• Nenhum resultado encontrado

A paixão segundo G.H.: a alegria da alteridade

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "A paixão segundo G.H.: a alegria da alteridade"

Copied!
122
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

ESTUDOS EM LITERATURA COMPARADA

ASLAN BRUNO DA SILVA

A PAIXÃO SEGUNDO G.H.: A ALEGRIA DA ALTERIDADE

NATAL 2018

(2)

ASLAN BRUNO DA SILVA

A PAIXÃO SEGUNDO G.H.: A ALEGRIA DA ALTERIDADE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como um dos requisitos para obtenção de título de Mestre em Estudos da Linguagem, área de concentração Estudos em Literatura Comparada, sob a orientação do Prof. Dr. Samuel Anderson de Oliveira Lima.

Natal/ RN 2018

(3)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBICatalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA

Silva, Aslan Bruno da.

A paixão segundo G.H. : a alegria da alteridade / Aslan Bruno da Silva. - Natal, 2018.

120f.

Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem.

Orientador: Prof. Dr. Samuel Anderson de Oliveira Lima.

1. A paixão segundo G.H. - Literatura - Dissertação. 2. Clarice Lispector - Dissertação. 3. Sartre - Dissertação. 4. Alteridade - Dissertação. I. Lima, Samuel Anderson de Oliveira. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 81:141.32 Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710

(4)

A PAIXÃO SEGUNDO G.H.: A ALEGRIA DA ALTERIDADE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como um dos requisitos para obtenção de título de Mestre em Estudos da Linguagem, área de concentração Estudos em Literatura Comparada, sob a orientação do Prof. Dr. Samuel Anderson de Oliveira Lima.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________ Prof. Dr. Samuel Anderson de Oliveira Lima

Orientador

________________________________________ Profa. Dra. Marta Aparecida Garcia Gonçalves

UFRN – examinadora interna

________________________________________ Prof. Dr. Wellington Medeiros de Araújo

(5)

A minha esposa e a minha filha, que me alegrou com sua vinda ao mundo ainda quando escrevia este trabalho. Juntas, ambas me fazem ser o homem mais feliz do mundo.

A minha mãe, que sempre acreditou em mim e me forneceu as bases para me constituir como um ser humano mais ético, honesto e consciente do papel de cidadão.

(6)

AGRADECIMENTOS

A Deus, pelo dom da vida e pelo destemor da busca pela inteligência, que me ajudou a encarar as dificuldades próprias da realização desta dissertação.

A minha mãe, que, apesar de todas as dificuldades, não poupou esforços em oferecer uma educação de qualidade e por sempre se pôr à disposição de me cobrar o melhor de mim.

A minha esposa, por me encher de vida e me fornecer a alegria de seguir em frente mesmo quando as dificuldades apareceram. Por todo o amor me doado gratuitamente, eternamente estarei agradecido.

Ao meu orientador, Dr. Samuel Anderson, que me acompanhou com orientações, ensinamentos, bibliografias, indicações de alguns livros e que nunca se poupou em me ajudar em nenhum momento em que foi solicitado. Pela confiança em meu trabalho, meu muito obrigado.

A todos os colegas da graduação e da pós, que acreditaram em mim e vibraram com as minhas conquistas no mundo acadêmico.

As minhas professoras e meus professores do ensino básico, em especial a Tia Rosilma com quem soletrei minhas primeiras letras e com quem comecei a viajar no mundo da leitura. Com vocês adquiri bases suficientes para chegar até aqui. Os primeiros rabiscos logo se transformaram nas primeiras letras daquilo que agora tomam forma nesta dissertação. A todos vocês, meu eterno obrigado.

Não poderia deixar de agradecer ao eterno Bruxo do Cosme Velho, por ter me apresentado o mundo da literatura. Com suas histórias, seus personagens, seu sarcasmo, sua ironia, seu humor, sua criticidade, sua poesia aprendi a viajar no magnífico e fantástico mundo da leitura. Machado de Assis, você sempre será minha referência não só na literatura, mas também no mundo da intelectualidade em geral.

(7)

Aceito que eu existo, aceito que os outros existam porque sem eles eu morreria, aceito a possibilidade do grande Outro existir apesar de eu ter rezado pelo mínimo e não me ter sido dado. (...) Sinto que viver é inevitável. (...) Ser às vezes sangra. Mas não há como não sangrar pois é no sangue que sinto a primavera (LISPECTOR, 1999, p.141).

(8)

RESUMO

Esta pesquisa tem como objetivo analisar a construção do Eu que se dá na obra de Clarice Lispector, mais precisamente no romance A paixão segundo G.H.. A fragmentação do Eu é uma marca do indivíduo da modernidade, o que faz com que tenhamos cada vez mais a necessidade de nos conhecermos e tomarmos consciência do mundo que nos rodeia, para assim atribuirmos um sentido para a existência. O que vemos nesse romance é a necessidade que G.H. apresenta de encontrar-se consigo mesma; a mesma necessidade apontada por sua autora. Mas esse processo de construção do Eu só se estabelece por meio do olhar do Outro, que é quem nos observa por completo em todos os aspectos. Para estabelecer essa relação entre literatura e alteridade iremos recorrer às ideias de Jean-Paul Sartre estabelecidas em seu tratado fenomenológico O ser e o Nada: Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Por meio de um Outro, muitas vezes inusitado e estranho, G.H. estabelece uma compreensão de si, cujo processo de construção da identidade apresenta-se como sendo tumultuado, desgastante, violento, desolador e inquietante. Abordaremos as ideias de Benedito Nunes, quem primeiro atribuiu a característica de existencialista à obra de Clarice. A partir do que disse esse estudioso faremos uma aproximação entre a literatura e a filosofia. Nesse processo de escrita, que é escritura de si, a narrativa de G.H. é também a narrativa da própria autora, Clarice, que por meio de sua personagem, vive a alegria atormentada da descoberta da existência. Elas descobrem juntas a alegria de viver, ainda que essa seja uma alegria “difícil".

(9)

RESUMEN

Esta investigación tiene como objetivo analizar la construcción del Yo que se da en la obra de Clarice Lispector, más precisamente en la novela “A paixão segundo G.H.” La fragmentación del Yo es una marca del individuo de la modernidad, lo que hace que tengamos cada vez más necesidad de conocernos y tomar conciencia del mundo que nos rodea, para así atribuir un sentido a la existencia. Lo que vemos en esta novela es la necesidad de G.H. de encontrarse consigo misma, una necesidad también presentada por su autora. Pero ese proceso de construcción del Yo sólo se establece por medio de la mirada del Otro, que es quien se nos observa por completo en todos los aspectos. Para establecer esa relación entre literatura y alteridad recurriremos a las ideas de Jean-Paul Sartre establecidas en su tratado fenomenológico “El ser y la Nada: Ensayo de Ontología Fenomenológica”. A través de un Otro, a menudo inusitado y extraño, G.H. establece una comprensión de sí, cuyo proceso de construcción de la identidad se presenta como tumultuoso, desgastante, violento, desolador e inquietante. Discutiremos las ideas de Benedito Nunes, aquél que primero trató como existencial la obra de Clarice. Haremos, por medio de lo que enseña ese experto, un acercamiento entre la literatura y la filosofía. Discutiremos en este proceso de escritura de si, la narración de G.H. que es también la narración de la propia autora, Clarice, quien, por medio de su personaje, vive la alegría atormentada de la existencia. Ellas descubren juntas la aleria de vivir, aunque esa sea una alegría “difícil”.

