarde, houve uma vez em que fui passar o fim-de-semana a Shanbally e sorri-lhe, na missa. Respondeu com um aceno de cabeça muito ligeiro. Se calhar não se lembrava de onde é que me conhecia. Se calhar estava a rezar. Se calhar era uma cabra.

Claro que tinha ouvido falar de Lee Maloney em Shanbally. Toda a cidade tinha ouvido falar daquela rapariga, no ano em que apareceu na missa com o cabelo rapado à Sinéad O’Connor. Ouvi, por acaso, uma conversa eufemística sobre ela enquanto esperava na fila para os correios, mas abstive-me de comentários. A minha reputação em Shanbally era uma tábua rasa e nos meus poemas o género dos sujeitos nunca estava identificado.

Quando ma apresentaram em Cork, foi tudo menos educada, mas a curva do seu queixo pedia o encaixe da minha mão e o cabelo não devia ver a escova há uma semana.

3 Associação de estudantes LGBT. (NT)

4 Do irlandês «cailín», diminutivo de «caile»: rapariga do campo. Expressão por vezes usada para nos referirmos a uma rapariga que não é tão inocente como aparenta. (NT)

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Numa das raras vezes em que fui passar o fim-de-semana a casa, quem é que eu havia de ver a vir da comunhão? Era Lee Maloney, toda sorrisos e acenos. Não precisei de me voltar para sentir a minha mãe petrificada. Já no parque de estacionamento, perguntou-me de onde é que eu conhecia aquela rapariga.

Ponderei negá-lo, asseverar que se tratava de uma troca de identidades. Acabei por dizer:

– Acho que apareceu num dos meus recitais. – Muito consome a mãe! – disse a minha.

Acho que foi depois de ver o nome da Sylvia Dwyer num panfleto, por baixo do título «DHÁ THEANGA/DUAS LÍNGUAS: UM COLÓQUIO SOBRE O BILINGUISMO NA IRLANDA DE HOJE» que o meu subconsciente desenvolveu uma imensa nostalgia pela língua que tantas chicotadas valeu aos meus antepassados. Decidi baldar-me à minha aula de sábado e apanhar o autocarro para Galway. Mas só quando a vi entrar naquele anfiteatro, com o longo casaco de cabedal castanho e a franja preta que tinha agora ganho uma mecha branca é que percebi porque é que tinha passado quatro horas sentada num banco de autocarro.

Há dias em que tenho mais lata do que noutros. Nesse dia, flirtei com a Sylvia o tempo todo, em todos os intervalos entre comunicações, fóruns e sessões plenárias que pouco ou nada me diziam quer fossem em irlandês ou em inglês. Fiz-lhe perguntas e ia acenando com a cabeça antes mesmo de ouvir as respostas. Falei-lhe na Deirdre, só para ela não pensar que eu era virgem.

– Trocou-me por um rapaz sem lóbulos nas orelhas – disse-lhe, como quem não

liga nenhuma.

– Sei o que isso é – respondeu-me.

Mas na maior parte do tempo mantive-me de boca fechada e cabeça baixa, com um brilho nos olhos. Calculei que estivesse a ser tão óbvia que metia dó, mas num colóquio de um só dia não havia tempo para subtilezas.

A Sylvia pediu-me que lhe adivinhasse a idade, e eu respondi «Trinta?», apesar de ter lido no programa que tinha trinta e quatro. Disse-me que, se por milagre, até aos quarenta conseguisse poupar dinheiro suficiente, ia fazer uma plástica aos papos dos olhos.

Fiz de menina atrevida, de fufa recém-assumida e até de mulher forte, de poucas palavras, que já bebeu demasiado vinho. A noite já ia longa e não pensei que fosse

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chegar a lado nenhum. Como é que uma mulher como a Sylvia Dwyer se havia de interessar por uma página em branco como eu?

À primeira vista, não reconheci Lee Maloney naquele auditório em Galway, tão descontextualizada estava entre jornalistas barbudos e professoras de saia de lã. Acabei por reencontrar o seu rosto na minha memória. Olhava-me como se visse o nascer do sol e, subitamente, fixou os próprios pés, o que a denunciou ainda mais. Endireitei-me e passei a minha pasta para a outra mão.

O colóquio, que deveria servir para que eu expandisse os meus conhecimentos e lambesse as botas a pequenas editoras irlandesas, adquiriu uma dinâmica própria: nada que eu tivesse planeado, nada que pudesse impedir. Observei os contornos do queixo de Lee durante uma palestra chamada «Empréstimos Escoceses nas Comunidades Pesqueiras de Donegal». Era linda de morrer.

O que mais me incomodava era não conseguir distinguir quem avançava sobre quem; uma batalha de fintas e retiradas. Por exemplo, quando beberricávamos café, murmurei qualquer coisa vagamente sugestiva sobre líquidos quentes, mas entrei em pânico e mudei de assunto. Enquanto regressávamos à sala levadas pela enchente de pessoas, por instantes pareceu-me sentir a mão de Lee a guiar o meu cotovelo, mas ela estava a olhar para a frente tão absorta que concluí que tinha sido outra pessoa.

