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Democracia e participação, como categorias presentes desde os princípios originários dos “pioneiros”, estão na base das organizações cooperativas. O cooperativismo segundo Schneider (1999, p.27) “através da mais fiel vigência da democracia e participação no econômico, consegue reduzir a concentração das decisões e da riqueza produzida”, além da possibilidade de ser importante fator de democratização econômica e social. Isto é, sem democracia e participação não se pode falar em cooperativa.

A democracia e a participação constituem, portanto, duas categorias fundamentais das organizações cooperativas. Segundo Schneider (1999, p.215) “a cooperativa, como forma democrática e participativa, surgiu num contexto de reivindicações políticas, econômicas e sociais da classe trabalhadora”. O contexto é importante quando se analisa os elementos dessas categorias na luta sustentada antes mesmo da cooperativa dos “pioneiros”.

A influência de Robert Owen, que, com suas inúmeras orientações e experiências político-sociais, visava resgatar a dignidade do operariado gravemente aviltada pelo capitalismo industrial nascente, a influencia de William King e do “cartismo”, o próprio companheirismo e a solidariedade forjadas ao longo das muitas lutas sociais e operárias sustentadas pelos pioneiros já bem antes da fundação da cooperativa de consumo, provavelmente foram relevantes ao orientá-los no estabelecimento do princípio de “um homem, um voto”, sem discriminações de ordem econômica, religiosa, política, sexual ou social (SCHNEIDER, 1999, p.102).

O princípio “um homem, um voto” sem discriminações, diante de uma sociedade que cerceava a participação política direta, representava um avanço. Para Schneider (1999, p.31) “o cooperativismo, devido à natureza específica de sua organização, de caráter fundamentalmente democrático e autônomo, tem um papel peculiar a desempenhar no processo de desenvolvimento e no avanço da democracia participativa...”. Na opinião de Schneider (1999, p.115-6) a prática democrática numa cooperativa visa:

a) a uma economia mais humana; b) a uma atividade econômica voltada para o atendimento das reais necessidades dos associados e da comunidade em geral e não para gerar crescentes margens de lucro; c) a um efetivo desenvolvimento econômico, social, cultural e moral dos associados; d) a uma crescente primazia do trabalho sobre o capital, assegurando a todos o direito inalienável a um trabalho digno onde o trabalhador tenha pleno poder decisório sobre os fatores da produção, como verdadeiro sujeito da atividade econômica e não como uma mera mercadoria como é no capitalismo; e) a um crescente processo de cooperação livre, autônoma, inspirada na subsidiariedade e não em expectativas paternalistas que são inibidoras da criatividade e da iniciativa.

O ideal cooperativista demonstra a intenção de influir não apenas no associado, mas da comunidade em geral. Segundo Andrioli (2007, p.59) “a participação é a essência da cooperativa e, quanto melhor estiverem envolvidos os associados com as causas do coletivo, melhor será a sua organização”. De acordo com Schneider (1999, p.21) “sem democracia e participação, não há condições para um verdadeiro cooperativismo. A cooperativa pode ser uma empresa eficiente, mas, sem democracia e autonomia, não é autêntica cooperativa”.

Os pioneiros de Rochdale quando definiram a democracia e a participação, diante da pressão do capitalismo industrial, perceberam logo a importância da comunicação.

Os associados devem ser freqüente e completamente informados sobre os principais problemas, planos e projetos da cooperativa, bem como sobre as decisões que se adotam para o funcionamento e as atividades da cooperativa. Somente através de uma boa comunicação, os associados saberão se os objetivos por eles definidos e as políticas por eles traçadas em função de suas necessidades e aspirações estão sendo seguidas (SCHNEIDER, 1999, p.161).

A democracia e a participação de uma cooperativa dependem, em grande medida, da comunicação. Isto é, sem comunicação a luta para a ampliação da democracia fica restrita. Schneider (1999, p.245) acredita que o cooperativismo foi de certa forma “um precursor da democracia integral na medida em que, no plano interno ao sistema cooperativo, desde suas origens, procurava integrar os aspectos econômicos, sociais e políticos da democracia”. Isto é, a defesa da democracia mostrou-se um processo dialético.

Os elementos e os processos vividos pela democracia em evolução constituem, por um lado, inspiração para o movimento cooperativo e, por outro lado, o próprio movimento cooperativo, se é fiel às suas características, pode contribuir de forma significativa no percurso de uma sociedade em direção a esta proposta de democracia, que tenta criar e multiplicar situações de democracia participativa na dimensão da micropolítica, econômica e social (SCHNEIDER, 1999, p.216).

O movimento cooperativo trabalha com elementos que ultrapassam sua organização, como a luta para ampliar a democracia. Não se trata apenas da democracia política, mas de uma democracia integral que se realize, conforme Schneider (1999, p.218), “na crescente interdependência entre os planos econômico, social e político”.

As limitações, sob o ponto de vista participativo, proposto pela democracia liberal- representativa, suscitam ampliar o debate da democracia participativa direta.