(10)

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 11

2 CLARICE E A CRÍTICA ... 25

2.1 ANTONIO CANDIDO: “UM FUTURO PROMISSOR” PARA CLARICE LISPECTOR ... 27

2.2. SÉRGIO MILLIET: “A ALEGRIA DA DESCOBERTA” ... 30

2.3. MASSAUD MOISÉS: “A ILUMINAÇÃO INSTANTÂNEA DE UM FAROL NAS TREVAS” ... 37

2.4. BENEDITO NUNES: “LITERATURA EXISTENCIAL” ... 41

2.5. OLGA DE SÁ: A ESCRITA COMO MANIFESTAÇÃO EPIFÂNICA ... 58

3 FILOSOFIA E LITERATURA: A LINGUAGEM EXPERIMENTANDO A EXISTÊNCIA ... 61

3.1 FILOSOFIA E LITERATURA: DUAS FACES DE UMA MESMA MOEDA ... 61

3.2 ALGUNS CONCEITOS FILOSÓFICOS IMPORTANTES ... 65

4 CLARICE E OS OUTROS ... 68

4.1 JANAIR: O OUTRO SOCIAL ... 69

4.2. A BARATA: O OUTRO ANIMAL ... 77

4.2.1 G.H. e a barata: uma literatura animal-humanizadora ... 81

4.3 O LEITOR: A TESTEMUNHA DO RELATO; A TERCEIRA PERNA DE G.H.; A ALMA JÁ FORMADA DA ALTERIDADE ... 89

4.3.1 A ressureição do autor: ressurgimento pela alteridade entre autor e leitor ... 90

4.4 LITERATURA: LINGUAGEM DE ALTERIDADE ... 101

4.4.1 A linguagem: uma atitude para com o Outro ... 103

4.4.2 Questão de estilo: o império do silêncio ... 110

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 114

(11)

11

1 INTRODUÇÃO

“Delicada e humana”, “boa”, “simples e sem mistérios”, “intocável”, “belíssima”, “sedutoramente atraente”, “antissocial”, “esquisita”, “complicada”, “difícil”, “mística”, “bruxa”, “distante”, “vaidosa”, “mãe dedicada”, “sofrida”, “diferente”, “aventura espiritual”, “personalidade lisérgica” (GOTLIB, 2013)1

. Esses são os adjetivos com os quais seus amigos mais próximos tentam definir a personalidade de Clarice Lispector (doravante, CL). Mas como definir aquela que se apresenta com uma identidade tão mutável? Aquela que se vê com “várias caras. Uma é quase bonita, outra é quase feia. Sou o quê? Um quase tudo” (LISPECTOR, 2008, p. 15). Clarice é um enigma para si mesma. Um “quase”, uma estranha nisso que chamamos vida.

Este trabalho não objetiva traçar um perfil biográfico dessa personalidade tão misteriosa e responsável pela introdução de um novo estilo nas letras do Brasil.2 No entanto, como vai ficar claro no decorrer desta dissertação, entender um pouco da literatura de CL requer que se faça uma relação entre autor e obra, uma vez que a condição de existir, nessa autora apresenta-se, também, inerente a sua produção literária. Ainda que sua obra não se traduza em simples autobiografia, mas sim em literatura de vida, literatura de existência. Aqui, vida e literatura se traduzem em forma que desvenda os mistérios da existência. É o que podemos ver ao se analisar seus contos, suas crônicas e seus romances.

O primeiro autor - conforme nos apresenta Olga de Sá (1979) - a relacionar a literatura de CL com a filosofia existencialista foi Benedito Nunes. Precisamente no ensaio A existência absurda (NUNES, 2009b, p.119), o autor afirma que a autora compõe personagens com o Eu à mostra, isso é decorrente das constantes ameaças e provocações sofridas por eles. Com o Eu ameaçado, acabamos encontrando a “existência pura” que jorra nas suas composições. Nunes ainda deixa

1 Esses adjetivos foram retirados de depoimentos de amigos, funcionários, secretárias e parentes de Clarice Lispector, contidos no primeiro capítulo intitulado “Perfis” da biografia da autora, organizada por Nádia Battella Gotlib e publicada em 1995 pela Editora Ática. Hoje esse trabalho já se encontra na 7ª edição pela Editora da Universidade de São Paulo.

2

Inúmeros autores são unânimes em apresentar o estilo de Clarice como inédito na literatura brasileira do início do século XX. Segundo esses autores, a geração de 1930, com sua literatura regionalista, encontrava-se saturada, impondo, assim, a necessidade de uma nova forma literária, o que foi alcançado com a literatura clariceana. Dentre esses estudiosos, podemos citar: Antonio Candido, Olga de Sá, Benedito Nunes, Sérgio Milliet. Os textos estão indicados nas referências ao final desta dissertação e estão citados e comentados no Capítulo 1 desta dissertação, quando farei um apanhado crítico da obra da autora.

(12)

12

claro que o que move os personagens nas histórias clariceanas é justamente o “sentimento da existência”, responsável por desenvolver todas as demais sensações sentidas por essas personagens. Mais adiante, no próximo capítulo, abordaremos um pouco mais essa questão trazida pelo filósofo e ensaísta, quando faremos um levantamento crítico da obra clariceana.

Esse e outros trabalhos que tratam da relação entre as obras de Clarice e a filosofia do Existencialismo serão de muita utilidade para esta nossa dissertação, uma vez que será utilizada essa teoria filosófica na construção de uma análise do romance A paixão segundo G.H., publicado em 1964, pela Editora do Autor.

Durante todo esse estudo que se traçará aqui sobre esse romance, levaremos este fato em consideração: CL usa sua vida como mote para sua produção literária. É o que se pode identificar a partir das várias “pegadas” deixadas em seus textos, quer seja em seus romances, quer nos seus contos, passando ainda pelas suas crônicas, onde Lispector se sente mais à vontade para se mostrar a seus leitores e a si mesma.

Essa marca de estilo é única e complexa na autora porque ela não faz simplesmente relato do que viveu, mas sente, experimenta, revivifica, ressignifica, compreende o profundo mistério de sua existência. Como disse Antonio Candido: “Clarice escrevia simplesmente. Como quem vive. Por isso todas as vezes que foi tentada a deixar de escrever, não conseguiu. Dizia: „Não tenho vocação para o suicídio‟” (CANDIDO, 1984, p. XXII). E ao propor essa experimentação individual, a autora acaba fornecendo bases para o leitor compreender sua própria existência. Esse é o jogo literário criado por essa autora tão singular da literatura brasileira. Um jogo existencial da literatura.

Para a compreensão deste trabalho que ora se inicia, faz-se necessário entender a relação entre autora e sua obra, para compreendermos o que fazia ela da literatura (e por sua vez o que a literatura lhe causou). Para iniciar, serão explicitadas essas “pegadas”, para verificarmos, por meio de exemplos práticos a presença do ser chamado Clarice Lispector em sua arte literária.

CL já demonstrava preocupação com essa questão de se mostrar nas suas crônicas. Afirma ter relutado muito antes de aceitar esse ofício, o que só se concretizou por imposições da necessidade financeira pela qual passava na época. A preocupação de ter sua identidade revelada nas crônicas, a levou a refletir sobre

(13)

13

essa questão várias vezes no início de sua carreira como jornalista: “assinando, porém, fico automaticamente mais pessoal. E sinto-me um pouco como se estivesse vendendo minha alma.” (LISPECTOR,1999a, p.29). Seria um defeito falar de si por meio da literatura? Pura modéstia. O falar-se é a grande questão que move a produção literária de CL.

Não será demais afirmamos que esse medo advém da crítica da época. CL, no início de sua carreira como escritora, foi constantemente acusada de cometer alguns defeitos em sua produção literária. Não queria, portanto, ser vista como autora autobiográfica. Seria um argumento muito fácil de ser disseminado e bastante difícil de ser refutado, diante de análises superficiais de seus escritos.