Ao jantar, um evento barulhento na cantina, Lee sentou-se à minha frente na mesa e queimou a língua no crumble de maçã. Servi-lhe um copo de água e não a deixei falar com mais ninguém. Éramos agora uma ilha de inglês num mar de irlandês.

A conversa acabou por desembocar, como é habitual, nas relações amorosas. Nenhuma de nós via qualquer sentido em ter sexo casual: não só era pouco provável ser bom, mas também lixava amizades e despedaçava corações. Dormir com alguém que mal se conhece – ouvi-me dizer, numa voz de mulher muito vivida – é como cantar uma canção sem saber a letra. Disse-lhe que teria a mesma opinião quando chegasse à minha idade e ela respondeu que ah, mas já tinha.

Os meus olhos repousavam no crumble de maçã que desaparecia, a cada colherada, entre os lábios distraídos de Lee. Ouvia o chorrilho de opiniões que me saía da boca e perguntava-me quem é que eu queria enganar.

Quando finalmente chegou a altura do recital de poesia, que devia levar a plateia a um clímax lírico, estava demasiado cansada para perder tempo. Mergulhei a mão na pasta e procurei a única forma que conheço de dar voz aos meus sentidos.

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Em Cork, diziam as más-línguas que a Sylvia Dwyer estava longe de sair do armário, o que, apesar de me parecer ridículo, não era para admirar. Mas adiante.

No final do recital, depois de ter feito umas leituras sobre a natureza, outras sobre política e outras que não consegui acompanhar, remexeu o interior do dossiê.

– Este é o poema que dá nome ao colóquio, – começou – mas não foi por isso

que o escolhi.

Primeiro, leu todo o poema em irlandês. Deixei as vogais que eu tão bem conhecia acariciarem-me os ouvidos. A voz era ainda melhor ao vivo do que no CD da biblioteca. Virou-se, então, ligeiramente, na cadeira e, depois de murmurar «Espero que a tradução sirva», leu-o só para mim.

a tua língua e a minha

têm muito para dizer uma à outra imenso é o que há entre elas

imensos os prazeres que a minha descobre na tua, a tua na minha

às vezes os nervos afloram-nos à pele entranhamo-nos na pele uma da outra mas o melhor é quando

a tua boca deixa a minha língua entrar só então te conheço

quando oiço a minha língua abrir-se na flor do teu beijo; a tua língua dura, estrangeira falar-me por entre os lábios

Foi aquele poema que me fez decidir fazer aquilo que os meus amigos me ouviram dizer até à exaustão que não voltaria a fazer.

Observava a rapariga, enquanto lia «Dhá Theanga» só para ela, tentando alcançá-la por cima das cabeças soturnas da multidão de conferencistas. Não olhava para ninguém a não ser Lee Maloney; não prestava atenção a qualquer poeta invejoso,

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gaelgóir5 purista ou zunzum trocista, não fosse a minha lata ser sol de pouca dura. Após

ter baixado o olhar a seguir ao primeiro verso, Lee voltou a fitar-me. Apoiava a bochecha na palma da mão; uma mão macia, com as pontas dos dedos redondas. Sabia o poema de cor, mas esta noite tive de olhar para o papel verso sim, verso não.

Foi então que ela desviou o olhar para a noite que caía do outro lado da janela e eu fiquei sem saber se estava a chegar a algum lado. Como é que Lee Maloney, dezassete anos feitos em Maio, se havia de interessar por um caderno rabiscado como eu?

Lá estava eu, envolta no fumo da sala, a minha cara meia escondida por trás da mão, arrepios de euforia e vergonha percorrendo-me as vértebras. Dizia de mim para mim que a Sylvia devia ter escrito aquele poema há anos, para outra mulher, de uma outra cidade. Já para não falar na quantidade de mulheres a quem ela já o devia ter lido. Devia ser manha antiga.

Mas nada disto explicava porque é que a Sylvia mo estava a ler a mim, esta noite, em Galway, diante desta gente toda, a lixar-se para quem estava a ver ou o que podiam pensar se lhe seguissem o ângulo dos olhos. Enterrei o maxilar na palma da mão – o meu porto seguro – e os meus olhos voltaram a fixar os da Sylvia. Convenci-me de que, a cada leitura, todos os poemas se renovam.

Se viesse mesmo a acontecer, pensei, enquanto arrumava os papéis na pasta sob a breve chuva de aplausos, era porque não estávamos nem em Dublin, rodeadas pelos meus amigos e carreira, nem em Cork, sobrecarregadas com as coisas de Lee. Acima de tudo, não estávamos em Shanbally, a vila que a viu nascer no mesmo ano em que me viu partir para a universidade. Nenhuma de nós sabia nada de nada sobre Galway.

