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As práticas de associação e cooperação no Noroeste do Rio Grande do Sul: um espaço de educação

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Academic year: 2021

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UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO

DO RIO GRANDE DO SUL

MIGUELÂNGELO CORTEZE

AS PRÁTICAS DE ASSOCIAÇÃO E COOPERAÇÃO NO NOROESTE

DO RIO GRANDE DO SUL: UM ESPAÇO DE EDUCAÇÃO

Ijuí, RS, Brasil

2011

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MIGUELÂNGELO CORTEZE

AS PRÁTICAS DE ASSOCIAÇÃO E COOPERAÇÃO NO NOROESTE

DO RIO GRANDE DO SUL: UM ESPAÇO DE EDUCAÇÃO

Dissertação apresentada junto ao programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências da UNIJUÍ, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação nas Ciências.

Orientador: Prof. Dr. Walter Frantz

Ijuí, RS, Brasil Janeiro de 2011

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AGRADECIMENTOS

Parecia uma crise qualquer, mas em seguida virou pânico, revelando a fragilidade teórica de 15 anos atuando como professor de história. O curso, porém, chamou à reflexão, mesmo assim, caí do cavalo junto com Sepé, quando tive que reconhecer problemas na “igualdade” das Missões que as leituras revelavam. No entanto levantei e estou aqui, com vontade de continuar. Antes, porém, quero agradecer de forma especial algumas pessoas queridas que ajudaram nessa caminhada:

Ao meu orientador e amigo, doutor Walter Frantz, pelo acolhimento e pela paciência diante de um aprendiz que conseguia “munição” boa, mas acertava cada vez mais em si mesmo. Ao doutor Paulo Zarth, hoje professor da UFFS, por fazer acreditar que voltar à universidade depois dos 40 era possível e que aceitou participar da banca final. Ao grande amigo e doutorando Paulo Alfredo Schönardie, pelo exemplo de vida e pela coragem de enfrentar as ditas “certezas”. Às doutoras Elza Maria Fonseca Falkembach e Maria Simone Vione Schwengber pelos importantes apontamentos na fase final da dissertação. À Angélica, secretária do programa, sempre muito atenciosa e competente. Confesso que ainda não acredito que estou concluindo o mestrado.

Agradeço também ao doutor Antonio Inácio Andrioli, hoje diretor da UFFS de Cerro Largo, à doutora Helena Copetti Callai, ao doutor José Pedro Boufleuer, ao doutor Paulo Fensterseifer, ao doutor Otávio Luis Maldaner e todos os demais professores desse programa pela confiança e apoio.

À minha esposa e companheira Eunice, minha filha Mariana e seu namorado Jeferson, ao meu filho Mateus e a minha sogra Rosália, que souberam dar apoio, amor e compreensão. Aos meus pais, Antônio Félix e Maria Nilse, pela fé e amor com que me educaram. Aos meus irmãos e a Tia Cláudia, sempre disposta em ler minha pesquisa. Aos meus colegas do magistério público estadual que ainda não desistiram da educação.

À Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí - e seu Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências e à CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal em Nível Superior), pela bolsa que viabilizou o estudo. Aos colegas e amigos de curso, cujos debates tanto em sala quanto fora foram fundamentais para continuar acreditando que outro mundo é possível.

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RESUMO

O presente estudo busca identificar, dentre as diversas concepções e iniciativas, as práticas de associação e cooperação da região Noroeste do Rio Grande do Sul, Brasil, tendo por referência as práticas existentes nas Missões Jesuíticas, nos séculos XVII e XVIII, e as práticas dos agricultores, descendentes de europeus, a partir do século XIX. O objetivo é encontrar afinidades ou não dessas práticas para examinar se as Missões se constituíram em escola cooperativa para a região. A questão central orienta-se pela hipótese de que as raízes das atuais práticas de associação e cooperação não estão nas Missões, porque as duas experiências não têm uma relação direta. A pesquisa vai ao encontro do debate que se estabeleceu em torno do tema e da problemática da cooperação, a partir de autores como Rafael Carbonell de Masy, que defendem a ideia de uma relação histórica. Ao abordar a contextualização através de autores, inclusive em oposição, mas importantes para a síntese proposta, se apropria também da possibilidade de trabalhar com certo teor ambíguo quando elege as categorias da participação e da formalização, ou seja, por mais que a colonização tenha sido avassaladora sempre algum elemento de cooperação que não coloca o capital em primeiro lugar permaneceu. Trata-se de um estudo descritivo e interpretativo bibliográfico, com ênfase na narrativa histórica, sobre os entrelaçamentos desse fenômeno. Através de diversos elementos contundentes a hipótese foi confirmada, de modo que as raízes das atuais cooperativas não estão nas Missões. São períodos que abrangem contextos diferentes, mesmo que algumas práticas tenham sido mantidas nas terras de uso comum, na extração da erva-mate pela cultura cabocla e outras iniciativas. As cooperativas atuais apresentam uma formalidade possível de diferenciar da participação missioneira, ou da cultura cabocla, que foram sistematicamente marginalizadas. A violência na ocupação das terras denota um processo típico de ruptura, fácil ainda de observar, diante do preconceito sobre os povos nativos ou caboclos. A pesquisa aponta também dois elementos demarcadores: o primeiro está nos processos de ocupação das terras e as formas de produção associadas aos mesmos que resultaram nas organizações cooperativas atuais de modelo empresarial; o segundo está na estrutura dos coletivos, ou seja, aquelas formadas por interesses comuns, como nas Missões e nos caboclos, e aquelas mediante o somatório de interesses individuais. Apesar da base individual dessas estruturas o objetivo final é diferente, pois, enquanto uma busca os interesses comuns a outra procura garantir os interesses individuais. As diferenças apontadas entre os contextos, entre participação e formalidade e nas estruturas do coletivo permitem a compreensão de que existiu uma ruptura nessas práticas na região. As diferenças identificadas entre essas manifestações permitem entender a inexistência de relação direta entre as experiências missioneiras e atuais. O processo de ocupação da terra e as transformações que culminaram com a chegada do colono servem de sustentação, pois as Missões foram destruídas, os jesuítas expulsos, os índios aldeados, massacrados ou incorporados e os caboclos afastados ou “encurralados”. Por fim, a pesquisa também tem a intenção de servir aos movimentos populares e aos oprimidos, pois sua origem reside na prática docente da escola pública, lugar que pode ser potencializado pela educação popular, quando aponta a proximidade entre educação e cooperação e a possibilidade às classes subalternas sair da invisibilidade.

Palavras-chave: Associação, Cooperação, Missões Jesuíticas, Colonização, Educação Popular.

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ABSTRACT

This study seeks to identify, among the various ideas and initiatives, practices of association and cooperation in the Northwest region of Rio Grande do Sul, Brazil, with reference to existing practices in the Jesuit Missions in the seventeenth and eighteenth centuries, and the practices of farmers, descendants of Europeans, from the nineteenth century. The goal is to find common ground or not of these practices to examine whether the Mission provided a cooperative school for the region. The central issue is guided by the hypothesis that the roots of current practices in association and cooperation are not in the missions, because the two experiences do not have a direct relationship. The research goes to meet the debate that set up around the issue and the problematical of cooperation, from authors such as Rafael Carbonell of Masy, who defend the idea of a historical relationship. In addressing contextualized by authors, inclusive the opposition, but important for the synthesis proposal, also appropriates the possibility of working with some ambiguous wording when he chooses the categories of participation and formalization, ie, for longer that colonization has been overwhelming always some element of cooperation that does not put the capital in first place remained. This is a descriptive and interpretative bibliographical, with emphasis on historical narrative, about the intertwining of this phenomenon. Through various elements compelling the hypothesis was confirmed, so that the roots of today are not cooperative in the Missions. Are periods that span different contexts, even though some practices have been maintained in the grounds of common usage, the extraction of yerba mate by cabocla culture and other initiatives. Cooperatives have a current formality can distinguish the participation of the missions, cabocla or culture, that have been systematically marginalized. Violence in the occupation of the land denote a typical process of rupture, yet easy to observe, given the preconception about the native peoples or caboclos. The research also points to two elements demarcations: the first is in the process of land occupation and means of production associated with them which resulted in cooperative organizations current business model; the second is the structure of collectives, ie, those formed by interests common as in the Missions, the cabocla culture, and those by the sum of individual interests. Although the basis of these individual structures the ultimate goal is different because, while searching the common interests of the other seeks to ensure individual interests. The differences noted between the contexts, and between participation in formalities structures and allow the collective understanding that there was a rupture in such practices in the region. The differences identified between these events allow us to understand that there is no direct relationship between the missionary and current experiences. The process of land occupation and the changes that culminated with the arrival of the settler serve as support, because the missions were destroyed, expelled the Jesuits, the Indian villagers, massacred or taken up and away from the caboclos or “trapped”. Finally, the survey also intends to serve the grassroots, because its origin lies in the teaching practice of public school, a place that can be leveraged by popular education, when pointing the closeness and cooperation between education and the possibility to leave the lower classes invisibility.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO... 9