Se recorrermos às suas primeiras crônicas, veremos enfaticamente a sua insistência nesse ponto. Mas por que, mesmo sabendo que os críticos enxergariam como defeito, CL sempre se apresentava ao seu leitor por meio de sua escrita? Simplesmente porque falar de si, traduzir-se a si mesma, escrever-se, falar-se eram consequências inevitáveis do seu ato de escrever. Escrita e vida andam nesse estilo literário intimamente ligadas, como os dois lados de uma moeda: um inexiste sem o outro.

A relação de Clarice com a escrita é muito forte, começou muito cedo e se fortaleceu graças a uma cultura tradicional preservada pelo pai. Pinkas, apesar de muito pobre, dedicava-se à leitura, principalmente de periódicos: recebia jornais de New York e possuía um gosto muito especial por música. A mãe escrevia poemas e diários, o que Clarice só descobriu depois de muito tempo por ocasião do casamento do seu filho, Paulo. Suas irmãs Tania e Elsa também escreviam livros técnicos e literários, respectivamente. Elisa escreveu romances, contos e uma autobiografia. De todas as produções de sua irmã a mais aclamada é No exílio (1948), obra na qual ela conta toda a história de luta, sofrimento e “salvação” de sua família. Como vemos, Lispector não foi a única de seu clã a utilizar a linguagem de maneira artística..

Clarice, desde muito cedo, foi fissurada por histórias. Fabulava antes mesmo de saber ler e escrever: “Bom, antes de ler e escrever eu já fabulava. Inclusive eu inventei com uma amiga minha meio passiva uma história que não acabava mais. Nunca. Era o meu ideal que uma história nunca acabasse.” (LISPECTOR, Entrevista, MIS-RJ, 1976). Por que uma história que nunca se acaba? Porque a

(14)

14

história preferida dessa autora é a história da vida, e vida nunca se acaba. Isso demonstra a profundidade da relação entre ela e a literatura: vida e escrita se unem construindo um ser em constante transformação, um ser que aprende com a dinâmica da escrita a difícil arte de viver.

Transformação que só é possível quando se possui conhecimento de si, nesse caso conhecimento que só se adquire por meio da revelação da intimidade conseguida na escrita literária. Assim está CL, revelada por completo, com sua intimidade à mostra, ainda que essa não seja uma intimidade supérflua de segredos que contamos aos mais próximos com medo de que alguém os descubra, por exemplo. Por mais que tente disfarça, é nítido que seu esforço incorre em um grande fracasso, o que se pode perceber em algumas tentativas, nas quais a autora, certamente por medo de ver seus textos acusados de literatura fraca, biográfica, tenta camuflar sua presença.

Em A hora da Estrela (1998b), o narrador é masculino e dissociado da personagem. Em A maçã no escuro (1961), há um personagem masculino, Martim. Em A paixão segundo G.H. (2009a), a personagem principal assina com duas letras, assim como CL, na dedicatória do romance. Enfim, várias são as tentativas de não se mostrar no texto que produz. No entanto, o leitor que se debruçar na tarefa de leitura de tais textos logo verá que naquelas linhas o que existem, na verdade, são expressões do mais íntimo de uma autora que desde a primeira palavra escrita tenta transformar, por meio da literatura, a vida em existência pura.

É importante dizer que os momentos de introspecção da narradora no meio da narração não se tratam de digressões. Não acontece “o momento” em que CL se apresenta no texto narrado, desfocando a atenção do leitor para algo que destoa do conteúdo que estrutura a história narrada, porque o que se narra são experiências vividas, reais e não, simplesmente, história ficcional. Desde a primeira palavra escrita, a vida da autora é que está sendo escrita e quem a escreve acaba existindo também sob forma de literatura. O que acontece é que, conforme avança na narração, a autora acaba perdendo o controle da situação e a escrita de si acontece, por mais que se tente disfarçar, como vimos anteriormente, tornando inevitável a autorrevelação na história que está sendo composta.

Essa presença se dá porque Clarice não só produziu literatura, simplesmente. O processo de escrita da autora é bem mais complexo do que os autores que

(15)

15

apenas transformam o mundo real em ficção. Ao contrário desses, que inventam um universo paralelo com suas histórias, CL não inventa nada, ela sente (esse processo é sinestésico) a vida por meio de seus escritos, que mais do que história, são “pulsações” de vida, um modo de tornar mais tolerável a vida. Escrever era experimentar a existência, o momento em que a vida se dá. Como ela mesma falou em uma célebre entrevista, escrever era viver, pois “quando não escrevo, estou morta”. Mas aqui é preciso entender o significado dessa palavra “viver”. Não se está utilizando de forma romantizada. Viver era mesmo escrever, e escrever era viver, um modo distinto de encontrar o sentido da vida, o momento no qual a existência acontece. Com a escrita, a autora significa ao máximo a existência do ser chamado Clarice Lispector. Por isso, ao tratarmos da literatura dela não podemos deixar de lado a sua existência, seus momentos vividos, suas experiências sentidas, sua vida. Ela mesma deixa claro na crônica Outra Carta (LISPECTOR, 1999a, p.79): “quanto a eu me delatar, realmente isso é fatal, não digo nas colunas3

, mas nos romances. Estes não são autobiográficos nem de longe, mas fico depois sabendo por quem os lê que eu me delatei.” Nádia Gotlib, na biografia que produziu sobre Lispector, acena para esta questão: “ficção e autobiografia fundem-se no imponderável. Uma imita a outra.” (GOTLIB, 2013, p.411). Escrever para CL sem sombra de dúvida era muito mais importante do que até mesmo viver, pois, a vida se dava e se concretizava por meio da expressão artística da linguagem. É o que afirma a pesquisadora Berta Waldman:

há autores em relação aos quais os dados da vida entremeiam com a obra, compondo um único objeto. Para Clarice Lispector, no entanto, o fato importante, o acontecimento maior foi certamente o texto. Nele e a partir dele é possível levantar não os seus dias, mas o seu modo de viver os dias. E de morrer. (WALDMAN,1992, p. 14)

O romance A paixão segundo G.H. foi escrito em 1964. Sobre esse período da escrita do livro a própria autora afirma: “é curioso, porque eu estava na pior das situações, tanto sentimental como de família, tudo complicado, e escrevi A paixão..., que não tem nada a ver com isso.” (LISPECTOR, Entrevista, MIS-RJ, 1976). Mais uma tentativa de se desvincular do texto produzido, mas essa é, como as outras, uma tentativa inútil. Ao se aprofundar um pouco mais na leitura da narrativa ver-se-á que a autora se faz presente como criadora da história que temos em mãos, história

(16)

16

na qual o autor objetiva encontrar o leitor para, junto com ele, compreender a experiência transformadora que aconteceu num passado recente.

O romance já começa mostrando-se diferente pela dedicatória de CL. Ela, ao contrário da normalidade literária da época, resolve dedicar seu romance não a alguém em específico, com quem teve fortes ligações. Escolhe, pois, dedicar a um leitor:

A POSSÍVEIS LEITORES

Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar. Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém. A mim, por exemplo, o personagem G.H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria. C.L. (LISPECTOR,2009a,).

Para muitos, essa dedicatória é apenas um detalhe. É mais que isso, é um forte indício de que o que Clarice procura com a escrita desse romance é construir uma alteridade com o leitor, um alguém com quem, por meio da linguagem, viaje com ela na experiência pela qual passou no dia anterior. E não é simplesmente porque ela necessite de uma companhia ou deseje ter o leitor ao seu lado, já que está escrevendo um livro. A presença do leitor em seus escritos é a necessidade que ela tem de encontrar o sentido de ser na sua vida, não nos esqueçamos de que ela está produzindo literatura de vida, está produzindo a sua própria vida com a escrita da literatura, o que só é possível por meio da visão que o Outro apresenta de si.