Se viesse mesmo a acontecer, pensei, horas mais tarde, enquanto a equipa de limpeza nos expulsava da sala, era por causa de algum momento que nos tinha feito pisar uma linha invisível. Mas que momento era esse? Pode ter sido quando estávamos sentadas no chão, a tremer, à espera da banda céilí que vinha encerrar o colóquio, quando a Sylvia aconchegou os ombros no casaco de cabedal e me aninhou por baixo

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dele por um momento, a pele de carneiro do forro acariciando-me a face, o peso do cotovelo dela no meu ombro. Ou então, mais tarde, enquanto eu dançava feita doida, já de colete, e ela percorreu o meu braço com as costas da mão e me disse «Estás toda molhada». Quem sabe se o momento decisivo foi depois de a ventoinha ter deixado de funcionar, quando estávamos no bar à espera das bebidas, as minhas ancas sensuais a servir de armadura às dela, e eu lhe soprei ao de leve por trás da orelha quente até se levantar a cortina de cabelo e eu lhe conseguir ver a penugem do pescoço.

A culpa foi do calor. Tanto nos mexemos no céilí que toda a fila de dançarinos se entortou. Lee foi despindo todas as camadas até ficar só com um colete preto, colante, que lhe evidenciava os seios pequenos. Partilhámos um copo de água com gelo e ofereci-lhe o último gole na minha boca, mas ela ria e dançava à minha volta, sem o aceitar. No andar de cima, sentei-me no parapeito da galeria que dava para a pista de dança e debrucei-me para ver a turba rodopiante. Lee encaixou a mão na minha coxa, fazendo contrapeso.

– ‘Tás a proteger-me para não cair? – perguntei, numa voz que pretendia ser sardónica mas que me saiu ofegante.

– Exactamente – respondeu.

Depressa a minha perna começou a tremer naquela posição, mas obriguei-a a manter-se firme, esperando que Lee não sentisse os meus espasmos, rezando para que não tirasse dali a mão.

A culpa foi da dança. Deviam ter uma licença especial para o bar ou, se calhar, em Galway as pessoas dançam sempre pela noite dentro. A música fazia os nossos ossos mexerem-se em sintonia e as nossas pernas tremerem. Tentei receber o último gole de água da boca da Sylvia, mas estava tão zonza que não conseguia acertar e estava sempre a ir contra as clavículas dela e a rir-me da minha falta de jeito.

A certa altura, gritei-lhe ao ouvido:

– ‘Tão, não devias estar no armário?

Sorriu de olhos fechados e disse qualquer coisa que não consegui perceber.

– O quê? – perguntei-lhe. – Esta noite não – respondeu.

Resultado: no fim da noite não tínhamos para onde ir, nem estávamos minimamente preocupadas. Já tínhamos trocado números de telefone em bases para

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copos ensopadas e decidimos ir dar uma volta. Ao entrarmos na carrinha branca da Sylvia, estacionada à beira de um passeio cheio de dançarinos de céilí já sem força nas pernas, começou a tocar no rádio uma velha canção dos Clannad6 ou coisa assim. A

Sylvia ligou o motor e começou a cantar o refrão, os seus murmúrios roucos apanhando meia dúzia de palavras da letra. Inclinou-se para apertar o cinto e entoou um verso suave ao meu ouvido. Era qualquer coisa com «bóthar»7… Ou seria «máthar»8? Não

percebi, mas deixou-me a cara a ferver.

– Para onde é que vamos? – perguntei, finalmente, quando as sebes iam ficando

mais estreitas de cada lado da carrinha branca.

A Sylvia fitou a escuridão, franzindo o sobrolho.

– Cashelagen, acho que era assim que se chamava. Se bem me lembro é um sítio

sossegado, ao pé de um castelo.

Passados dez minutos em que não vimos um só carro, percebi que nos tínhamos perdido no emaranhado de estradas que iam dar a Connemara. E parte de mim estava-se a lixar. Parte de mim contentava-estava-se em percorrer as lombas do caminho ao som de acordes fáceis pela noite dentro, enquanto observava o perfil esculpido da Sylvia Dwyer pelo canto do meu olho direito. Mas a outra parte queria esticar as botas até ao banco do lado, travar a fundo e passar por cima da alavanca das mudanças para a agarrar.

Lee não comentou o facto de eu nos estar a deixar perdidas à velocidade da luz. «Papa anjos», comentei de mim para mim. E nem sequer sabia ser subtil. Enquanto hesitávamos, perante uma bifurcação inesperada, um homem apareceu no clarão dos faróis. Olhei-o fixamente para me assegurar de que era de carne e osso e abri o vidro da janela a golpes frenéticos de manivela.

– Para Cashelagen? – perguntei. Lee desligara o rádio e a voz saiu-me num volume impróprio. – Sabe dizer-nos se estamos perto de Cashelagen?

O homem coçou as suíças e aproximou-se com um sorriso luminoso que dirigiu a Lee. Mas que raio estaria este fulano a fazer no meio da rua a estas horas da noite?

