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1.3 OS SETE POVOS DAS MISSÕES

1.3.2 Organização política e social dos Sete Povos

Durante toda a experiência missioneira dos Sete Povos, ou mesmo dos Trinta Povos, a organização social e política esteve submetida ao poder civil ou eclesiástico, numa área inserida no interior do império espanhol, sem ser alternativa a ele como escreve Kern (1982, p. 264). Por isso, antes de procurar um “modelo” para classificar a experiência missioneira, não se pode esquecer a perfeita integração da Companhia de Jesus com a Coroa espanhola.

Antes de tudo uma obra de circunstância, a organização política dos Trinta Povos é originária de uma efetiva adaptação da legislação e costumes espanhóis à cultura dos guaranis, bem como a uma situação de fronteira. É, portanto, o resultado de um processo histórico e não de modelos apriorísticos (KERN, 1982, p.263).

A organização política considerava os índios aptos para pagar tributos ao Tesouro Real como vassalos através da Companhia de Jesus, ou servir militarmente, quando

convocados pela Coroa54. Por isso, lembra Kern (1982, p.19), que a organização política das

Missões deve sempre ser entendida “dentro de uma sociedade política global espanhola”. Parte da estrutura social Guarani nas reduções, embora modificada, foi mantida. Segundo Kern (1982, p.40) “os jesuítas reconheceram as antigas prerrogativas dos Tubichás, deram-lhe o título de Don e chegaram mesmo a ligar, do ponto de vista jurídico, a propriedade da terra à instituição política do Caciquismo”. Em 1654 essa estrutura da Missão é mantida, mesmo sendo formalmente declarada “doutrina” segundo Carbonell de Masy (1992, p.187).

Los caciques son nobles declarados por el Rey, y tienen Don. Cada uno tiene treinta, cuarenta o más vasallos que suelen ir con el a las faenas públicas, prestándole obediencia y respeto; y le ayudan a hacer su casa, sementera, etc.; pero no tiene el vasallaje de tributo y servivio que se suele tener en la Europa al señor de vasallos. Ni por ser nobles se eximen de trabajar (CARBONELL DE MASY, 1992, p.201).

A organização política desses “mundos diferentes” se encontrou na figura do cacique (tubichá) e do jesuíta, uma vez que o pajé foi considerado “emissário do demônio”55

. Dentro das reduções o cabildo e o cacique executavam a maioria das funções administrativas. Os caciques, cooptados pelos missionários, com cargos importantes como capitão do exército ou membro do cabildo, mantinham sua liderança nativa.

Ambos, caciques e jesuítas, agiram através do Cabildo, a instituição hispânica governativa municipal. Este organismo era liderado pelo Corregedor, quase sempre um cacique de maior experiência e de plena confiança do Cura da Missão, que o assessorava com seu contínuo conselho (KERN, 1982, p.47).

Mesmo que diversas tarefas administrativas fossem realizadas por uma elite nativa a ação política colocava o jesuíta numa posição de grande autoridade56. A participação do

cabildo não garantia a maioridade ao povo e segundo Carbonell de Masy (1992, p.203) “para los guaraníes y para los Padres la Doctrina y el pueblo, su gobierno religioso y político, no estaban separados, por más que fuesen distintos dos ambitos de las funciones”. Esse “poder” superava o objetivo religioso, embora a difusão da religião cristã suplantasse os demais objetivos, colocando-os como subsidiários.

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Para as autoridades espanholas, a vitória de 1641 provou o acerto da medida tomada pelos jesuítas. As ações posteriores contra os índios nômades (Guaicuru, Yaró, Minuano, Charrua, etc), contra portugueses da Colônia de Sacramento, e mesmo contra os rebeldes de Assunção, consolidaram a decisão tomada, e as tropas guaranis passaram a ser regularmente utilizadas como tropas auxiliares pelos governadores locais (KERN, 1982, p.151).

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Conforme Kern (1982, p.102). A concepção de Kern permite entender que o Pajé era na verdade o grande adversário/inimigo dos padres que vinham substituí-lo. Isso era fundamental à conquista, pois a autoridade espiritual (Deus) deveria ficar do lado do conquistador, função atribuída ao jesuíta/padre!

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Padres e Caciques formam dois níveis de autoridade política às quais os indígenas estão submetidos. Esta autoridade não foi escolhida democraticamente. Os padres são impostos pela própria Companhia, os caciques recebem hereditariamente seus títulos e honras (KERN, 1982, p.232).

O missionário jesuíta, novo médico-feiticeiro, novo líder político colocado acima mesmo dos caciques, e Herói Civilizador que aporta uma tecnologia sofisticada e novas formas de sobrevivência material, adquirirá espontaneamente uma autoridade política muito grande dentro das Reduções (KERN, 1982, p.107).

A “autoridade” política do jesuíta foi exercida na medida em que o nativo “concordava” em participar da redução. Assim como indígena aceitava antes, por conta de suas crenças, a autoridade do pajé, também aceitava agora a autoridade do missionário, numa relação tênue entre consenso e coerção.

A liderança do jesuíta foi admitida em parte pelos guaranis porque ele dirige a transformação da sociedade comunitária, num rumo que obtém o consenso da maioria57.

Dessa forma, segundo Kern (1982, p.111) gradualmente são introduzidas “novas formas artísticas, novos rituais, uma economia mais produtiva e uma nova organização política”.