1 AS MISSÕES JESUÍTICAS ... 15

1.1 A REGIÃO DO TAPE ANTES DOS JESUÍTAS... 21

1.2 JESUÍTAS E BANDEIRANTES... 23

1.3 OS SETE POVOS DAS MISSÕES... 27

1.3.1 Economia e trabalho nos Sete Povos... 30

1.3.2 Organização política e social dos Sete Povos... 32

1.3.3 Padre Antônio Sepp... 36

1.4 O SENTIDO DA COLONIZAÇÃO... 44

2 A DESTRUIÇÃO DAS MISSÕES E A NOVA OCUPAÇÃO DO ESPAÇO... 48

2.1 O TRATADO DE MADRI... 49

2.2 A GUERRA GUARANÍTICA... 50

2.3 HERANÇA MISSIONEIRA... 53

2.4 O CONTEXTO REGIONAL APÓS AS MISSÕES... 55

2.5 A ORGANIZAÇÃO SOCIAL DA HERANÇA... 56

2.5.1 Os aldeamentos... 59

2.5.2 Os ervateiros: um testemunho da herança missioneira... 61

2.5.3 As terras devolutas... 65

2.6 A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO PELOS COLONOS EUROPEUS... 68

2.6.1 O lavrador nacional diante da nova colonização... 76

3 AS PRÁTICAS DE ASSOCIAÇÃO E COOPERAÇÃO DOS COLONOS... 85

3.1 HERANÇA E COLONIZIZAÇÃO NAS PRÁTICAS DE COOPERAÇÃO... 85

3.2 O TRIGO E A SOJA: NOVAS RELAÇÕES DE PRODUÇÃO NO CAMPO... 88

3.2.1 As primeiras cooperativas no Sul do Brasil: as cooperativas mistas... 91

3.2.2 Modernização capitalista da agricultura e o cooperativismo tritícola... 94

3.3 A ORIGEM DO ASSOCIATIVISMO E DO COOPERATIVISMO... 99

3.4 DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO: A ESSÊNCIA DA COOPERATIVA... 103

3.5 EDUCAÇÃO E COOPERAÇÃO: UMA RELAÇÃO DE PROXIMIDADE... 107

3.6 ASSOCIAÇÃO E COOPERAÇÃO NOS DIFERENTES CONTEXTOS... 115

CONSIDERAÇÕES FINAIS... 120

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LISTA DE MAPAS

Mapa 1 - Os Trinta Povos das Missões... 15

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Ruínas de São Miguel... 28 Figura 2 – Ruínas de São João Batista... 43

LISTA DE ANEXOS

(10)

INTRODUÇÃO

O “Brasil” já contava com uma longa história quando Frei Henrique de Coimbra, um franciscano, rezou a primeira missa no dia 26 de abril de 1500. Desde que fincaram aquela cruz no chão do “novo mundo1”, a fisionomia desse local não seria mais a mesma. Não era

apenas uma cerimônia religiosa que os nativos acompanharam com surpresa2, mas o início da

conquista e de um longo processo de domínio que ainda não terminou. Os Sete Povos das Missões3 fazem também parte desse contexto em que a religião católica, representada pela

Companhia de Jesus4, realizava uma obra interessante do ponto de vista da cooperação e da

associação. O presente estudo se propõe partir dos Sete Povos, visando compreender as práticas de associação e de cooperação da região Noroeste do Rio Grande do Sul.

A obra dos jesuítas e Guaranis tem despertado muita polêmica, colocando em suspeita a ocupação ideológica dos índios, onde em nome de Deus tudo se justificava. Entrando um pouco no teor ambíguo dessas polêmicas, mas sem a pretensão de propor uma palavra final, essa pesquisa busca identificar, dentre as diversas concepções e iniciativas, as raízes das atuais práticas de associação e cooperação que predominam na região herdeira das Missões.

Com a decadência dos Sete Povos, depois de 1750, uma intensa luta pela ocupação da terra foi travada entre diversos grupos humanos alterando a organização do espaço político, econômico e social. Nessa luta, algumas práticas de associação e cooperação foram mantidas, outras abandonadas, enquanto outras foram construídas.

Essa região contou com a presença cada vez maior do imigrante europeu não ibérico ou seu descendente, aqui tratado como colono, a partir da segunda metade do século XIX, mas especialmente no século XX. As práticas de associação e cooperação deste grupo, desde o início, foram importantes na formação de uma sociedade diferente da missioneira, representando um fenômeno importante para o surgimento das atuais organizações cooperativas que colocaram o Estado como “berço do cooperativismo brasileiro”5.

As práticas de associação e cooperação ontem e hoje formam, portanto, a questão central da pesquisa que, em âmbito local, pode contribuir para melhorar a compreensão sobre diversas contradições. Afinal, transcorridos pouco mais de dois séculos, o que ocorreu com

1

Novo Mundo corresponde ao continente americano.

2

Se é que realmente os índios estiveram presentes na primeira missa, como Pero Vaz de Caminha afirma: “depois de acabada a missa, quando estávamos sentados ouvindo a pregação, muitos deles levantaram-se e começaram a tocar corno ou buzina, saltando e dançando por um bom tempo” (TUFANO, 1999, p.39).

3

Parte dos Trinta Povos localizados no oriente do rio Uruguai. Neste estudo, “Sete Povos”, “Trinta Povos”, “Missões”, “Reduções” ou “Doutrinas” serão utilizadas para designar as povoações dos Guaranis cristianizados.

4

Ordem religiosa católica fundada por Inácio de Loyola em 1534, cujos membros são os Jesuítas.

5

(11)

essas práticas tão próximas da solidariedade? A cooperação que atendia as necessidades primárias foi abandonada ou está presente ainda hoje? Será que existem vestígios ou o que se pratica hoje não tem relação com a experiência do passado?

No caminho para responder essas e outras questões a âncora teórica utilizada na definição conceitual do termo cooperação vem de Frantz (2001, p.3):

A cooperação como um processo social, embasado em relações associativas, na interação humana, pela qual um grupo de pessoas busca encontrar respostas e soluções para seus problemas comuns, realizar objetivos comuns, busca produzir resultados, através de empreendimentos coletivos com interesses comuns.

A associação, por sua vez, faz parte de uma relação humana que está na base das práticas de cooperação, de modo que não há cooperação sem associação, pois a ação de cooperar supõe outra pessoa, o que forma um coletivo.

Da palavra associação surge o associativismo que, segundo Andrioli (2007, p.34) é muito antigo, sendo possível encontrar nas primeiras civilizações da terra, através das práticas de “mutirão e da parceria”. O associativismo trata-se de uma organização social mais ampla e contempla na opinião de Andrioli (2007, p.34) “além da economia, também a organização em torno de questões sociais, políticas, culturais, religiosas, esportivas e de lazer”.

Existem pesquisas6 que procuram relacionar as práticas de associação e cooperação,

traduzidas na experiência cooperativa, construída pelos colonos e implantada durante o século XX, com as Missões jesuíticas do século XVIII. O problema reside em encontrar as relações entre esses fatos históricos afastados pelo tempo. Ou seja, as raízes da cooperação atual possuem alguma ligação com a experiência missioneira? Quais as significações ou relações atribuídas à cooperação e à associação dos Sete Povos, diante da cooperação e associação atual? É possível diferenciar a cooperação missioneira da atual?