6 Banda de folk rock irlandesa formada nos anos 70. (NT) 7 Estrada, em gaélico irlandês. (NT)

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Nós, pelo menos, tínhamos desculpa. Estava prestes a fechar o vidro, quando ele começou:

– Bom… Bom, se querem ir para Cashelagen ainda têm de voltar para trás um bom bocado. Vão por Ballyalla e depois apanhem a marginal.

Atirei secamente um «obrigada» e liguei a ignição. Lee devia achar-me um caso perdido, a pessoa mais incapaz com quem alguma vez entrara numa carrinha para consumar actos imorais. Assim que a luz dos faróis o perdeu de vista, destravei o travão de mão e acelerei, prego a fundo. Passeei os olhos pela cabeça de Lee, ligeiramente descaída. Fui assaltada por um pensamento terrível: era capaz de amar esta rapariga.

Os vincos da testa da Sylvia desciam-lhe em voo picado, como gaivotas entre as sobrancelhas. Se ia ficar de mau humor, mais valia voltarmos a ligar o rádio e andar às voltas com a carrinha pela noite fora. Ensaiei as palavras na minha cabeça, depois pronunciei-as:

– Mas também para que é que queremos um castelo às escuras?

Num ápice esboçou um sorriso de orelha a orelha.

– Qualquer lugar é sossegado a esta hora da noite – disse-lhe, numa voz

aflautada. – Podíamos parar aqui. Parece-me um sítio calmo.

– Onde, aqui?

A Sylvia examinou a estrada. De repente, girou o volante e foi direita à entrada para um campo. Parámos, o pára-choques a meio metro de um portão com cinco tábuas. Quando os faróis se apagaram, estendeu-se à nossa frente um campo de escuridão e avistavam-se, ao longe, salpicos de luz que só podiam ser Galway. De repente, perguntei:

– A que horas é que disseste que tinhas de chegar a Dublin?

– Às nove. É melhor arrancar por volta das cinco, para o caso de eu apanhar

trânsito – respondeu a Sylvia. Inclinou-se, mergulhou no porta-luvas e tirou de lá um relógio sem bracelete. Observou-o, aproximou-o dos olhos e soltou um riso abafado.

– Que horas é que são?

– Nem queiras saber – respondeu.

Agarrei no relógio. Os ponteiros marcavam as três e meia.

– Não pode ser.

Sentámo-nos e fixámos o campo.

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– Hum-hum – respondeu.

Fixei as estrelas e pus-me a ligar os pontos até começar a lacrimejar. Foi então que ouvi o riso gutural da Sylvia que se virava de lado e se debruçava sobre o meu cinto de segurança. Ouvi o silvo do cinto a soltar-se, enquanto ela me beijava na boca.

Quando voltei dos arbustos, depois de ter ido fazer chichi, não estava ninguém no lugar do condutor. Entrei em pânico e desatei a olhar para todos os cantos do caminho de terra. Porque é que ela havia de ter fugido a pé? Foi então que, com um ranger ensurdecedor, as portas de trás da carrinha se abriram de par em par.

Por baixo da manta que a cobria, surgiam os ombros nus da Sylvia. Abraçava os joelhos. Tinha os olhos cintilantes e os pequenos papos eram as pregas mais bonitas que alguma vez tinha visto na pele de alguém. Entrei e ajoelhei-me, ao lado dela, sobre o casaco de pele de carneiro. Estiquei o braço para apagar a luzinha do carro. O rosto da Sylvia abriu-se num bocejo e fui assaltada por um pensamento terrível: era capaz de

amar esta mulher.

– Se quiseres podes dormir – disse-lhe eu. – Não me importo.

Depois apercebi-me de que tinha sido mal-educada, mas não sabia como voltar atrás.

– Claro que podia – respondeu Sylvia, numa voz melodiosa, divertida. – Há

tanta coisa que podíamos fazer numa hora e meia. Podíamos dormir, podíamos dividir o charro que está no porta-luvas, podíamos ir até Clifden ver o nascer do sol. Podíamos fazer tanta coisa…

Sorri. Depois lembrei-me de que ela não podia ver a minha cara no escuro.

– Despe-te – disse-me ela.

Queria ter deixado acesa a luz interior do carro para poder ver e memorizar cada linha do corpo de Lee. Mas teríamos ficado alumiadas, quais santas aparecidas a agricultores de passagem. Tudo se passou na escuridão, em trevas mais cerradas do que a noite sobre a cidade.

Claro que havia um guião. Há sempre um guião com falas tácitas, por muito espontâneo que tudo pareça. Todos os encontros têm um guião, mesmo a primeira vez em que desapertarmos o botão da camisa de alguém. Nenhum de nós chega sem expectativas a estas coisas do corpo.

Meu Deus, que festa fizemos! Lee sabia a sal e suor e, por trás de todas as camadas de algodão e lã negra, era mais carnuda do que a imaginara. Em trinta e quatro

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anos nunca saboreei um momento melhor do que aquele em que os membros nus se encaixam como chave em fechadura. Ou, melhor, como um cartão electrónico «abre-te sésamo», daqueles que nos dão nos grandes hotéis, com um código invisível que cabe à porta ler e reconhecer antes de aceitar abrir-se.