Antonio Candido (1970) parece que estava certo quando prenunciava o surgimento de um estilo inédito, como, desde Machado, não se via no cenário literário brasileiro, naquela época (época da publicação do romance de estreia de Clarice Lispector, Perto do coração selvagem, 1944). Parece-nos que a autora apropria-se do estilo inovador com o qual Machado de Assis inicia seu célebre romance, Memórias póstumas de Brás Cubas. Se Machado de Assis inovou a literatura brasileira no século XIX, Clarice propõe um novo caminho para a arte literária brasileira no século XX. Parece um pouco ousado atribuirmos a característica de inovação a Clarice em um período no qual existiram autores tão consagrados, como João Guimarães Rosa, Rachel de Queiróz, entre outros. No entanto, sem diminuir a importância e incalculável relevância desses outros autores

(17)

17

no projeto do Modernismo literário brasileiro, acreditamos que a ousadia de Mário de Andrade e Oswald de Andrade ecoa nos escritos de Clarice, sobretudo no que diz respeito à utilização do plano da expressão. Esses três autores usaram a língua até as últimas possibilidades de significação e junto com ela (a língua), Clarice chegou ao cume da montanha da representatividade linguística da mente humana. Dentre todas, essa é a grande contribuição dessa autora, que sem dúvidas, apresentou à literatura brasileira um novo estilo de escritura.

A inovação de “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas” (MACHADO DE ASSIS, 2010) ressurge em Clarice quando do seu apelo para que seu livro não seja lido por qualquer pessoa. Em uma dedicatória que mais parece um apelo, a autora dedica seu romance a “pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproximação do que quer que seja, se faz gradual e penosamente (...). Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém” (LISPECTOR, 2009a, dedicatória). Enfim, a autora parece definir o perfil do público que almeja para o seu romance.

Estaria, com essa dedicatória, a autora em um ataque de megalomania? Estaria ela, prepotentemente, escolhendo seu público? Não. Prepotência e megalomania não são, nem de longe, características da escrita de Clarice. Então, por que, sabendo ela que a obra de arte não pertence ao criador e que, depois de concluída é patrimônio de todos e quantos a desejem, Clarice seleciona seus leitores?

Não se trata de uma seleção. Trata-se de um aviso. A autora, nessa dedicatória, alerta seus leitores que quem decidir ler o que se segue precisa estar livre de preconceitos. G.H. precisa de uma “mão” segura com quem caminhará na magnífica experiência que está por se iniciar.

Além disso, não é qualquer pessoa que procura um livro da autora para ler. Isso porque, de maneira equivocada, disseminou-se a ideia de hermetismo como marca registrada de sua escrita, o que está mudando graças ao interesse, sobretudo, de inúmeros pesquisadores que tentam desconstruir com seus trabalhos essamistificação. De qualquer forma acreditamos que a dedicatória do romance não é uma seleção da própria autora, mas sim um desejo de que o leitor comece a

(18)

18

mudar sua essência, pois ao terminar a história que possui em suas mãos, ele não mais será o mesmo.

A paixão segundo G.H., único romance de CL escrito em 1ª pessoa, trata-se da história de uma mulher de classe média alta identificada apenas com as iniciais G.H. Ela acorda, um dia depois de ter demitido a empregada e vai tomar café. Na mesa, entre um gole e outro de café e algumas bolinhas feitas com o miolo de pão que acompanha a bebida, essa personagem decide ir ao quarto de sua funcionária, situado no final do apartamento.

Durante o percurso até chegar ao local, G.H. vive um verdadeiro calvário interior, inicia-se aí uma perturbadora desconstrução do eu. Ela espera adentrar um local sujo, desarrumado, sem vida, mas para sua surpresa encontra um ambiente impecavelmente limpo, arejado, iluminado e, por isso, desconcertante. Tamanha organização causa em G.H. uma tormenta profunda, uma verdadeira desorganização interior, “meu coração embranqueceu, como cabelos embrutecem” (LISPECTOR, 2009a, p.46). A sensação estranha aumenta quando a personagem se depara com um desenho, uma inscrição, que mais se parece com uma pintura rupestre. Trata-se de três seres: dois humanos, um com formato de homem, outro com formato de mulher, os dois acompanhados de um animal, um cão. Tal desenho fora feito pela empregada, Janair.

O único elemento destoante da organização implacável que configura o quarto surge de um armário vazio. É uma barata, um animal nojento, sujo, com odor forte e característico, um inseto ancestral que causa em G.H. repulsa, medo, nojo, asco, tormenta:

De encontro ao rosto que eu pusera dentro da abertura, bem próximo de meus olhos, na meia escuridão, movera-se a barata grossa. Meu grito foi tão abafado que só pelo silêncio contrastante percebi que não havia gritado. O grito ficara me batendo dentro do peito. (LISPECTOR, 2009a, p.46)

Os sentimentos em CL são complexos e paradoxais. Ao mesmo tempo em que a barata causa repulsa, desperta na narradora também uma atração fatal. Ao descobrir-se diante do inseto, depois de passado o momento do impacto do primeiro contato, ela se vê atraída pela maravilha que é o animal, cuja ancestralidade remonta a tempos anteriores ao surgimento do homem na terra, ou seja, “quando o mundo era quase nu elas já o cobriam vagarosamente” (LISPECTOR, 2009a, p.47).

(19)

19

É a barata a responsável pela empreitada de G.H. de viajar em seu próprio interior. O inseto é a via de acesso ao mundo enigmático que é a existência humana. Essa é outra face da literatura de CL, quando os humanos se animalizam e se igualam à condição inumana desses seres.

A paixão segundo G.H. é um livro de descobertas. A principal delas é sobre o ser: “Como é que se explica que o meu maior medo seja exatamente: a ser? (LISPECTOR, 2009a, p.11). Descobrir o que se é e também encontrar o grande mistério que é a vida, o que é existir, como se dá a existência: “como é que se explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o que for sendo?” (LISPECTOR, 2009a, p.11). O que sou? é a grande questão que move CL a produzir literatura, pois por meio da linguagem ela consegue se mostrar a si mesma e com isso encontrar respostas para suas indagações. Esse processo está inteiramente presente na constituição do romance que se está analisando aqui. Aliás, A paixão segundo G.H. parece ser um manual de bordo de uma viagem inesquecível ao interior humano. Ao lê-lo, seus leitores estarão iniciando uma autodescoberta por meio do processo de descobrimento de si mesmo vivenciado por uma personagem que está, durante toda a narrativa tentando descobrir o que é.

Descobrir o que se é só é possível por meio do Outro, cujo papel fundamental é o de “explicar” ao eu o significado de ser. Só se consegue descobrir por inteiro o que se é com o auxílio do Outro, pois é ele quem me vê por completo, somente o Outro pode me fazer compreender com exatidão o que é isso que se chama “eu”. O romance do qual se propõe uma leitura já é desde o início, portanto, um processo de alteridade4. Como podemos perceber já na dedicatória, onde há uma delimitação de uma espécie de leitor, onde a autora idealiza um outro para satisfazer seu desejo de ser.

Somente o Outro é capaz de me ver por completo; somente ele pode me ver pelas costas e mais, somente o Outro pode ver a minha face, que é a minha identidade. Ou seja, é por meio da leitura que o Outro faz de mim que tomo consciência plena do que sou e de qual a minha essência na existência. O eu só é em função do Outro, portanto.