A sociedade formada depois da decadência missioneira possuía também práticas de cooperação e associação, mas será que existe continuidade ou ruptura dessas práticas? É possível identificar a existência de um fio ligando esses fatos? O que existe de cooperação e associação na experiência dos Sete Povos? Existem relações entre o mundo passado e o atual através das formas associativas e cooperativas? Quais?

O objetivo geral busca responder essas questões na expectativa de encontrar afinidades dessas práticas e examinar se as Missões se constituíram em escola cooperativa para a região.

6

Carbonell de Masy procura comprovar que a origem do cooperativismo moderno está nas Missões jesuítico-guaranis, diferente da origem mais aceita que se encontra em 1844 na Inglaterra (CARBONEL DE MASY, Rafael. Estratégias de desarrollo rural em los pueblos guaranies (1609-1767). Barcelona: Antoni Bosch, 1992).

(12)

Embora exista um amplo material sobre os Sete Povos não é tão grande a produção que procura relacionar a experiência missioneira com a atual, sob o aspecto associativo e cooperativo. Por isso, a pesquisa visa também resgatar uma parcela da história regional para compreender melhor que ela não começou com a chegada do europeu, ou seja, outras leituras são importantes no sentido de escrever e reescrever a história e não repetir apenas o vencedor.

A pesquisa tem suas origens na prática docente da escola pública, espaço que pode ser potencializado pela educação popular, pois aponta às classes subalternas uma saída da invisibilidade. Por isso, uma motivação especial desse estudo é também servir de instrumento de transformação em favor dos oprimidos para construir um mundo mais justo. É a utopia de acreditar que o impossível é possível, pois para a educação, trabalhar com outras possibilidades, significa abrir horizontes. Para o estudante e a estudante, significa valorizar os seus sonhos, numa relação de proximidade e cumplicidade que a cooperação e educação7 se

encontram e reaparecem constantemente.

Pesquisar sobre as práticas de associação e cooperação da região Noroeste do Rio Grande do Sul é trazer para o debate um tema polêmico. Durante os Sete Povos essas práticas conseguiram uma expressão importante, diante das poucas opções da colonização8. Para a

historiografia do Rio Grande do Sul, esse tema seria importante aparecer mais na base curricular das escolas, pois, além de representar parte das origens culturais, a cooperação serve como referência de organização social aos movimentos populares.

A cooperação foi abraçada historicamente pelos movimentos populares organizados das classes subalternas no Brasil. Não raras vezes, por causa dessa concepção associada à luta pela terra, o poder dominante mostra seu braço armado sobre esses movimentos, tentando criminalizá-los9. Diversos exemplos existem como os milhares de quilombos espalhados por

todo país ou Canudos, aquele reduto sertanejo liderado por Antônio Conselheiro, revelado por Euclides da Cunha. A guerra do Contestado10, a Cabanagem no Pará e a Balaiada no

Maranhão são outros exemplos. A cooperação também pode ser identificada na base dos

7

Frantz, Walter. Educação e cooperação: práticas que se relacionam. Revista Sociologias n.6 Porto Alegre July/Dec. 2001. doi: 10.1590/S1517-45222001000200011.

8

Kern (1982, p.259) lembra que as Missões foram uma tentativa para criar uma vida comunitária com grupos indígenas até então destinados a ser uma espécie de combustível humano na grande empresa de colonização.

9

A criminalização dos movimentos sociais faz parte de uma estratégia da hegemonia burguesa, através de diversos meios, dos quais a mídia dominante é um, para combater à demanda, organização e lutas populares, manifestando-se por diferentes formas de enfrentamento: estigmatização, restrição, repressão e criminalização. Ver mais em: FILHO, Aton Fon. Criminalização dos movimentos sociais: democracia e repressão dos direitos humanos. (p.79-110). In: Buhl, Kathrin e Korol, Claudia (org). Criminalização dos protestos e movimentos sociais. São Paulo: Instituto Rosa Luxemburgo Stiftung, 2008.

10

1912-1916: foi um conflito social em que milhares de caboclos tombaram defendendo seus direitos à posse da terra. Lutaram contra o sistema opressor, o capitalismo estrangeiro e o abandono em que se encontravam.

(13)

movimentos populares da atualidade, especialmente o MST - Movimento dos Sem-Terra11. O

mesmo ocorre na experiência anterior do Master (Movimento dos Agricultores Sem Terra), fundado no Rio Grande do Sul em 1958, sob influência de líderes políticos como Leonel Brizola e Paulo Schilling para pressionar o governo estadual a realizar a reforma agrária12

, e suas relações na “memorável campanha” das forças vivas do Estado gaúcho em defesa da triticultura, como relata Schilling (1959).

As práticas de associação e de cooperação possuem uma história entrelaçada com os vários grupos humanos que ocuparam a região. Independente da época, essas práticas aparecem, ora com mais intensidade, ora com menos, sendo possível encontrar afinidades entre o que ocorreu no passado com as atuais. Em alguns aspectos são práticas idênticas, observadas também, em outras regiões do mundo. A questão central aponta para a hipótese de que existiu uma experiência de associação e cooperação nos Sete Povos e existe uma experiência de associação e cooperação na colonização atual na região Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. As raízes da atual experiência não estão nas Missões porque as duas experiências não têm uma relação direta, embora alguns elementos dessas práticas possam ser identificados, como no trabalho coletivo da cultura cabocla na extração da erva-mate, que se estabeleceu na região com a decadência das Missões.

Trata-se de uma pesquisa baseada em documentação já publicada, num estudo descritivo de interpretação bibliográfica. Incluindo fontes primárias como Pe. Antônio Sepp e Pe. Antonio Ruiz de Montoya a produção dissertativa procura, com ênfase na narrativa histórica, repensar e analisar os entrelaçamentos das práticas de associação e cooperação na região Noroeste do Rio Grande do Sul, visando enxergar novos fios do “tecido social”. Na opinião de Larossa (2001, p.146) “enfiar-se na leitura é en-fiar-se no texto, fazer com que o trabalho trabalhe, fazer com que o texto teça, tecer novos fios, emaranhar novamente os signos, produzir novas tramas, escrever de novo ou de novo: escrever”. Quanto à abordagem do problema e aos objetivos a pesquisa será qualitativa com ênfase na descrição13.

A estrutura da pesquisa será organizada em três capítulos. Um traço metodológico comum nos dois primeiros é o confronto de interpretações e a síntese a partir desse confronto, enquanto o terceiro acrescenta uma análise a partir de alguns conceitos numa mudança de lógica, mas ancorada também em pesquisa bibliográfica.

11

Segundo OLIVEIRA, 2009, p. 10.

12

Conforme STEDILE, Jõao Pedro e FERNANDES, Bernardo Mançano. Brava Gente: a trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999.

13

RAMOS, Paulo. Manual prático de metodologia de pesquisa: artigo, resenha, projeto, TCC, monografia, dissertação e tese. Blumenau: Acadêmica, 2003.

(14)

O primeiro capítulo faz uma análise a partir de autores como Arno Kern, Clóvis Lugon e outros, buscando contextualizar as Missões como obra da Companhia de Jesus e dos Guaranis, visando examinar sua natureza associativa e cooperativa, sem esquecer de relacionar com o sentido da colonização. Parte-se da descrição das Missões para analisar o confronto das interpretações a partir das grandes navegações, quando o mundo europeu passava por grandes transformações e diversos membros da Companhia de Jesus atravessaram o Atlântico para realizar na América sua missão. Os jesuítas14 possuíam uma formação bem

elaborada para conquistar novas almas à fé católica. Antônio Sepp, grande responsável pela fundação da redução de São João Batista, serve para ver como esses padres se entregavam de “corpo e alma” num território desconhecido e habitado por “selvagens canibais”15, conforme

descrito pelo viajante alemão Hans Staden. As Ruínas de São Miguel16 permanecem como um

testemunho silencioso dos Sete Povos. Infelizmente, quem visita o local, não vai encontrar mais uma sociedade organizada como nas reduções, mas o que restou dela. A situação em que se encontram os Guaranis não consegue remeter aquele passado em que viviam17.