A dada altura, Lee rolou para debaixo de mim e murmurou: – Há um lugar onde gostava de ir.

E entrou no mais profundo de mim. Doeu-me, uma dor ligeira, mas devo ter-me contraído porque me perguntou se me estava a magoar. Disse-lhe que não, porque era aquilo que eu queria.

– Não – tornei a dizer, porque não queria que se fosse embora.

A voz da Sylvia tornou-se áspera como pedras a rasparem uma na outra. Enquanto se montava em mim sussurrava-me palavras que eu não conseguia distinguir, sons que saíam dos limites da audição. Queria deixar as coisas correrem; não queria estragar o momento com um «O quê?» ou um «Diz?». Por muito que desejasse ouvir e poder lembrar-me de cada palavra e de cada pormenor, acabei por ter de desligar o interruptor da razão e limitar-me a viver. A voz da Sylvia ia entrando no meu ouvido, excitando-me de uma maneira estranha, murmurando frases que só ela ouvia.

Sempre achei que a maior mentira que nos contam os livros é aquela história de as mulheres saberem sempre o que fazer umas às outras porque têm corpos iguais. As formas da Sylvia não eram de todo iguais às minhas e era impossível ter-lhe adivinhado o corpo por baixo das roupas chiques que trazia. Já para não falar de que tínhamos gostos diferentes e seguíamos uma ordem diferente nos mais ínfimos avanços e recuos em que nos íamos mostrando uma à outra. A Sylvia fez-me coisas que eu já sabia querer; outras de que não pensei vir a gostar e não gostei; várias de que, para meu espanto, gostei muito mais do que podia ter imaginado. Quanto à Sylvia, fiz-lhe algumas coisas a que não teve grande reacção e uma outra de que devia estar mesmo a precisar: mal tinha começado e ela já estava a ficar com a respiração ofegante.

Quando estávamos a chegar ao fim, deslizou os seus longos dedos pelo corpo, acompanhando o ritmo do meu. Não para me substituir, mas para me guiar.

– Ao de leve – sussurrou-me ao ouvido. – Cada vez mais leve. Como uma borboleta.

Quando finalmente começaram os espasmos, o riso escorria-lhe da boca em cascata.

– O que foi? Porque é que te estás a rir? – perguntei, com medo de estar a fazer

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A Sylvia limitou-se a gemer mais alto. As palavras vertiam-lhe da garganta, distorcidas de prazer.

A certa altura levei os lábios aos olhos dela e acariciei a pele por baixo de cada um.

– Os teus papos são lindos. Prometes-me que não deixas nenhum cirurgião

tocar-lhes?

– Não – respondeu, e voltou a rir. – Não deixas ou não prometes? – Não prometo.

Enquanto a Sylvia me tocava não pronunciei nenhuma das palavras que deambulavam pela minha cabeça. Não sei se por timidez ou por teimosia; por desejar que fosse ela a adivinhar o que fazer. A ânsia de esperar que as mãos dela decifrassem o meu corpo fez com que a felicidade fosse aumentando até que, quando veio, me deixou atordoada. Houve um momento que não trocava por nada: aquele momento de calmaria, aqueles segundos em que deixei de respirar. Olhei para a cara desta estranha, debruçada sobre mim, contorcida de esforço e ternura, e pensei «Tu… Sim, tu. Quem quer que sejas, deixo tudo por ti, se me pedires».

Nos intervalos, arfávamos, descansávamos e abafávamos o riso no recorte dos ombros uma da outra e discutíamos o momento em que tínhamos reparado uma na outra, os pormenores em que reparámos e o que imaginámos a cada instante, a história deste desejo sui generis. Foi num desses intervalos que nos apercebemos de que o sol já nascia, ténue, por trás de uma névoa amarela. O relógio sem bracelete marcava as cinco e meia no porta-luvas.

Abracei Lee, os meus braços envolvendo-lhe as costelas e a minha cabeça repousando entre os seus seios. Dilatados, como dois botões recém-desabrochados, fizeram-me salivar, mas não tínhamos tempo; comprimi a boca e os olhos e apertei-a com força contra mim, mas já não havia tempo. Larguei-a e sentei-me, compondo-me. Sentia os nossos nervos despegarem-se como hera de uma parede.

No campo, ouviam-se os mugidos matinais das vacas enquanto enfiávamos a roupa. As minhas calças de linho estavam frias e cheiravam a fumo. Não fizemos nada do que os amantes fazem antes da despedida, quando têm tempo de sobra e o direito de o fazerem. Não agarrei os pés de Lee enquanto ela enfiava as calças; ela não meteu a cabeça por dentro da minha camisola enquanto eu a vestia. Tudo tinha de acabar.

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Encontrar o caminho de volta para Galway com a mão de Lee encaixada entre as minhas coxas não foi tarefa fácil. Através das calças sentia-lhe os dedos frios e o polegar firme roçarem o linho. Entreolhámo-nos enquanto dobrávamos uma esquina a toda a velocidade e ela esboçou um sorriso de orelha a orelha. De repente, era tão jovem.