Na organização política dos Trinta Povos é importante lembrar sua situação espacial de fronteira entre impérios ibéricos e, portanto, sujeito à instabilidade. Segundo Kern (1982, p.149) o problema da fronteira tornou-se complexo no sul em dois momentos e marcam a intenção lusa de expandir seu território: primeiro foi a ataque dos bandeirantes na primeira metade do século XVII contido na batalha de M‟bororé e o segundo foi a partir da década de 80 na Colônia de Sacramento.

Pe. Ruiz de Montoya percebeu a falta que fez as armas de fogo, diante do iminente ataque bandeirante, quando teve que abandonar Loreto e Santo Inácio (1631), às margens do rio Paranapanema (SP) com 12.000 índios, numa das maiores migrações da região58. Dessa

forma Montoya lutou para formar o exército guarani com armas semelhantes aos portugueses. Isso, no entanto, somente foi autorizado com o fim da União Ibérica e, a partir de 1641, as Missões passaram a contar com um exército permanente, mesmo que as armas ficassem sob a guarda do jesuíta. Segundo Kern (1982, p.162) “localizadas na fronteira oriental dos domínios hispânicos, as Missões e seu exército desempenharam assim um papel de extrema importância na estratégia do deslocamento das frentes de expansão portuguesa e espanhola”.

Além disso, a disposição dos guaranis, mesmo portando uma cruz, segundo Kern (1982, p.207) era “obter garantias para manter a liberdade e escapar do genocídio e da escravidão, que era a promessa dos escomenderos espanhóis e dos bandeirantes lusos”. Diversas razões favoreciam nessa disposição guarani, pois dentro da Missão a organização social não descuidava inclusive da educação e até o hábito da leitura era difundido. Para

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Conforme Kern (1982, p.144).

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Lugon (1976, p.201) “alguns entregavam-se à leitura, isoladamente ou em família...”, numa situação incomum, quando comparado com o contexto colonial.

A escola era totalmente dirigida para a vida prática. [...] Por toda a parte havia duas séries completas de classes, respectivamente, para rapazes e meninas [...] A freqüência era obrigatória dos sete aos doze anos. [...] A escola desenvolvia, metodicamente, o gosto e os dotes das crianças para a composição, e declamação, o canto e o teatro (LUGON, 1976, p.212-13).

A educação era uma preocupação grande das Missões, mesmo que os jesuítas não tivessem o objetivo de transformar o indígena num típico intelectual do século XVII, conforme destaca Kern (1982, p.118), pois “jamais foram criados colégios nas Reduções. O ensino reduziu-se a algumas noções básicas de aritmética e a alfabetização, basicamente para a elite dirigente”.

A educação nas Missões não seguia exatamente as orientações do Rátio Studiorum. Um exemplo pode ser observado nas punições que previam castigos corporais. Nas Missões esse método não funcionava, e, segundo Nunes (2010, p.78) “o aprendizado dos grupos indígenas era solidário e cooperativo, muito distinto da educação européia, que era mais disciplinada, competitiva e punitiva”.

A educação, além do interesse religioso, servia para construir um ambiente em favor do bem comum. Para Lugon (1976, p.95) “os guaranis não eram tanto desviados do mal pelo medo de punições como atraídos para o bem pelo ambiente social, pelo exemplo de todos e pela emulação geral estimulada, incessantemente, ao serviço da comunidade”. Essa situação fazia com que jesuítas e Guaranis trabalhassem em função da comunidade. Ruiz de Montoya (1997, p.191) destaca esse caráter comunitário desenvolvido pela experiência missioneira: “passando de onze anos; já os muchachos têm a sua lavoura, em que com muita harmonia se ajudam uns aos outros. Entre eles não há compra nem venda, porque com muita liberalidade e desinteresse socorrem-se em suas necessidades”.

A conotação comunitária do trabalho e da propriedade é destacada por Christensen como uma das principais características das Missões. Na opinião dessa autora (2001, p.66) “os benefícios do trabalho eram repartidos igualitariamente entre todos e o trabalho tinha um objetivo comum. Dessa forma, quem trabalhasse nas estâncias ou nas oficinas, e assim por diante, tinha acesso aos bens produzidos na terra”.

A organização social, através dessa característica comunitária, favorecia a realização das práticas de cooperação que, não apenas foram mantidas, mas também fortalecidas. Segundo Lugon (1976, p.17) “a vida econômica e social aí se enriquecera e diferenciara

progressivamente, num ritmo surpreendente, sem que o princípio de comunidade se alterasse”. Havia um grande incentivo para essas práticas coletivas e ninguém era forçado a ser egoísta, pois o interesse pessoal coincidia normalmente com o bem da comunidade59

. O desenvolvimento missioneiro pode ser atribuído a um conjunto de fatores, e com certeza, a cooperação está entre os principais, assimilada em grande medida das práticas já existentes dos povos nativos.

Os objetivos da Coroa (ocupar os espaços vazios) e os dos padres (ganhar os guaranis para o cristianismo), não seriam realizáveis através dos processos colonialistas habituais. Havia que assimilar o arraigado coletivismo dos guaranis; a menos disso, o projeto seria inexeqüível (FREITAS, 1982, p.35).

As Missões aproveitaram muitas práticas de cooperação nativa, de modo que o trabalho resultava uma produção de excedentes numa experiência econômica bem sucedida. Segundo Freitas (1982, p.50) “em quase todas as atividades, prevalecia o processo de cooperação complexa, principalmente na agricultura”. Para Lugon (1976, p.141), “uma iniciativa só era lançada em função das necessidades e vantagens de toda a comunidade”.

A escrita do padre Antônio Sepp, como elemento decisivo na construção de São João Batista, se revela útil para a compreensão desse caráter comunitário das Missões.