No segundo capítulo ocorre uma interpretação para analisar o destino do povo e da “herança” com a destruição das Missões, diante da nova e difusa ocupação do espaço. Procura-se identificar o que restou das Missões sobre suas práticas de associação e cooperação na sociedade que se formava depois da Guerra Guaranítica18

. Essa guerra é fundamental, pois levou à decadência das Missões, entendida aqui como “divisora de águas” da história do Rio Grande do Sul. O processo da destruição das Missões é importante para perceber as relações da história dos Sete Povos e dos colonos19

. A interpretação terá por base autores como Tereza N. S. Christensen, Paulo A. Zarth e outros, buscando repensar a ocupação territorial na luta pela terra, entre indígenas, lavradores nacionais, compreendidos aqui como caboclos, pecuaristas, escravos negros e por último os colonos.

O terceiro capítulo trabalha alguns conceitos fundamentais à análise, escolhidos a partir do foco da pesquisa. Parte da localização desses conceitos na história mundial como a origem do cooperativismo, desenvolvendo em seguida uma análise sobre o contexto regional

14

Os jesuítas foram os líderes carismáticos dos Guaranis, ao mesmo tempo em que representantes locais da monarquia espanhola, da Santa Sé e da própria Companhia de Jesus (KERN, 1982, p.7).

15

Segundo Ribeiro (1995, p. 34) “Hans Staden, que três vezes foi levado a cerimônias de antropofagia e três vezes os índios se recusaram a comê-lo, porque chorava e se sujava, pedindo clemência. Não se comia um covarde”.Ver mais em: STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1974.

16

São Miguel das Missões: município do Rio Grande do Sul onde estão as Ruínas de São Miguel.

17

Ver vídeo onde um grupo Guarani é expulso de beira de estrada pela Justiça Estadual em Eldorado (RS) - 10 min - 08/07/2008 - NIT-UFRGS - wethetv.org/node/8

18

Guerra Guaranítica: conflito dos Guaranis e jesuítas contra Portugal e Espanha entre 1754-1756.

19

(15)

após a nova ocupação do espaço, visando descrever a organização cooperativa que nasce das práticas dos colonos. Caracteriza o cooperativismo tritícola no contexto do desenvolvimento do capitalismo com a modernização da agricultura para retornar ao objeto de estudo, fazendo uma leitura teórica comparando as formas de associação e cooperação presentes nessas “práticas históricas”. Enfatiza também as relações entre educação e cooperação, buscando identificar o que essas práticas têm de educação popular. Tal estrutura serve para analisar o que pode ser “herança” na organização dos colonos e se é possível comparar o associativismo e a cooperação nos diferentes contextos. A interpretação terá por base autores como Antonio Inácio Andrioli, Walter Frantz, Elza Maria Fonseca Falkembach entre outros.

Ao final, serão retomadas as principais questões desenvolvidas buscando afirmar ou negar a hipótese na perspectiva de contribuir no tom do debate sobre as práticas de cooperação e associação presentes na região. Práticas importantes para o desenvolvimento regional desde as Missões até a atualidade. Em anexo foi incluída uma linha cronológica, possibilitando visualizar a história regional desde antes da chegada dos europeus até a fundação da Colônia Mista de Santa Rosa.

(16)

1 AS MISSÕES JESUÍTICAS

Esse capítulo busca contextualizar as Missões como obra da Companhia de Jesus e dos Guaranis, visando examinar sua natureza associativa e cooperativa. Parte-se de uma descrição da região ainda antes dos jesuítas, para perceber os interesses envolvidos, tanto dos povos nativos como dos conquistadores, até a decadência dos Sete Povos das Missões.

As Missões em seu apogeu formavam um conjunto de Trinta Povos, ocupando um território que hoje pertence a quatro nações sul-americanas, sendo quinze na Argentina, oito no Paraguai, sete no Brasil, mais as estâncias em solo uruguaio, conforme mapa abaixo.

Mapa 1 - Os Trinta Povos das Missões20.

Redução, Missão, doutrina ou aldeamento serão as expressões usadas para designar a experiência dos jesuítas e Guaranis desenvolvidas no sul do continente americano, durante os séculos XVII e XVIII. Montoya (1997, p.35) chama de “Redução” aos povoados de índios que, deixando sua vida antiga nas selvas, “„reduziu-os‟ a diligência dos padres a povoações não pequenas e à vida política (civilizada) e humana”. A Missão, além da catequese cristã, também desempenhou função geopolítica, barrando o avanço luso sobre as minas de prata.

20

(17)

A experiência dos jesuítas e Guaranis possui também uma expressão que se estende pelo tempo, sendo possível identificar nos dias atuais sua importância, que não se resume às Ruínas de São Miguel21

, mas num conjunto de elementos profundamente entrelaçados.

Escreve Christensen (2001, p.62) que “nelas viveram cerca de duzentos mil índios guaranis e aproximadamente duzentos padres...”. Segundo Dalto (1999, p.16) a terra era extensa: “ao todo, 490 mil quilômetros quadrados, sendo que a maior fatia estava onde hoje se encontra o Brasil”. De acordo com Kern (1982, p.111) “a Missão representou a reunião de diversas tribos numa mesma comunidade social, onde os elementos culturais guaranis passaram a coexistir com novos elementos, cristãos e ocidentais europeus”.

O jesuíta reforçava a ideia de que a história da América começou com Cristóvão Colombo em 1492. Essa versão, escrita pelo colonizador, não tinha interesse em destacar a riqueza humana das nações que habitavam a América pré-colombiana por milhares de anos. Sobre esse grande período histórico o material de pesquisa é raro, porque a conquista européia foi implacável em destruir quase todos os registros que não interessavam22.

A posição de domínio, embasada nas relações de poder constituída na figura do colonizador, era garantida pelas armas e também pela ideologia que procurava justificar a exploração. Em grande parte esse é o passado comum dos países americanos, incorporados como áreas de domínio do comércio europeu em expansão.

A história do sistema-mundo moderno tem sido, em grande parte, a história da expansão dos povos e dos Estados europeus pelo resto do mundo. Essa é a parte essencial da construção da economia-mundo capitalista. Na maioria das regiões, essa expansão envolveu conquista militar, exploração econômica e injustiças em massa. Os que lideraram e mais lucraram com ela justificaram-na a seus olhos e aos do mundo com base no bem maior que representou para todos os povos. O argumento mais comum é que tal expansão disseminou algo invariavelmente chamado de civilização. Todas essas palavras foram interpretadas como expressão de valores universais, incrustados no que se costuma chamar de lei natural. Por isso, afirmou-se que essa expansão não só foi benéfica para a humanidade como também historicamente inevitável (WALLERSTEIN, 2007, p.29-30).

O argumento de Wallerstein segue a posição de que a desigualdade social gerada durante a “conquista” apresenta consequências ainda não resolvidas23

. As Missões fazem parte desse processo, quando a forma de entender o mundo foi alterada pelas grandes navegações.

21

Ruínas de São Miguel: importante sítio arqueológico e patrimônio histórico da humanidade.

22

Yo hubiera preferido citar a nuestros propios pensadores americanos, contemporâneos de Aristóteles, pero los conquistadores españoles e portugueses desgraciadamente los aniquilaram y de aquéllos solo quedan unas quantos códigos. Esta es precisamente uma das tareas que tenemos: recuperar nuestra historia y volver a reconecer toda la sabiduría que nos viene de aqeullos tiempos y de aquellas culturas indígenas que pueden ser tanto o más respetables que la aristotélica (FALS BORBA, 1987, p. 17).

23

Tudo, nos séculos, transformou-se incessantemente. Só ela, a classe dirigente, permaneceu igual a si mesma, exercendo sua interminável hegemonia. Senhorios velhos se sucedem em senhorios novos, super-homogêneos e

(18)

Gênova e Veneza dominavam o comércio no Mediterrâneo. Os lusitanos, como pioneiros nas grandes navegações, contornam a África “abrindo” uma nova rota comercial, ainda dentro do século XV, até as especiarias orientais. A Espanha, unificada em 1492, não fica para trás, partindo em busca de outra via, pelo oeste, com Cristóvão Colombo. A América é incorporada e, segundo Prado Junior (2004, p.22), “os grandes acontecimentos desta era, que se convencionou com razão chamar dos “descobrimentos”, articulam-se num conjunto que não é senão um capítulo da história do comércio europeu”.