– Estás só a usar-me para aqueceres a mão – acusei. – É só isso que estou a fazer – respondeu.

O meu corpo ainda latejava, tão intensamente que parecia que o carro vibrava ao ritmo das palpitações. Estávamos a duas ruas de distância da pousada.

Não lhe pediria que nos voltássemos a ver. Deixaria tudo em aberto e afastar-me-ia. De certeza que lhe estavam sempre a fazer este tipo de propostas; era demasiado jovem para querer algo sério. Mostrar-me-ia generosa a ponto de aceitar que uma hora e meia era tudo o que ela tinha para me oferecer.

Deixei-a mesmo à porta do edifício. A pousada já tinha aberto, para deixar sair uns quantos alemães de mochila às costas. Ia sair do carro e dar-lhe um abraço bem apertado, mas, enquanto lutava para me libertar do cinto de segurança, Lee bateu-me na janela. Abri-a e pus a tocar Desert Hearts mentalmente. Ou muito me enganava ou aquela seria a última vez que a beijava.

Parada à porta da pousada, a tremer como varas verdes, bati no vidro da janela da Sylvia. Estava completamente pedrada e tonta de cansaço.

Não ia ser foleira e perguntar-lhe quando é que nos podíamos voltar a ver. Ia-lhe só acenar enquanto a carrinha se afastasse. De certeza que a Sylvia estava sempre a fazer estas coisas; era demasiado conhecida para querer algo sério. Havia de lhe mostrar que era sofisticada, que não me apaixonava assim tão facilmente, que não lhe pedia nada a não ser a hora e meia que ela tinha para me oferecer.

Quando abriu o vidro da janela, sorri e debrucei-me para dentro do carro. Fechei os olhos e senti a língua da Sylvia acariciar a minha, dizendo algo que nenhuma de nós ouvia. Breve, escorregadio, inalcançável.

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Lição de Francês n.º 1:

Le Meurtre

Veja como as vaches se balançam monte acima, da cabeça às ancas. Aprenda o que é uma vache. A vache é ordenhada uma vez de manhã e outra à tarde, enquanto agita a sua cauda embebida em estrume, a cabeça presa num aro metálico. Sempre que aprender uma língua estrangeira, comece pelos animais da quinta. Lembre-se de que um animal é animal, mas vários são animaux, com a terminação a u x. Não pronuncie o x. Estes animaux vivem numa ferme. Esta palavra, ferme, é bastante diferente da que nós usamos para nos referirmos àquele sítio coberto de fardos de palha, com um curral lamacento, e onde encontramos à porta do estábulo um monte de estrume a exalar vapores quentes nas manhãs de Inverno. Mas não deve ser difícil de reter: ferme.

Podemos, agora, falar dos artigos definidos le, la e les, que tão bem conhecemos de expressões que fazem parte da cultura popular, como C’est la vie, L’État c’est moi ou

Les Uns et les Autres. Para além de la vache, há outros animaux nesta ferme com casas

fustigadas pelo tempo, sarapintadas de pregos ferrugentos e construídas em ângulos tortos, mas onde há um tractor novo. Les chiens encolhem-se à passagem do dono, le

fermier, e ameaçam les chats com latidos enquanto estes se escapulem, às miadelas,

pela porta das traseiras e les poulets cacarejam e esgravatam a terra e são os animaizinhos queridos dos filhos du fermier até serem decepados por le fermier e depenados pelas mãos calejadas e vermelhas de la femme du fermier e depois cozinhados e comidos por toda la famille. Repare que em francês, tal como em português, a preposição de, quando aliada a alguns artigos, sofre contracções. É o caso de le fermier que, quando precedido pela preposição de, se transforma em du fermier. No feminino singular esta contracção não se verifica: de la femme. Até novas instruções, não pronuncie as consoantes finais de nenhuma destas novas palavras do seu vocabulário a menos que sejam seguidas da letra e – e mesmo neste caso há excepções à regra. As regras e as suas inúmeras excepções serão abordadas em aulas mais à frente. Faremos, agora, um parêntesis relativo à história da língua e introduziremos, de seguida, um conceito linguístico.

Em França pratica-se a agricultura tal como no nosso país, mas a palavra é escrita e pronunciada de forma ligeiramente diferente: agriculture. Escreve-se de forma muito parecida porque é uma palavra que vem do latim. Nestas aulas, dar-se-á conta de

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que algumas palavras francesas, como la famille, se escrevem de forma muito semelhante em português, uma vez que o francês e o português são ambas línguas românicas e várias palavras têm o mesmo étimo. Por outro lado, algumas palavras francesas não se assemelham em nada às que usamos para nos referirmos à mesma coisa. Dá-se o caso de estas palavras francesas derivarem do latim enquanto as nossas nos chegaram dos árabes ou dos visigodos, entre outros. E é este o nosso parêntesis informativo sobre história da língua. As próximas aulas terão mais história da língua, porque a história da língua é verdadeiramente fascinante. Esperemos que seja da mesma opinião até ao final do curso.