4

O conceito de alteridade será deixado claro durante a leitura deste trabalho. No entanto, no Capítulo 2, apresenta-se o conceito filosófico do termo Alteridade segundo o Dicionário filosófico de André Comte-Sponville.

(20)

20

Será analisada a existência (o existencialismo) em CL e isso implica pelo menos duas atitudes: analisar como se dá a presença da autora em seu escrito, como se verá de modo mais detalhado no capítulo quatro deste trabalho. Depois, é necessário entender que a resposta para a pergunta “O que sou?”, que se desdobra, por sua vez em outra indagação: “O que é ser?, ou seja, o que significa existir?, necessita do Outro para ser construída.

Para o auxílio nessa análise do processo de alteridade em CL, utilizar-se-á a teoria existencialista de Sartre, que afirma, em O ser e o nada: “o Outro é o mediador indispensável entre mim e mim mesmo: sinto vergonha de mim tal como apareço ao Outro.” (SARTRE, 2015a, p.290).

Sartre apresenta essa relação eu-Outro como uma relação de objetos: “e, pela aparição mesmo do Outro, estou em condições de formular sobre mim um juízo sobre um objeto, pois é como objeto que apareço ao Outro.” (SARTRE, 2015a, p.250). Isso não quer dizer, como deixa claro o próprio autor, que essa relação se dá em espelhamento, ou seja, o eu não se enxerga no Outro como se estivesse, para usar o exemplo do próprio filósofo, diante de uma fotografia na qual eu não estivesse do meu agrado.

Para que a alteridade aconteça, para Sartre, é necessário que o eu reconheça que é como o Outro o vê. Esse reconhecimento causará naquele um entendimento do que é. O que acontece é que o eu não consegue colocar-se na função de objeto para se ver a si mesmo, fazendo-se, portanto, necessário tornar-se objeto para o Outro que lhe dará um retorno do que viu. A certeza do que se é acontecerá com a apropriação e reconhecimento do que o Outro viu por parte do eu, um processo de reconhecimento que se dá por meio da vergonha, causada pela visão estabelecida nessa relação.

Mas isso não significa, porém, a aceitação passiva da ideia de si, pelo eu, do que o Outro viu. É possível que haja conflito nessa relação. E sempre há. O eu pode não aceitar como verdade o que o Outro diz dele. Mas como saber se o que o Outro diz de mim é verdade? Pode acontecer de o eu não aceitar? Como o eu pode saber que existe outra visão de si que não seja a do Outro? A resposta a essas indagações é a concretização de um conflito ocasionado pela leitura feita de mim que pode não agradar. Em CL, o eu, passivamente, aceita ou, para melhor

(21)

21

utilizarmos o termo existencialista, o eu se apreende no Outro. Porém, o que há é um estranhamento do Outro que carrega do eu uma visão.

A náusea sentida não é na visão que o Outro expõe do eu, mas sim em quem é esse Outro. Causa nojo, por exemplo, que o eu seja traduzido a partir de informações trazidas por uma barata. A hostilidade toma conta desse momento: “a hostilidade me tomara. É mais do que não gostar de baratas: eu não as quero. Além de que são a miniatura de um animal enorme. A hostilidade crescia.” (LISPECTOR, 2009a, p. 49)

Não há controle sobre o Outro. Qualquer um é livre para me ver e não há como o eu impedir o Outro de o ver, simplesmente porque não existem meios a serem utilizados para o eu não existir diante do Outro, ou seja, diante do outro nunca deixarei de ser olhado. Consequentemente, serei obrigado a sempre me reconhecer na visão construída de mim, mesmo quando fingem que não me veem. Não há, portanto, como se ver livre da visão do Outro. G.H. tentou se livrar desse processo quando estava no quarto e se deparou com a barata: “não, eu não arrumaria nada – se havia baratas não. A nova empregada que dedicasse seu primeiro dia de serviço àquele escrínio empoeirado e vazio.” (LISPECTOR, 2009a, p.48), o que não ocorreu dada a força de atração que o outro já impusera sobre ela.

O quarto, metáfora para o encarceramento provocado no eu com a visão do Outro, se já não pertencia a G.H., agora (no encontro da personagem com a barata) é que não pertence mesmo. Esse ambiente tornou-se o invólucro da identidade do eu, nesta bolha existem o eu e o Outro, que se torna uma parte do eu por construir uma leitura dele. Não há mais como fugir desse processo: “Eles [Janair e a barata] me impediam de sair e apenas com este modo simples: deixavam-me inteiramente livre, pois sabiam que eu já não sairia mais sem tropeçar e cair” (LISPECTOR, 2009a, p.48). G.H sentia medo, o medo de cair e chegar ao chão e se igualar à posição da barata.

A relação do eu com o Outro irá permear toda a narrativa de G.H. Toda ela será o relato da construção/descoberta do eu a partir do olhar do Outro. Essa relação constitui-se do ponto chave deste trabalho. Entender quais são esses Outros e como eles se constituem, nessa multiplicidade e sua relação com o Eu será o objetivo desta dissertação. Propõe-se o seguinte. A construção da identidade de autora de Clarice Lispector se dá, em A paixão segundo G.H., por um processo de

(22)

22

alteridade constituído de quatro Outros; a linguagem, por meio da qual o eu se torna o objeto e assim se deixa ver por si mesmo; o leitor, que constitui o ser para quem a autora “se fala” e que a acompanha na incrível descoberta pela qual passou e é também o ser que confirma a identidade de autora de CL, afinal um autor escreve para alguém o ler; a barata, ser responsável por despertar a náusea desencadeadora do processo epifânico5 gerador da descoberta do eu; e a literatura propriamente dita, a arte de utilizar a linguagem para refletir a vida.

Escrever é para Lispector conhecer a essência humana e descobrir a arquitetura interna do ser humano, necessidade que a motivou em todas as suas produções. Esse conhecer-se a si, não se faz, reiteramos, sem a presença do Outro. Não há como construir uma análise verdadeira do processo de alteridade presente nos escritos dela se não se analisar a presença do Outro nas linhas que os compõem. Escrever, para ela, era uma arte, mas estar na presença do outro era uma necessidade quase como matar a sede, pois a busca de si é constante.

Assim é que, leitor, linguagem, barata (que representa a animalização do homem) e literatura constituem-se, na verdade, de um todo: a linguagem artística utilizada por CL para desvendar os mistérios da existência e, principalmente, foram inevitavelmente utilizados pela escritora para uma leitura de si mesmo. Leitura alcançada graças a um projeto existencialista que transforma a linguagem em expressão de si. Descobrir-se a si mesmo, desvendar os mistérios do eu por meio da linguagem, por mais doloroso que se faça – como podemos comprovar com o sofrimento de G.H. – é o caminho mais eficaz para a existência plena.

E esse caminho – escolhido por ela – é o amor. O amor no qual CL vivia perpassa todas as suas realizações. Sua escrita, portanto, não poderia ficar isenta desse “tempero” tão eficaz. Não se trata aqui do amor piegas, banal, do amor romântico, esse amor é ágape, é doação total, dedicação e cuidado absolutos. Uma entrega total de si mesma na busca daquilo que os psicanalistas chamam de desejo, o objeto a, a causa de sua realização enquanto sujeito: mulher, esposa, escritora,

5 Trata-se de um conceito importante para entendermos um pouco a escrita de A paixão segundo G.H. Para Olga de Sá (1979) “embora não exista em Clarice nem sequer a menção da palavra epifania, contudo pode-se deduzir de sua ficção toda uma poética do instante, essencialmente ligada à linguagem, enquanto questiona o próprio ato de nomear os seres”.(p.201). A estudiosa de Clarice ainda diz mais, no mesmo trabalho: “seus momentos epifânicos não são necessariamente transfiguração do banal em beleza. Muitas vezes, como marca sensível da epifania crítica, surge o enjôo, a náusea. A transfiguração não é radiosa, mas se faz no sentido do mole, do engordurado e demoníaco”. (p.199)

(23)

23

jornalista, amiga, irmã, escritora... Em toda a sua obra Lispector é toda amor, é cuidado. Amor porque “amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca” (LISPECTOR, 1999b, p.56).