Portugal consegue uma “fatia” do novo mundo em 1494 com o Tratado de Tordesilhas. A oficialização desse domínio ocorre apenas em 1500 com Pedro Álvares Cabral, mas isso não garantia a posse, sendo preciso tornar a colônia economicamente viável. Os lusos já tinham experiência na produção de açúcar no Atlântico24

com o trabalho escravo africano. O Brasil, todavia, não era uma pequena ilha e demandava muito investimento, problema resolvido com “ajuda” holandesa: os portugueses organizariam o plantio e a produção, enquanto os holandeses financiavam na condição da exclusividade do transporte, do refino e da comercialização do açúcar brasileiro, onde ambos lucravam.

O grupo que chegava não era grande, diferente da determinação na exploração das riquezas. Segundo Ribeiro (1995, p.30) “embora minúsculo, o grupelho recém-chegado de além-mar era superagressivo e capaz de atuar destrutivamente de múltiplas formas”. De acordo com Wallerstein (2007, p.31) transcorrido meio século depois da chegada de Colombo “grande parte da população indígena havia sido aniquilada pelas armas e pelas doenças”. Wallerstein questiona a legitimidade na intervenção de uma nação sobre outra.

A pergunta “quem tem o direito de intervir?” vai direto ao cerne da estrutura moral e política do sistema-mundo moderno. Na prática, a intervenção é um direito apropriado pelos fortes. Mas é difícil de legitimar e, portanto, está sempre sujeito a questionamentos políticos e morais. Os interventores, quando questionados, sempre recorrem a uma justificativa moral: a lei natural e o cristianismo no século XVI, a missão civilizadora no século XIX e os direitos humanos e a democracia no final do século XX e início do século XXI (WALLERSTEIN, 2007, p. 59).

Wallerstein destaca (2007, p.60) que a intervenção dos fortes contra os fracos está baseada não no universalismo global, mas no que ele atribui de universalismo europeu, pois se trata de um “conjunto de doutrinas e pontos de vista éticos que derivam do contexto europeu e ambicionam ser valores universais globais”. Durante o século XVIII, no apogeu das

solidários entre si, numa férrea união superarmada e a tudo predisposta para manter o povo gemendo e produzindo (RIBEIRO, 1995, P.68).

24

Os portugueses, que já haviam experimentado a plantação de cana e a produção de açúcar em pequena escala, com tecnologia árabe, nas ilhas de Madeira e Açores, se habilitaram para estender astronomicamente essa produção no Brasil, através de um vasto sistema de recrutamento de mão-de-obra (RIBEIRO, 1995, p.275).

(19)

Missões, para Wallerstein (2007, p.63) “o mundo europeu havia se acomodado na aceitação global da legitimidade do domínio colonial na América e em outras partes do mundo”.

O domínio colonial, entretanto, em diversos momentos foi contestado25

. Segundo Wallerstein, (2007, p.73-4), quando isso ocorria “os poderosos do sistema-mundo moderno tendem mostrar as garras da repressão ortodoxa sempre que a dúvida chega ao ponto de minar eficazmente algumas premissas fundamentais do sistema”. Foi assim nos movimentos contrários ao colonialismo, basta lembrar o quilombo de Palmares que resistiu quase um século à escravidão. Segundo Wallestein (2007, p.80) “aqueles que acreditam e defendem um conjunto de valores universais costumam ser apaixonados no que se refere à exclusividade da verdade que proclamam bastante intolerantes a versões alternativas desses valores”.

No Brasil foi estabelecida uma exploração que Wallerstein classifica como integrante do universalismo europeu26, grande responsável pela formação e consolidação do capitalismo.

Trata-se de uma economia-mundo capitalista que nasceu no longo século XVI, na Europa e na América. E, assim que conseguiu se consolidar, seguiu sua lógica interna e sua necessidade estrutural de se expandir geograficamente. Desenvolveu a competência militar e tecnológica para conseguir isso e, portanto, incorporou uma após outra todas as partes do mundo até abarcar o globo inteiro em certo momento do século XIX (WALLERSTEIN, 2007, p.82).

A concepção de Wallerstein é importante para identificar as Missões como integrantes de um processo mais amplo, não limitado apenas no espaço e no tempo específico. Atualmente, mais de dois séculos depois, embora com maior visibilidade no turismo, as Missões formam um espelho histórico que continua despertando diferentes interpretações. Clóvis Lugon e Décio Freitas, por exemplo, definem as Missões como uma experiência socialista e igualitária, enquanto Arno A. Kern e Silvio Back compreendem como um braço do colonialismo europeu.

As reduções foram erguidas numa área ainda isolada da presença européia na América. Para seu estabelecimento os missionários recebiam autorização dos governadores espanhóis27 e os nativos tornavam-se vassalos do Rei. Segundo Kern (1982, p. 31) “como

vassalos diretos da Coroa hispânica, os indígenas das Missões tinham como deveres a

25

Frei Bartolomeu de Las Casas passou a vida denunciando os abusos da conquista, mas sem questionar diretamente a legitimidade dos atos da Coroa espanhola.

26

Como ultrapassar o universalismo europeu – esta última justificativa perversa da ordem mundial existente – rumo a uma coisa muito mais difícil de obter: o universalismo universal, que recusa as caracterizações essencialistas da realidade social [...] e permite-nos ver com olhos extremamente clínicos e bastante céticos todas as justificativas de “intervenção” dos poderosos contra os fracos (WALLERSTEIN, 2007, p.118)?

27

Os Governadores autorizavam a ida dos missionários para os territórios indígenas ainda não controlados pela Espanha, dando-lhes plena autoridade para fundar Reduções... (KERN, 1982, p.29).

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aceitação do cristianismo e da vida correspondente, sem abandonar, de sua vida antiga, aquilo que se julgasse possível conservar”.

Tratava-se de um espaço urbano planejado, geralmente erguido numa coxilha, formada por diversas construções, que incluíam uma intensa atividade econômica, religiosa, política, social e cultural.

O templo ficava no centro. Na frente, a praça e ao redor dela, as casas dos índios. De um lado da igreja, a casa dos padres, com dois pátios, e as oficinas de arte e trabalho. No outro lado, o cemitério e o cotiguaçu, a casa que abrigava as viúvas e os velhos. O pomar e a horta eram cultivados atrás da igreja. O Cabildo, o lugar onde se reunia o conselho de Caciques Guaranis, instalava-se junto à praça. Espalhava-se em volta, pelos campos, as estâncias e os matadouros, as plantações, as fontes de água, e a mata e suas matérias-primas, tão bem conhecida pelos índios. Fundiu-se o metal e desenvolveu-se a arte da cerâmica, do couro, do bronze e da pedra. Fizeram-se instrumentos musicais, santos, utensílios domésticos, ferramentas e arreios. Foi nas Missões que se desenvolveu o cultivo da erva-mate, a criação do gado, o hábito do churrasco, a cutelaria (DALTO, 1999, p.16-17).

Embora a Missão representasse um conjunto de hábitos sociais novos, os jesuítas procuraram manter também parte da cultura coletiva Guarani. Segundo Lugon (1976, p.36) “visavam a transformação da massa como tal, diante de hábitos sociais novos, pelo ambiente; deixavam agir a influência dos quadros, da disciplina coletiva...”. O exemplo das primeiras reduções e a ameaça da escravidão atraía outros nativos, destacados por Lugon (1976, p.39) que “solicitavam mais de uma vez aos missionários que as introduzissem na vida de redução”. Embora com alguns costumes nativos preservados o caráter evangelizador era o fundamento das Missões. De acordo com Kern (1982, p.97) “evangelizar e civilizar os indígenas “pagãos” foi o principal objetivo das Missões religiosas na América espanhola, dentro do espírito de cruzadismo28 que ainda imperava tanto na Espanha como em Portugal”.

A concepção de Kern vai contra a ingenuidade de quem acredita que as Missões não faziam parte do colonialismo europeu, embora uma “conquista” de teor diferente29 da

portuguesa laica, como a persuasão em vez da violência e o coletivo em vez do individual.

Ao contrário da formação colonial-escravista, que tratava o índio como um fator energético para ser desgastado na produção mercantil, o modelo jesuítico buscava assegurar-lhe uma existência própria dentro de uma comunidade que existia para si, isto é, que se ocupava fundamentalmente de usa própria subsistência e desenvolvimento (RIBEIRO, 1995, p.410).