Dissemos que temos palavras diferentes em português para nos referirmos às mesmas coisas. Mas não é bem verdade. Não podemos dizer que existem diferentes palavras para a mesma coisa. Na verdade, é precisamente o contrário: há uma só palavra para várias coisas, e mesmo essa palavra, quando se trata de um nome, é demasiado geral. Tenha em conta este conceito linguístico enquanto ouve o exemplo seguinte:

Uma arbre francesa nada tem que ver com o sobreiro ou a azinheira que encontramos numa paisagem campestre do nosso Alentejo, à sombra das quais dormimos a sesta em crianças, numa tórrida e longa tarde de Verão. Até a nossa infância é diferente da das crianças francesas e, se virmos um francês no meio do campo a apontar para um chaparro e a chamar-lhe «arbre», saberemos que há ali qualquer coisa que não bate certo. Uma arbre é um plátano no centro velho de uma cidade, de grossos ramos podados, o tronco leproso a descascar, que encontramos numa fileira de plátanos idênticos, do outro lado da câmara municipal em frente da qual vemos um homenzinho de pele rija e avermelhada com um velho boné conduzir uma bicicleta que passa, esvoaçante, até desaparecer no caminho estreito. Ou então é um daqueles carvalhos atarracados, de folhagem densa, plantados na aridez abrasadora das colinas da Provença por entre as quais vemos avançar uma figura semelhante à anterior, mas que usa um blusão azul e transporta uma espécie de rede ou armadilha. Uma arbre também pode projectar uma sombra agradável, mantendo la maison fresca no Verão. Mas lembremo-nos de que la maison não tem azulejos na fachada e um varandim em ferro forjado; é uma casinha virada para sul, feita de blocos irregulares de pedra amarelada, com telhas vermelhas e janelinhas quadradas com portadas verdes, menos no lado virado para norte, que está, aliás, protegido do vento por uma fileira de ciprestes plantados a curta distância uns dos outros, enquanto o lado norte recebe a sombra de uma bonita amoreira ou de uma oliveira. Claro que há vários tipos de maison em França, dependendo a sua

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arquitectura do clima ou do facto de algumas cidades fazerem fronteira com países vizinhos, como é o caso da Alemanha, mas não podemos associar mais do que uma imagem a uma palavra, como maison. O que vê quando diz casa? Vê mais do que um tipo de casa?

Quando é que regressamos à nossa ferme? Como já frisámos, o estudante de uma língua estrangeira deve dominar la ferme antes de passar para la ville, da mesma forma que só devemos vir para a cidade quando já somos adolescentes e a natureza ou a vida animal já perderam o interesse e a importância que outrora tiveram.

Se estiver num campo lavrado ao fundo de la ferme, vai ouvir les vaches mugir porque estamos no Inverno e são cinco da tarde, pelo que já têm os úberes cheios. Há luz no estábulo, mas cá fora já escureceu, e la femme du fermier observa o curral, apreensiva, da janela da sua cuisine, onde descasca os legumes. Vêem-se agora os contornos do empregado à entrada do estábulo. La femme pergunta-se por que razão estará ele, muito quieto, a segurar um pequeno objecto na mão direita. O artigo definido plural les, que se escreve l e s, como em les vaches, não varia em género, mas não pronuncie o s. O artigo definido singular tanto pode ser masculino – le – como feminino – la – dependendo do género do nome que se lhe segue e deve ser aprendido juntamente com o mesmo, porque alguns nomes que em português são masculinos são femininos em francês, e vice-versa. Pode tentar fixar que todos os dias da semana são masculinos ao contrário do que acontece em português – tal como em espanhol as palavras que terminam em «-aje» são masculinas, mas as que terminam em «-agem» em português são normalmente femininas – mas não tardará muito a esquecer estas regras. No entanto, la maison é, tal como em português, intrinsecamente feminina, com as suas portas convidativas abertas de par em par, os seus quartos a meia-luz e a sua cozinha acolhedora. La bicyclette, uma palavra nova que aqui introduzimos, é igualmente feminina em ambas as línguas e podemos compará-la com uma menina, fitas ondulando-lhe nas rodas ao sabor do vento enquanto serpenteia pelos caminhos sulcados até se afastar da quinta. La bicyclette. Mas isso foi no início da tarde. Agora les vaches encontram-se em frente ao portão do curral, mugindo e ruminando. O verbo mugir, e mesmo o verbo ruminar, são palavras que não precisa de saber em francês, uma vez que não vai ter muitas oportunidades de as usar. O empregado abre agora la barrière e les vaches deambulam pelo curral, úberes a balançar, imersas em la boue até aos joelhos, abanando a cabeça e chicoteando as caudas. Ouve-se agora o barulho dos cascos a calcarem o cimento do chão de la grange e o empregado fecha la barrière. Mas onde está le fermier? E, afinal, porque estará o

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açougue coberto de sang ainda peganhento se há já vários dias que le fermier não mata

un poulet? Terá de usar artigos indefinidos e definidos antes dos nomes e frisamos que

não se vai enganar no género dos mesmos se aprender os artigos juntamente com eles.