Se constata, por um lado, que não basta a mera participação política no nível do voto, mas que é preciso exercitá-la também em outros níveis e, por outro, que o processo democrático não se esgota apenas e exclusivamente no plano político, onde se executa o direito de votar e ser votado, mas deverá avançar em direção ao que alguns denominam de “democracia integral”... (SCHNEIDER, 1999, p. 221).

A luta pela instalação de uma democracia integral mostra o desejo de construir outras relações sociais, não baseadas na lógica capitalista, mas em princípios onde a cidadania deixa de existir apenas no papel. Schneider, um cooperativista convicto, reconhece tal necessidade.

Uma característica da democracia é que todos são iguais perante a lei. Porém tal igualdade na democracia liberal-representativa não existe plenamente, pois beneficiam-se mais os detentores de amplos recursos econômicos, articulados em poderosos grupos de pressão sobre o poder ou com representantes seus no próprio núcleo do poder. Há, pois, uma igualdade jurídico-político de votar e ser votado, mas não uma igualdade econômica e social (SCHNEIDER, 1999, p.229).

A cooperativa é um espaço que propicia a ampliação da democracia direta. Para tanto Schneider (1999, p.236) destaca que o dirigente deve ter “uma significativa experiência cooperativa e com um razoável conhecimento da especificidade da organização cooperativa, dos seus princípios, normas e valores, com condução democrática da cooperativa”.

O cooperativismo ultrapassa, portanto, a simples associação de pessoas. Schneider (1999, p.247) aponta o cooperativismo como pioneiro da “participação direta e universal dos seus associados nas eleições e decisões da organização, antecipando-se em vários anos à prática da democracia eleitoral dos Estados e da maioria das demais entidades da sociedade”.

Democracia e participação, como princípios definidos pelos pioneiros e presentes no movimento cooperativista, desenvolvido no ambiente cultural dos imigrantes europeus não ibéricos e seus filhos, servem agora para analisar as práticas de associação e cooperação da

região Noroeste do Rio Grande do Sul antes dos colonos. Ou seja, é possível falar desses princípios também dentro das Missões, nos aldeamentos e com os ervateiros?

Na opinião de Schneider (1999, p.81) “sem democracia não há verdadeira cooperação, no sentido de uma cooperação voluntária e livre”. Durante as Missões, embora as práticas de cooperação e associação fossem mantidas e fortalecidas, elas sofriam a falta de democracia, uma vez que não se sabe da eleição de um jesuíta ou mesmo de um cacique. Além disso, castigos físicos eram utilizados no trabalho, numa relação pouco voluntária e livre.

Democracia e participação ficam também prejudicadas num contexto paternalista.

É muito difícil, se não impossível, o funcionamento da democracia e da participação cooperativa num contexto político, social e cultural autoritário, paternalista e centralizado116. Por outro lado, a multiplicação e o fortalecimento de autênticas experiências cooperativas, sem dúvida, poderão contribuir de forma significativa para a democratização da sociedade, especialmente devido ao seu caráter de democracia econômica (SCHNEIDER, p.217).

Depois das Missões nos aldeamentos ou com os ervateiros é possível encontrar traços importantes de cooperação, ambos, porém, passaram a conviver com a diminuição constante de seu espaço. A violência na ocupação das terras denota um processo típico de ruptura entre as práticas existentes e aquelas construídas pelos colonos. Tal situação é fácil ainda de observar, diante do preconceito ou da discriminação sobre os povos nativos.

As manifestações de cooperação desses grupos caracterizam-se de forma diferente da doutrina em que se baseia o cooperativismo da idade contemporânea. Ou seja, antes mesmo do cooperativismo atual, havia uma participação não formal no uso coletivo da terra, nos resultados do trabalho e outras identificadas também na prática do mutirão.

Atualmente diversas práticas dessa natureza permanecem ou reaparecem seguindo uma lógica diferente da competição capitalista. Essa constatação aponta dois elementos demarcadores: o primeiro está nos processos de ocupação das terras e as formas de produção associadas aos mesmos que resultaram nas organizações cooperativas de modelo empresarial da atualidade; o segundo está na estrutura dos coletivos, ou seja, aquelas formadas por interesses comuns, como eram nas Missões e entre os caboclos, e aquelas formadas mediante o somatório de interesses individuais. Nessa estrutura é possível, portanto, perceber diferenças significativas e uma importante trata do final do processo, ou seja, cooperar para quê? Apesar da base individual das duas o objetivo final é diferente, pois, enquanto uma pretende garantir os interesses comuns a outra se apropria da cooperação para garantir os interesses individuais.

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As diferenças contextuais entre os períodos, além da questão levantada sobre a participação não formal e a estrutura do coletivo, desde as Missões, permitem a compreensão de que existiu uma ruptura nas práticas de associação e cooperação na região. Tal constatação favorece a aceitação da hipótese de que as raízes da atual experiência de associação e cooperação não estão nas Missões porque as duas experiências não têm uma relação direta.

Para garantir essa constatação é necessário, entretanto, analisar também as relações entre cooperação e educação117 como mais um elemento das práticas de associação e

cooperação da atualidade, possibilitando uma comparação com aquelas anteriores.