28

Cruzada: movimentos militares de inspiração cristã que partiram da Europa Ocidental (XI/XIII) para libertar a Terra Santa (Jerusalém). Movimento com profundas influências econômicas, políticas e comerciais na decadência do Feudalismo. A península ibérica também estava sob domínio dos árabes muçulmanos, conseguindo sua unificação apenas em 1492 com a retomada de Granada.

29

“O projeto jesuítico era tão claramente oposto ao colonial que resulta espantoso haver sido tentado simultaneamente e nas mesmas áreas e sob a dominação do mesmo reino” (RIBEIRO, 1995, p.54).

(21)

A literatura brasileira geralmente traduzia uma visão difusa do colonizador. Conforme observa Bosi (1992, p.177) “o índio de Alencar entra em íntima comunhão com o colonizador”, numa visão que esconde a violência da conquista.

A ação “civilizadora” desdobrava e ampliava as diferenças entre as Missões e o expansionismo30

português, embora todos da mesma religião. Segundo Ribeiro (1995, p.53) para os portugueses “os índios eram um gado humano, cuja natureza, mais próxima de bichos que de gente, só os recomendava à escravidão”.

A diferença entre a colonização laica e religiosa é percebida numa das produções mais antigas da literatura brasileira: o poema épico do mineiro Basílio da Gama “O Uraguai”. Esta obra, escrita no século XVIII, foi baseada na expedição de Gomes Freire de Andrade31

para afastar índios e jesuítas dos Sete Povos. O poema, além de render graças ao Marquês de Pombal, de quem Basílio devia gratidão desde que viveu um tempo em Portugal, mostra a atitude geral do brasileiro, daquela época, em relação às Missões.

Vossa fica a Colônia, e ficam nossos/ Sete povos, que os bárbaros habitam/ Naquela oriental vasta campina/

Que o fértil Uraguai discorre e banha... (GAMA, 2000, p.18).

A colonização laica não aceitava a experiência comunitária missioneira ou qualquer outra nesse sentido. Segundo Prado Junior (2004, p.93) “a obra dos jesuítas não estava contribuindo, nos seus fins últimos e essenciais, para a colonização portuguesa aqui, ou

espanhola nas demais colônias”. Segundo Kern (1982, p.222) “as Missões dos Guaranis

provocaram, à medida que se desenvolveram, a ruptura das contradições desta mesma sociedade e do próprio sistema de conquista, onde a espada e a cruz deveriam se harmonizar”. Bosi (1992, p.93) destaca também que “no processo de transplante cultural a aliança do cristianismo com estratos sociais e políticos dominantes é letal para a sua integridade”.

Segundo Christensen (2001, p.66) “a Companhia de Jesus tornou-se pouco a pouco uma ameaça”. Essa afirmação se baseia no desenvolvimento econômico das Missões que enviavam tributos à sede da ordem em Roma e possuíam influência política considerável dentro dos estados católicos da Europa.

30

Os indígenas não foram forçados a entrar em nenhuma Redução fundada em toda a América espanhola ou portuguesa, assim como não foram obrigados a ali permanecer (KERN, 1982, p.63).

31

Foi governador do Rio de Janeiro e escolhido para comissário principal na expedição do Sul pela sua folha de serviços à Coroa Portuguesa como a perseguição e destruição de quilombos negros. Ver mais em: GOLIN, Tau. A Guerra Guaranítica: Como os exércitos de Portugal e Espanha destruíram os Sete Povos dos Jesuítas e índios guaranis no Rio Grande do Sul (1750-1761), 2.ed., Passo Fundo: EDIUPF, 1999.

(22)

Os portugueses sabiam lidar bem com inimigos militares, mas com essa mescla de atividade espiritual, política e militar os jesuítas se tornavam figuras incompreensíveis, por desenvolver uma atividade sem visar proveito próprio.

Por mais de um século as Missões jesuíticas se desenvolveram em terras espanholas no sul da América, sobre a qual as práticas de associação e cooperação se mantiveram e se ampliaram. Antes desse período algumas dessas práticas já eram habituais para os Guaranis, um povo guerreiro e agricultor que havia dominado o Tape32 e uma vasta região próxima aos

rios Uruguai, Paraná e Paraguai. Ruiz de Montoya (1997, p.239), um dos primeiros jesuítas na região, descreve o Tape, a partir da Redução de São Tomé, como um nome atribuído pelos moradores mais antigos.

1.1 A REGIÃO DO TAPE ANTES DOS JESUÍTAS

Os nativos habitantes do Tape viviam de modo muito diferente dos europeus antes da chegada do jesuíta. Dentre eles os Guaranis formavam um grupo importante. Antes, no entanto, outros grupos habitavam a região. Segundo Carbonell de Masy (1992, p.19) “minuanos y charrúas ocuparon el Brasil meridional antes que los guaranies, y gracias a migraciones estacionales gazaban de los recursos de campos, bosques, ríos, lagunas y del océano”. Caçadores, coletores ou agricultores desenvolveram por milhares de anos uma cultura adaptada à natureza. Segundo Brum (1988, p.17) “o atual território do Rio Grande do Sul não era desabitado antes da chegada dos portugueses e espanhóis. Até 1600 viviam aqui cerca de 500 mil índios, em perfeita integração e equilíbrio com a natureza”.

Apesar da disputa pelo espaço e da grande diversidade humana o Guarani formava um enorme grupo humano que habitava essa região. De acordo com Christensen (2001, p.46) “não há dúvidas de que essa tenha sido a mais numerosa família da América do Sul”. De certa forma, no dizer de Christensen (2001, p.33) “os povos que hoje habitam o Cone Sul da América são herdeiros de uma experiência histórica comum”.

Não era apenas o oceano Atlântico que separava a civilização européia da americana, mas um conjunto de elementos culturais significativos. De acordo com Ribeiro (1995, p. 37) “ao contrário dos povos que aqui encontram, todos eles estruturados em tribos autônomas, autárquicas e não estratificadas em classes, o enxame de invasores era a presença local avançada de uma vasta e vetusta civilização urbana e classista”. Eram mundos diferentes que

32

Tape possui um significado demográfico, ou seja, população grande. Padre Roque Gonzalez define o território do Tape [...] os atuais estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná (MELIÀ, 1981, p.49-50).

(23)

se chocavam. Os europeus pretendiam segundo Ribeiro (1995, p. 39), “refazer a orbe em missão salvadora, cumprindo a tarefa suprema do homem branco, para isso destinado por Deus: juntar todos os homens numa só cristandade”. Segundo Kern (1982, p. 47) “não foram apenas duas culturas que se defrontaram e se mesclaram, mas igualmente duas épocas históricas que se tocaram separadas por séculos de desenvolvimento diferente”.

O Guarani, além de caçador e coletor, era agricultor. Segundo Lugon (1976, p.26), o Guarani era “mais ou menos nômade. A caça, a pesca e uma agricultura primitiva eram seus únicos recursos. Cultivava o milho, a mandioca, a batata-doce. Na estação de sementeira e de colheita, a tribo fixava-se perto das culturas e concentrava-se numa espécie de galpões”. A agricultura representava, assim, uma característica singular desse povo em relação aos outros.

Segundo Ribeiro (1995, p.31) “na escala da evolução cultural, os povos Tupi33 davam

os primeiros passos da revolução agrícola, superando assim a condição paleolítica, tal como ocorrera pela primeira vez, há dez mil anos, com os povos do velho mundo”. A chegada do europeu na América provoca, portanto, um choque cultural violento.

A dominação do ocidente europeu sobre o resto do mundo provoca catástrofes de civilização especialmente nas Américas, destruição irremediável e conduz à escravidão terrível. Assim, a era planetária abre-se e desenvolve-se na e pela violência, pela destruição, pela escravidão e pela exploração feroz das Américas e da África (MORIN, 2001, p.66).

Ao lado da violência militar, na conquista do europeu sobre a América e como integrante do mesmo processo, estava o domínio religioso na ação comandada pela Companhia de Jesus. Essa ordem católica, extremamente rigorosa na disciplina e na formação de seus quadros, apesar de fazer parte do corpo colonial, realiza uma obra interessante especialmente com os Guaranis.