CL foi mulher, escrevendo. Foi mãe, escrevendo. Foi amiga, escrevendo. Profissionalizou-se, escrevendo. Foi “gente”, escrevendo. E aqui se pode perfeitamente explicar a frase que talvez marcou definitivamente a relação dela com a escrita: “quando não escrevo, estou morta”6

. É sobre essa face que se pretende observar neste trabalho. É sobre a escrita de Clarice que irão tratar essas páginas que agora tomam forma.

Analisar a obra de Clarice não é tarefa das mais simples, isso porque a sua escrita é a escrita do silêncio, do oculto, do não dito. Seus livros não são para serem lidos de uma vez, deglutidos como o doce preferido, quando se é criança. O leitor clariceano precisa de concentração, de conectar-se com o mais profundo de sua alma. Quem decidir se debruçar na leitura de Clarice precisa ser como pessoas “de alma já formada” (LISPECTOR, 2009a, dedicatória).

Não é à toa que os escritos clariceanos há muito vêm sendo pesquisados, analisados, interpretados à luz dos vários pensamentos científicos, como a psicanálise, filosofia, a teoria literária. Esta análise pretende observar a construção da alteridade. Sob o viés da filosofia existencialista, na escrita de CL especialmente no livro A paixão segundo G.H., mas não nos limitaremos a esse romance, sempre que necessário recorreremos a outros escritos da autora. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, portanto.

No capítulo seguinte, faremos um apanhado crítico da obra da autora. Buscaremos os trabalhos de crítica mais significativos realizados sobre ela. Recorreremos aos textos de Antonio Candido, Sérgio Milliet, Benedito Nunes e Olga de Sá. Escolhemos esses autores por motivos diversos. Com Candido e Milliet teremos uma noção de como a crítica recebeu CL como nova escritora no cenário literário brasileiro daquela época, uma vez que eles foram os primeiros a criticar os seus romances. Esses dois autores, em nossa visão, conseguiram expressar em seus estudos o que significou o surgimento de um estilo de obra tão diverso do que

6

Entrevista concedida ao jornalista Júlio Lerner, em 1 de fevereiro de 1977, para o programa “Panorama”, da TV Cultura, de São Paulo.

(24)

24

as letras do Brasil estavam acostumadas. Benedito Nunes foi um dos primeiros críticos a aproximar a obra de CL ao existencialismo, característica que serve de motivo a esta pesquisa. Olga de Sá realizou um dos mais completos trabalhos sobre a escritura de CL, analisando questões como, por exemplo, epifania, tempo, linguagem, além de realizar um dos mais completos apanhados críticos sobre a obra de Lispector.

No capítulo três faremos uma síntese entre a relação da literatura e da filosofia. É importante sabermos como esses dois campos de saberes se aproximam e se interligam por meio da linguagem, produzindo os caminhos necessários para a expressão do eu, da individualidade humana. A importância dessa abordagem deve-se à pesquisa filosófica que engendramos nesta disdeve-sertação da obra literária de Clarice Lispector. Apoiaremos nossa discussão sobre essa relação entre os dois saberes, no pensamento de Benedito Nunes.

No capítulo “Clarice e os outros”, verificar-se-á como o pensamento de alteridade de Sartre se configura na escrita clariceana. Verificaremos como se dá o processo de construção do eu em A paixão segundo G.H. a partir do Outro. Quem é o Outro para CL? Como ele é apresentado no texto? Como ele atua no processo de alteridade com a autora no texto? São algumas das questões elucidadas nesse capítulo. Apesar de apresentados de maneira individual em nossa organização, esses Outros – responsáveis pelo processo de interação da personagem com aqueles que a observam – são inteiramente intrínsecos dentro do processo de alteridade literária.

No último capítulo, teceremos nossas considerações finais. Não são palavras que tentam encerrar a leitura da obra de Clarice. Configuram-se como mais uma possibilidade de reflexão sobre a escritura desse fenômeno de escritora chamado Lispector. Optou-se, em todo este trabalho, por uma linguagem simples e sem enfeites desnecessários.

(25)

25

2 CLARICE E A CRÍTICA

Este capítulo será dedicado a um levantamento crítico da obra de Clarice Lispector. Ao longo desses 73 anos (a contar da 1ª publicação da autora, o romance Perto do coração selvagem (1943)), várias foram a vozes a se pronunciarem sobre a escrita dessa autora baseando-se principalmente em suas marcas de estilo e suas concepções de mundo. Os mais renomados críticos, dentre eles, Antonio Candido, Sérgio Milliet, Massaud Moisés, Álvaro Lins, Benedito Nunes, só para citar alguns, se debruçaram na análise do enigmático e inspirador mundo literário dessa “personalidade lisérgica”, inserindo-a no universo literário brasileiro do século XX.

Clarice Lispector é, sem dúvida, uma das escritoras brasileiras mais estudadas no universo acadêmico. Vários são os estudos realizados sobre a sua vida e sua obra, sob formas de artigos, ensaios, teses, dissertações, biografias, livros etc. O fato é que suas obras ainda têm muito a nos dizer. Seus vários romances, contos e crônicas parecem estar mergulhados num universo infinito de conteúdos, mesmo escrevendo pelas entrelinhas, como costumava dizer: “Mas já que se há de escrever, que ao menos não esmaguem as palavras nas entrelinhas” (LISPECTOR, 1999b, p.201). Aliás, é justamente no silêncio que sua obra mais fala, quando a autora silencia e o leitor é convidado a experienciar o mistério da narrativa no lugar da escritora: “sei que a mudez, se não diz nada, pelo menos não mente, enquanto as palavras dizem o que não quero dizer.” (LISPECTOR, 1999b, p. 80). Sobre isso ainda diz a autora,

Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando esta não palavra morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, podia-se com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é ler distraidamente (LISPECTOR, 1999b, p.295).

O primeiro livro escrito por Clarice foi Perto do Coração selvagem. Publicado pela editora A Noite em 1943. Esse romance chega num momento de saturação da literatura brasileira. A prosa histórica de cunho regionalista não estava mais dando conta de sugerir reflexões acerca do nosso país, o que fez com que os críticos, leitores, editores e autores buscassem uma inovação para as letras do Brasil. Se na poesia estávamos vivendo o apogeu literário, com poetas como Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, Murilo Mendes, Jorge de Lima e Cecília Meireles,

(26)

26

dentre outros; a prosa estava já entrando em decadência, com seu modelo falido de descrição histórica, ambiental, psicológica e social do homem sertanejo - no caso da prosa regionalista nordestina – e do gaúcho, no caso da literatura regionalista sulista. Surge, então, nesse período, Clarice Lispector, com um romance inovador no que diz respeito à estrutura temática e no trato com a linguagem literária para a época.

Com todo esse contexto de inovação, os críticos não demoraram em reconhecer no novo romance uma renovação literária com força de apontar novos rumos a serem seguidos nas letras brasileiras. Esses ventos de renovação recebem nova corrente de ar com a estreia de João Guimarães Rosa com seu livro de contos, Sagarana, em 1946. Os dois autores juntos, cada um ao seu estilo, definitivamente impuseram uma reconstrução literária da prosa no Brasil do final do século XX. Essa revolução, que preferimos chamar de inovação, não ficou restrita apenas a esse período. Clarice segue sendo uma das mais importantes autoras da nossa literatura, com seu estilo único e desestabilizador até hoje.