Un é masculino, une é feminino. Qual é, então, o género de un poulet? Se respondeu

masculino acertou, embora a ave possa ser uma jovem fêmea. No entanto, depois de cumprir dez meses, na altura ideal para ser guisada e não grelhada, frita ou assada, passa a ser conhecida como la poule e faz um grande escarcéu depois de pôr, a um canto do poleiro, uma ninhada de ovos que la femme vai ter dificuldade em encontrar na manhã seguinte, altura em que também encontrará uma coisa que não devia estar ali e que a faz ficar muito quieta, a olhar fixamente os campos lavrados, o avental cheio de ovos.

Repare que as palavras poule, poulet e poleiro têm, especialmente quando encontradas na mesma página, qualquer coisa em comum. Acontece que todas derivam do mesmo étimo latino. Talvez isto o ajude a fixar a palavra poulet. Por outro lado, poule, poulet e

poleiro não têm qualquer semelhança com a palavra galinha, pois esta deriva do étimo

latino gallina, enquanto as restantes têm origem no latim pullu («cria de animal»). Nesta primeira aula concentrámo-nos mais nos nomes. Podemos, no entanto, introduzir aqui uma preposição de lugar sem qualquer problema. Antes de terminarmos vamos, também, usar um verbo, de forma a que, até ao fim da aula, seja capaz de construir algumas frases simples. Tente perceber o significado da preposição seguinte através do contexto em que é utilizada. Vai aperceber-se de que tem feito isto com a maior parte do vocabulário que aqui introduzimos. É uma boa forma de se aprender uma língua; é assim que as crianças adquirem as suas línguas maternas: associando os sons que ouvem ao contexto em que estes são produzidos. Se o contexto estivesse em constante mudança, as crianças nunca conseguiriam aprender. Aquilo a que chamamos significado de uma palavra é, aliás, totalmente determinado pelo contexto em que esta é dita, pelo que não podemos dizer que o significado de uma palavra lhe é intrínseco; antes, altera-se ao longo do tempo e muda de contexto para contexto. Como sugeri acima, o assim chamado significado de uma palavra francesa não é de todo o seu equivalente inglês, mas o seu referente na vida dos franceses. Estas são teorias linguísticas modernas, mas amplamente aceites. A nova palavra que introduziremos no nosso vocabulário é dans – escreve-se d a n s. Lembre-se de que não deve pronunciar a última letra – s (nem a penúltima, neste caso – n). Diga a palavra com uma voz nasalada. Dans.

Lembra-se de la femme? Lembra-se do que ela estava a fazer ? Ainda está escuro lá fora, les vaches saíram do seu campo de visão e estão agora mais sossegadas, tirando

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uma vache doente que está a gemer porque le fermier não a deixou sair de manhã, para não correr o risco de as outras ficarem infectadas e la femme ainda está a descascar legumes. Ela está – preste atenção – dans la cuisine. Lembra-se o que é la cuisine? É o único sítio, tirando, talvez, um quintal soalheiro num fim de tarde ameno de Verão, onde seria razoável que une femme descascasse les legumes.

La femme segura uma faquinha dans la sua mão calejada e vermelha e os bocados de

casca de batata agarram-se-lhe aos pulsos como as penas que se colam ao sang no açougue das traseiras da casa, penas essas que parecem demasiado pequenas para serem de un poulet. As pommes de terre descascadas, branquinhas e reluzentes, estão dans une

bassine e la bassine está dans le lava-louça, e les vaches estão dans la grange, onde já

deviam estar há uma hora. Mais acima estão os fardos de feno, cuidadosamente empilhados dans le palheiro. Ao pé das vaches está um bezerro dans le curral. Os aros metálicos para prender les vaches tilintam e brilham com a luz da fileira de lâmpadas do tecto. Aro é mais uma palavra que não precisa de aprender em francês, embora seja útil em português.

Agora que já sabe as palavras la femme, dans e la cuisine, não será difícil perceber a sua primeira frase completa em francês: La femme est dans la cuisine. Repita-a várias vezes até se sentir à vontade. La femme est – escreve-se e s t mas as duas últimas consoantes não se pronunciam – dans la cuisine. Aqui tem mais algumas frases simples para praticar: La vache est dans la grange. La pomme de terre est dans la bassine. La

bassine est dans le lava-louça.

O paradeiro du fermier é que já é mais complicado, mas talvez o consigamos seguir até

la ville na próxima aula. Mas antes de prosseguirmos com la ville, é importante que

estude a seguinte lista de vocabulário adicional:

Le sac: o saco La grive: o tordo L’alouette: a cotovia L’aile: a asa La plume: a pena La hachette: a machadinha Le manche: o cabo L’anxieté: a ansiedade Le meurtre: o assassínio

Referências

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