Nas Missões, ao mesmo tempo em que ocorria a cristianização do nativo, também se preservava alguns elementos culturais do Guarani. Isto é, aqui se encontra certa ambigüidade no processo da conquista, ou seja, se por um lado as Missões provocavam uma agressão à cultura nativa, por outro atendiam também alguns interesses guaranis, como na manutenção da língua e outras características importantes de sua cultura, além da manutenção do sentimento comunitário que incentivava as práticas de cooperação.

As Missões não estavam isoladas, mas no meio de uma fronteira, e como tal, sujeitas às instabilidades que uma região assim apresenta.

33

(24)

1.2 JESUÍTAS E BANDEIRANTES

Os jesuítas colonizadores eram os membros da Companhia de Jesus e sua formação era “diferente”34

da grande empresa colonial. Segundo Kern (1982, p. 72) “mesmo que o jesuíta seja um representante da sociedade européia, sua concepção de mundo e seus valores são distintos daqueles de um mercador espanhol, português ou inglês”.

A Companhia de Jesus35, “fechando os olhos à escravidão negra”, direcionou seus

melhores quadros para a atividade missionária. Do continente europeu, os jesuítas deveriam partir para o outro lado do Atlântico, num local “perigoso”, como as matas e campos ao longo do rio Uruguai, ocupados por diversos grupos nativos, especialmente os guaranis.

Todo o território do atual Rio Grande do Sul pertencia à Espanha, de acordo com o Tratado de Tordesilhas (1494). Esse meridiano, contudo, poucas vezes foi respeitado, transformando a região em alvo de disputa entre os impérios ibéricos. Por muito tempo esse local foi objeto idealizado pela Companhia de Jesus espanhola, embora segundo Christensen (2001, p.53), mesmo sem sucesso, “a prioridade dos primeiros contatos apostólicos ocorridos no território do Rio Grande do Sul de São Pedro pertence aos jesuítas portugueses”.

Os jesuítas espanhóis foram os primeiros a entrar na região. Em outros lugares os missionários encontravam uma população indígena mais ou menos destruída por conquistadores e colonos. No Tape, ao contrário, os jesuítas encontraram uma situação de primeiro contato (CHRISTENSEN, 2001, p. 54-55).

A Ordem dos Jesuítas foi fundada por Inácio de Loyola e consistia numa organização cristã-militar, a serviço do Papa, para conter o avanço Protestante36

. Quem quisesse entrar na Ordem deveria possuir, segundo Harnisch (1980, p.19) “saúde física, talento, firmeza de caráter, pureza de costumes, inteiro desprendimento interior de todos os desejos terrenos, domínio das paixões baixas e dedicação inflamada ao Filho de Deus feito homem”. Na formação do jesuíta era exigido um rigoroso preparo para purificar o espírito em obediência seguindo um método pedagógico minuciosamente elaborado: o Rátio Studiorum37.

34

Para os jesuítas, nem a liberdade nem a propriedade constituíam elementos integrantes de seus conceitos religiosos. Em seu lugar, predominavam os votos de obediência e pobreza (KERN, 1982, p.72).

35

As águas do Uruguai navegaram um extenso tráfico de negros, cuja venda e revenda era uma das principais fontes de divisas dos colégios da Companhia de Jesus no Rio da Prata. Naquele tempo, preto “ainda” não tinha alma. [...] Transmitindo o Evangelho, com um cristo inimaginável, para africanos, asiáticos e índios americanos, sobrepondo-se impunemente ao universo mítico de cada povo, nação, tribo, os jesuítas inauguram o imperialismo espiritual dos tempos modernos (BACK, 1982, p.37).

36

Reforma Protestante: Movimento religioso com destaque para Martinho Lutero que quebrou a unidade católica e acabou criando novas religiões na Europa no início do século XVI.

37

No desenvolvimento da educação moderna o Ratio Studiorum ou Plano de Estudos da Companhia de Jesus desempenha um papel cuja importância não é permitida desconhecer (LEONEL FRANÇA, 1952, p.5).

(25)

Os jesuítas lançam-se na tarefa de conquistar mais almas ao cristianismo no “novo mundo”. Bosi (1992, p.17) ressalta que “aculturar um povo se traduziria, afinal, em sujeitá-lo ou, no melhor dos casos, adaptá-lo tecnologicamente a um certo padrão tido como superior”. A ação do jesuíta era uma forma de aculturação realizada na redução38

. Foi nesse período, escreve Christensen (2001, p. 60) que “a exploração e o conhecimento do atual território do Rio Grande do Sul teve seu marco inicial com a catequese dos índios”. Segundo Bosi (1992, p.92) o missionário “é um difusor do salvacionismo ibérico para quem a vida do selvagem estava imersa na barbárie e as suas práticas se inspiravam diretamente nos demônios”.

Não eram todos os grupos nativos que “aceitavam” as Missões. Com os charruas e os minuanos39 a catequese jesuítica não vingava. Segundo Montoya (1997, p.211) a Redução de

Nossa Senhora dos Reis “está fronteiriça de uma nação indômita, chamada charruas, que são gente de porte agigantado. [...] Andam eles vagueando pelos campos à maneira de feras, buscando caça e pesca nas lagoas. Não plantam, nem sabem o que isso seja”.

Para os povos que preferiam viver seu modo nativo as Missões representavam uma ameaça que foi ampliada posteriormente com as estâncias portuguesas. Segundo Christensen (2001, p.44) “nada mais restava a esses indígenas senão, como única alternativa possível, empregar-se com os brancos, ou seja, engajar-se nos conflitos de fronteiras ou nas lutas de independência, ou ainda, como peão de estância”. Quando estas lutas terminaram, charruas e minuanos foram perseguidos e, de acordo com Christensen (2001, p.45) sofreram “com os combates de extermínio em 1831 e 1832, realizados à traição”40

.

Com os Guaranis, que já praticavam a agricultura, e alguns grupos lingüísticos afins a catequese obteve melhor aceitação. De acordo Carbonell de Masy (1992, p.54) “los guaraníes dejan su propio tekoha (modo de ser guarani), su modo de vida y su lugar, gradualmente por convencimiento personal, sin presión”.

Os jesuítas, mesmo com a desconfiança inicial do Guarani, representavam segurança, pois parte da vida nativa, que valorizava a cooperação, seria incorporada, não reproduzida ou transplantada nas reduções. Conforme Kern (1982, p. 254) “o resultado desta “conquista espiritual” é um regime misto, onde a propriedade privada, ou Abambaé, encontra-se lado a

38

Em 1610, os padres Simon Maceta e José Cataldino, ao fundarem próximos à margem esquerda do baixo Paranapanema, as pioneiras missões de N.S. de Loreto e Santo Inácio Mini, lançaram as bases da futura e polêmica “República Guarani” – aliás, nunca explicitamente reconhecida pelos jesuítas (BACK, 1982, p.28).

39

“Os charruas e minuanos nunca se deixaram catequizar como os guaranis...” (CHRISTENSEN, 2001, p.43).

40

A Batalha de Salsipuedes ou “o massacre de Salsipuedes” ocorreu em 11 de abril de 1831 e faz parte de um conjunto de ações de extermínio dos charruas comandadas por Fructuoso Rivera e seu sobrinho Bernabé Rivera.

(26)

lado com a propriedade comunitária, ou Tupambaé”41. Carbonell de Masy (1992, p.113)

também descreve que “paralela a la producción familiar, abambaé, se desarrollaba la producción comunitaria, tupambaé”. Isto é, a produção familiar acompanhava a comunitária, de modo que quando uma não bastava a outra supria a necessidade42

.

A existência anterior da propriedade privada nas instituições econômicas hispânicas serviu como sugestão para a implantação do Abambaé. A existência de uma propriedade comunitária da Companhia de Jesus, e igualmente das tribos Guaranis, serviu também como modelos anteriores para o estabelecimento do Tupambaé. Entretanto, nem o Abambaé nem o Tupambaé foram reproduções ou transplantes perfeitos dos modelos anteriores, mas sim fruto de decisões políticas exigidas pelas novas condições que se impunham com [...] as Missões (KERN, 1982, p.72).

A propriedade comunal foi defendida desde a presença dos primeiros jesuítas no lado oriental do rio Uruguai, a partir do ano de 1626 com o padre Roque Gonzáles. A partir dessa data, segundo Christensen (2001, p. 55) “o povo que habitava o território, que então se chamava Rio Grande de São Pedro e que hoje constitui o Rio Grande do Sul, passou a fazer parte da história colonial”.