Embora não seja objetivo deste trabalho, antes de apresentar alguns textos críticos sobre o romance A paixão segundo G.H., corpus desta dissertação, faz-se importante comentar as principais críticas publicadas na estreia da escritora. São escritos importantes para entendermos como CL se configurou no cenário literário nacional como importante escritora. Selecionamos os mais relevantes dentro do conjunto imenso de análises das narrativas da autora: os trabalhos elaborados por Antonio Candido, Sérgio Milliet, Benedito Nunes e Olga de Sá.

Dentre tantos, esses foram os escolhidos para este trabalho por motivos diversos. Candido foi um dos primeiros a publicar artigo de crítica literária sobre a autora e um dos primeiros a destacar as inovações estilísticas da então jovem escritora. Sérgio Milliet será lembrado aqui por também ser um dos pioneiros a tratar sobre o assunto e insistir em alguns “defeitos” que enxergava nos escritos clariceanos. Apesar de o crítico aceitar a nova autora como renovação literária, ele o fazia com algumas ressalvas. Não que a literatura produzida por CL fosse tão perfeita que não precisasse de observações, mas acontece que a crítica da época não possuía condições suficientes de observar essa nova literatura sem a lupa tradicionalista. Juntos, ambos os críticos, Candido e Milliet, também serão importantes por oferecerem um pouco de entendimento de como foi recepcionada

(27)

27

esse novo tipo de literatura. Benedito Nunes possui sua importância aqui por ser um dos primeiros, e quem mais exaustivamente, aproximou a literatura de Clarice à filosofia existencialista, tema desta dissertação. Já Olga de Sá será citada devido ao brilhante e mais completo trabalho sobre a escritura clariceana já realizado, além de nos fornecer o mais completo apanhado crítico da obra de Lispector dos anos 40 aos anos 70.

2.1 ANTONIO CANDIDO: “UM FUTURO PROMISSOR” PARA CLARICE LISPECTOR

Uma das críticas mais importantes feitas sobre o livro de estreia de CL, Perto do Coração Selvagem (1944), foi a de Antonio Candido em artigo intitulado No raiar de Clarice Lispector, publicado inicialmente no jornal Folha da Manhã, em 16 de junho de 1944 e depois reeditado em 16 de julho do mesmo ano; finalmente, Candido, com algumas alterações, publica-o novamente em Vários Escritos (Duas Cidades, 1970). Os comentários elaborados por ele foram de extrema importância para a inserção definitiva de CL no mundo da literatura brasileira. Não só porque o autor tece positivas críticas sobre a escrita dela – o que era de se esperar por quem estreia na literatura –, mas, e principalmente, por ele elevar o romance inaugural dela ao degrau dos bons romances brasileiros. Ele prenuncia um promissor futuro para CL:

a intensidade com que sabe escrever e a rara capacidade da vida interior poderão fazer desta jovem escritora um dos valores mais sólidos e sobretudo, mais originais da nossa literatura, porque esta primeira experiência já é uma nobre realização (CANDIDO, 1977, p.131)

Antonio Candido destaca no romance analisado a capacidade da autora de “pensar efetivamente o material verbal” (CANDIDO, 1970, p.126), de pensar a língua, de usá-la para adentrar “alguns labirintos mais retorcidos da mente” (CANDIDO, 1970, p.126). Para ele, Clarice vai muito mais além da simples ficcionalização da vida, o que costumavam fazer os autores brasileiros da época. CL, ao passo de Oswald e Mário de Andrade, “procura estender o domínio da palavra sobre regiões mais complexas e mais inexprimíveis, ou fazer da ficção uma forma de conhecimento do mundo e das ideias” (CANDIDO, 1970, p. 126).

(28)

28

O autor destaca que a romancista, em seu texto inaugural, distorceu a normalidade literária do Brasil da época e o fez justamente por quebrar os paradigmas da expressão. É isto que ele destaca em Clarice: sua linguagem transforma afetivamente o cotidiano da vida levando seus leitores a observá-lo de um ângulo introspectivo que, muito além da simples “recriação da realidade”, nos obriga a utilizar a profundidade do eu para enxergar a existência. Nos romances da autora, prevaleceu o princípio do estranhamento do objeto literário. Essa sensação é causada justamente pela marca estilística, se não desenvolvida por ela, pelo menos exaustivamente e de maneira mais completa utilizada pela romancista: a transfiguração da palavra, a investigação significativa plena do significante linguístico, o que foi alcançado quando a autora atingiu exatamente o ponto em que a palavra foi capaz de ressignificar o pensamento.

No entanto, apesar de apresentar Perto do coração selvagem como romance de estilo inaugural na literatura brasileira, Candido parece não estar plenamente seguro da capacidade de Clarice Lispector. É o que percebemos quando ele afirma não estar totalmente confiante da autenticidade do romance. O crítico diz que ainda não se pode deixar de lado as hipóteses de “influências estrangeiras de inspiração” (CANDIDO, 1977, p.128). Parece estar se referindo às várias críticas endereçadas a Lispector, nas quais se afirma que a autora nada mais é do que uma releitura de James Joyce e de Virgínia Woolf, acusação que conviveu durante muito tempo no pensamento crítico da época e que a deixava muito irritada e decepcionada, pois sempre afirmou não ter estabelecido contato com esses autores até o lançamento de seu primeiro romance.

De fato, o romance inaugural possui uma epígrafe de James Joyce sugerida, segundo Clarice, por um amigo seu, Lúcio Cardoso. Foi essa epígrafe a responsável por reforçar a ideia de plágio tida pelos críticos da época. Sobre isso, irritada, a própria CL dispara:

descobri essa legenda, o título do livro e o próprio Joyce quando o livro estava bem pronto. Escrevi-o em oito ou nove meses, enquanto estudava, trabalhava, e noivava – mas ele não tem influência direta do estudo, do noivado, de Joyce, do trabalho (MOSER, 2011, p.222).

Depois de elaborar um contundente comentário sobre a utilização inédita da expressão linguística feita por Clarice, Antonio reluta em assumir a maestria da

(29)

29

autora estreante. Ele conclui o artigo afirmando que o livro não pode ser enquadrado no rol das “grandes obras”, mas “poucos como ele têm, ultimamente, permitido respirar numa atmosfera que se aproxima da grandeza” (CANDIDO, 1970, p. 131) Ele só não esclarece o que impede o romance de ser considerado como “grande obra”, o que nos leva a concordar com Olga de Sá (1979) quando ela diz faltar maturidade aos críticos da época. Não é que eles estivessem errados em suas leituras, o problema é que eles estavam realizando suas críticas sobre um novo romance seguindo um modelo já superado de crítica. Ou seja, CL também forçou a mudança dos críticos a fim de que romances como o dela fossem melhor lidos e interpretados.

Olga de Sá, ao apresentar a crítica de Antonio Candido, reforça a exaltação do crítico à nova autora que se formara. Sá (1979, p.26) complementa sua observação afirmando que

a ficção não é só uma aventura da imaginação. Pensamento e linguagem se duelam, em círculo. Enunciação e enunciado se afinam mutuamente (...) Clarice Lispector se anuncia como escritora que não se resigna à rotina literária e faz da descoberta do cotidiano uma aventura possível.

Ao lado de Antonio, Olga de Sá tece comparações do estilo único de Clarice com os autores modernistas Oswald e Mário de Andrade. Candido vai ainda mais longe ao aproximar a força literária da nova autora com a do mestre Machado de Assis. De fato, para esses críticos, o trabalho literário realizado por ela se deu com uma inovação no plano expressivo da linguagem, o que fizeram, com propósitos diferentes, os autores do Modernismo e o mestre do Realismo brasileiro.