A tentativa de construir reduções no lado oriental do rio Uruguai fracassou mais pela investida bandeirante43 do que pela resistência nativa. Mesmo assim vários missionários são

mortos pelos índios, inclusive o padre Roque Gonzáles. Segundo Lugon (1976, p.42) Roque Gonzáles “foi morto (1628) com dois golpes de macaná – um porrete índio – ao mesmo tempo em que o Padre Rodriguez, por ordem de Niezu ...”.

De acordo com Back (1982, p.34) há nas “reduções jesuíticas do Paraguai, um véu de mentiras e descaminhos sobre uma invasão mais sofisticada e não menos arrasadora: a evangelização do gentio”44

. A resistência dos caciques Niezu e Caarupé à investida dos jesuítas mostra como a proposta dos padres ainda gerava desconforto. Isso implicaria em alterações45

culturais que os nativos não estavam dispostos a aceitar, mesmo com a manutenção de sua língua e outros costumes. Segundo Kern (1982, p. 100) “nesta ação

41

Segundo Carbonell de Masy (1992, p.166) En idioma guaraní Tupá significa Dios y mbaé, posesión. Aplicado a su contexto cultural el tupambaé significa hacienda de Dios, enquanto (p.170) el abambaé (de abá, indio; mbaé, cosa pertenciente) significa la hacienda del índio.

42

Segundo Carbonell de Masy (1992, p.307) la aplicación del principio de subsidiariedad orientaba las diversas instituiciones: cuando el Abambaé no bastaba para el sustento suplía el Tupambaé.

43

Bandeirantes: partiam geralmente de São Paulo em busca de pedras preciosas e índios para escravizar.

44

Segundo Back (1982, p.36) “evangelizar é um ato de premeditada violência. Como matar em vida”.

45

A ação desenvolvida pelos missionários foi igualmente civilizadora, pois nas Reduções foram implantados valores não indígenas (KERN, 1982, p.99).

(27)

transformadora, os jesuítas encontraram uma forte oposição por parte dos feiticeiros46, ou

pajés, e um apoio que terminou sendo fundamental e decisivo por parte dos caciques”47.

A resistência inicial foi vencida pela insistência de outros missionários e as reduções se instalaram com grande progresso. A vitalidade e o rápido desenvolvimento, segundo Lugon (1976, p.43), “surpreendiam os próprios jesuítas e inquietavam os coloniais”.

A inquietação colonial com as Missões ficou materializada na investida bandeirante. Segundo Bosi (1992, p.31) “virá o momento de se apartarem e se hostilizarem a cruz e a espada, que desceram juntas das caravelas, mas que acabaram disputando o bem comum, o corpo e a alma do índio”. De acordo com Lugon (1976, p.49) “o mundo colonial de maneira alguma aceitava e não podia aceitar a existência dessas comunidades indígenas livres”. Segundo Ribeiro (1995, p.101) “a concentração de índios nas missões coincidiu também, muitas vezes, com os interesses dos escravizadores que, num só ataque, faziam farta colheita”. De acordo com Christensen (2001, p.61) “ondas bandeirantes solapavam as terras do sul, sem outro sentimento a não ser o do interesse comercial”. Os bandeirantes representaram uma constante ameaça na primeira fase48 das reduções na margem esquerda do rio Uruguai.

Missões inteiras, das mais ricas e populosas, como Guaíra (Oeste paranaense), Itatim (Sul do Mato Grosso) e Tapes (Rio Grande do Sul), foram assim destruídas pelos bandeirantes paulistas, que saquearam seus bens e escravizaram seus índios. É de supor que paulistas tenham vendido mais de 300 mil índios, principalmente missioneiros, aos senhores de engenho do Nordeste (RIBEIRO, 1995, p.368).

A Coroa espanhola proibia o uso de armas de fogo pelas reduções e isso facilitava a ação devastadora dos bandeirantes. Segundo Lugon (1976, p.65), existia uma cumplicidade diabólica entre as autoridades espanholas e portuguesas “que, impedindo os guaranis de se armarem, tinham permitido aos portugueses devastarem e despovoarem, contra o interesse da Espanha, as vastas e ricas províncias do Guairá e do Tape”.

Diante dos bandeirantes, as Missões do Tape não prosseguiram. Índios e jesuítas cruzam o rio Uruguai, mas deixam muito gado no lado esquerdo. Escreve Chistensen (2001, p. 62) que “abandonados estes rebanhos tornaram-se bravios e formaram na região uma imensa reserva de gado que se tornou conhecida como a Vacaria do Mar”.

46

A implantação das Reduções foi fatal para os médicos-feiticeiros, pois como não eram admitidos no seu interior e a isto se recusavam, terminavam agindo em regiões mais e mais despovoadas de indígenas, pois as bandeiras paulistas e os encomendeiros continuaram sua ação (KERN, 1982, p.110).

47

Os jesuítas não se deram conta, na época, da significância messiânica do fenômeno religioso tupi-guarani. Estigmatizaram os pajés, considerando-os como emissários do demônio. Em grande parte porque os médicos-feiticeiros foram os grandes opositores da ação dos missionários (KERN, 1982, p. 102).

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A desvantagem bélica foi superada quando a Coroa espanhola permite o uso de armas de fogo49 pelas Missões. Lugon (1976, p.61) destaca que a vitória dos índios na Batalha de

M‟bororé, nas margens do rio Uruguai, foi possível graças às armas de fogo. Nessa batalha, que ocorreu em 1641, o combate iniciou na água e terminou na terra, quando, segundo Lugon (1976, p.62) um tiro de canhão “meteu a pique três pirogas dos mamelucos”. Os paulistas derrotados desistem e alguns anos depois são construídos os Sete Povos.

1.3 OS SETE POVOS DAS MISSÕES

Com os Sete Povos das Missões a experiência jesuítico-guarani atinge seu apogeu. Segundo Carbonell de Masy (1992, p.91) “las reduciones entran en una fase de organización del desarrollo que explica el crecimiento demográfico desde 1647 con 28.714 habitantes hasta 1700, com 86.173”. Esse crescimento foi possível através da chegada de novos missionários, tanto que em 1732 as Missões atingem sua maior população com 141.182 habitantes, conforme relata Carbonell de Masy (1992, p.143).

Na primeira metade do século XVIII as cidades mais desenvolvidas do território atual do Rio Grande do Sul não estavam no litoral. A maior e a mais bela de todas era São Miguel Arcanjo. Impressionava qualquer visitante seus campos, sua majestosa igreja, planejada pelo arquiteto milanês Giovanni Baptista Prímoli, ao lado dos Guaranis convivendo uma experiência coletiva. Segundo Christensen (2001, p.65) “os índios viviam em um regime comunitário, na medida que a terra e os demais meios de produção pertenciam a todos”.

Os Sete Povos foram construídos na segunda tentativa dos jesuítas na margem esquerda do rio Uruguai a partir de 1682, como reação à fundação da Colônia de Sacramento. Eram as reduções de São Francisco Borja, São Nicolau, São Miguel Arcanjo, São Luiz Gonzaga, São Lourenço Mártir, São João Batista e Santo Ângelo Custódio. Segundo Kern (1982, p. 209) “a igreja dominava o Povo inteiro, simbolizando o predomínio da idéia religiosa sobre a comunidade e materializando a autoridade dos missionários sobre o conjunto da Missão”. Para Lugon (1976, p.71) “a igreja formava o centro da cidade. O seu acesso fazia-se através de uma grande plaza quadrada, cercada de pinheiros, palmeiras ou laranjeiras, e ornada de monumentos religiosos”. Existia uma cruz em cada canto da grande praça, das quais uma ainda resiste nas ruínas de São Miguel, conforme foto embaixo.

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“No ano de 1638, em consequência das invasões dos colonos portugueses de São Paulo de Piratininga, que saíam à caça de escravos índios, apresando também aos neófitos de várias Reduções, o Pe. Montoya foi à Corte de Madrid, para pedir ainda contra aquela desordem e a licença, também, de munir os índios com armas de fogo, a fim de evitar a tão iníquas atropelações” (RUIZ DE MONTOYA, 1997, p.14).

Referências

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