Em CL também encontramos mais do que a inovação, uma verdadeira transformação na produção literária brasileira. A linguagem nela ressignifica o mundo real, exaure-se até seu limite máximo para expressar a emoção e os sentidos, ao passo que ela própria, a linguagem, se transforma em êxtase de sensações, no próprio sentimento, em um jogo lógico no qual o plano verbal traduz o plano da mente.

Machado de Assis transformou a literatura do Brasil com seu estilo único marcado pela análise psicológica do indivíduo, que é visto como um ser social, ao passo que os autores modernistas, sobretudo, transformaram a linguagem petrificada que estava sendo utilizada pelos autores de sua época. Oswald e Mário

(30)

30

mostraram como a língua poderia dominar “regiões mais complexas e mais inexprimíveis” (CANDIDO, 1977, p.126). É nesse cenário que se insere CL, inaugurando outro ciclo nesse movimento de renovação. Ela foi a responsável por esgotar a palavra até a sua máxima significação, a ponto de significante e significado se amalgamarem no momento exato da expressão linguística. Significante torna-se, pois, o próprio significado deixando a palavra muda, sem dizer mais, sem aproximar o eu do real. Essa é uma das grandes contribuições do fenômeno literário chamado Clarice Lispector para a literatura brasileira.

Olga de Sá, encerrando a exposição crítica de Antonio Candido, baseia-se nas palavras de Roland Barthes, para quem o escritor, por meio da palavra, é um descobridor do mundo. Nesse descobrir, o autor apresenta um mundo às avessas, desconcertante, uma vez que a literatura não apresenta respostas, apenas formula a grande pergunta de interesse dos homens: o que é o mundo? “Uma pesquisa enunciada numa pergunta [...] acerca do homem e do mundo, pergunta jamais respondida e que se chama literatura” (SÁ, 1979, p.26). É exatamente isso que faz Clarice: transforma-se em pergunta para indagar-se a si mesma e aos outros em busca da resposta ao grande questionamento sobre o que é a vida. É o que ela nos diz:

às vezes tenho a impressão de que escrevo por simples curiosidade intensa. É que, ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. É na hora de escrever que muitas vezes fico consciente de coisas, das quais, sendo inconsciente, eu antes não sabia que sabia (LISPECTOR, 1999b, p. 254).

2.2. SÉRGIO MILLIET: “A ALEGRIA DA DESCOBERTA”

Outro crítico literário a tecer comentários sobre a obra de Lispector foi Sérgio Milliet. Seus textos foram todos publicados em Jornais e depois compilados em uma coleção chamada Diário crítico, que alcançou vários volumes.

No volume 2 (MILLIET,1944, p.27), Milliet se mostra muito contente por ter encontrado um livro “cheio de qualidades” depois de vários anos de repetição literária no Brasil de então. Diante do texto de CL, que para o autor é um “nome estranho e desagradável pseudônimo sem dúvida” (MILLIET, 1944, p.27), o crítico, com Perto do coração selvagem, diz serem interrompidos “dez anos de sossego sem novos livros, sem editores sem rodapés” (MILLIET, 1944, p. 27). Enfim, o novo livro

(31)

31

surgiu mostrando para o crítico que um novo estilo precisava acontecer. Vale a pena revivermos a euforia com a qual o ele inicia o texto de opinião sobre o romance inaugural da autora:

raramente tem o crítico a alegria da descoberta. Os livros que recebe dos conhecidos consagrados não lhe trazem mais emoções. Já sabe o que contêm, seria capaz de sobre eles escrever sem sequer folheá-los. Quando, porém, o autor é novo há sempre um minuto de curiosidade intensa: o crítico abre o livro com vontade de achar bom, lê uma página, lê outra, desanima, faz nova tentativa, mas qual! As descobertas são raras mesmo. Pois desta feita fiz uma que me enche de satisfação (MILLIET, 1944, p.27).

Mas por que tamanha satisfação de Milliet? Quais argumentos utiliza para justificar o ineditismo do romance que possui em mãos? Às respostas.

Ao folhear o livro por acaso ele se depara com a página 160 e por motivo qualquer se dá ao trabalho de lê-la, talvez para quebrar o aborrecimento da mesmice literária que o acompanhava há dez anos. É aí que, de cara, é tomado pela força da escrita de Clarice. Sérgio acompanha a discussão de Joana, a protagonista do romance, sobre o amor. Essa peronagem ainda não havia sido tomada pela força avassaladora desse sentimento. Ainda não era capaz de enxergar a vida sob a ótica do amor. Milliet acha o trecho que leu na já referida página, um misto de “estilo nu” e “riqueza psicológica” (MILLIET, 1944, p. 28).

O crítico, então, enquadra CL numa nova categoria de escritores: os que produzem o romance introspectivo, uma nova categoria de romance que propõe um diálogo interior, ou melhor, o novo romance que surgira, “é todo ele um diálogo interior” (MILLIET, 1945, p. 29). Sobre isso Milliet deixa claro que ela foi, pela primeira vez na literatura brasileira, a responsável por introduzir esse estilo de romance no Brasil.

A obra de Clarisse (sic) Lispector surge no nosso mundo literário como a mais séria tentativa de romance introspectivo. Pela primeira vez um autor nacional vai além, nesse campo quase virgem de nossa literatura, da simples aproximação; pela primeira vez um autor penetra até o fundo a complexidade psicológica da alma moderna, alcança em cheio o problema intelectual, vira o avesso, sem piedade nem concessões, uma vida eriçada de recalques (MILLIET, 1945, p. 32)

Entretanto, não é apenas na introspecção que se concentra a força do novo romance. No plano linguístico também é visível a potencialidade desse fenômeno de

(32)

32

escritora, aliás, é o estilo de linguagem adotado por ela que cria o tom introspectivo da obra.

Clarice surge no cenário literário da época trazendo questões dos modernistas no que diz respeito à utilização da linguagem. No entanto, ao contrário daqueles que problematizaram a utilização da língua no fazer literário, a romancista colocou à prova a máxima potencialização da expressão verbal. Isso resultou em uma linguagem “única, fácil, poética, que não hesita em tomar pelos mais inesperados atalhos, em usar as mais inéditas soluções, sem jamais cair, entretanto, no hermetismo nem nos modismos modernistas” (MILLIET, 1944, p. 30)

A força da personagem Joana, no romance Perto do coração Selvagem, está justamente na apresentação que ela faz, por meio da introspecção, da condição humana. O que a personagem quer é alcançar o selvagem coração da vida, repleto da “trágica e rica aventura da solidão humana” (MILLIET, 1945, p.30). Nessa aventura incomum, Joana é capaz de dar vida e significados às suas próprias experiências e isso é conseguido porque a autora atribui uma nova performance à linguagem literária. A personagem transforma-se em coisa ao apresentar a coisa. Por meio de um estilo que mescla forma e conteúdo, Clarice atribui à língua uma “harmonia preciosa e precisa” (MILLIET, 1944, p.30), ela

tem o dom de dar às palavras uma vida própria. Ela as cria, nesse sentido de emprestar-lhes um conteúdo novo, inesperado, que acaba espantando a criadora e lhe enche o espírito de fantasmas. Não as domina mais, então, elas é que tomam conta dela (MILLIET, 1944, p.87).

Já no volume VII de seu Diário crítico (1981), Sérgio, apesar de reconhecer a “originalidade de uma química sintática”, não vê com bons olhos o terceiro romance publicado por CL, A cidade sitiada. O autor enxerga nesse livro defeitos de estilo concentrados justamente no campo que apresentou Clarice como uma autora de estilo inédito quando da publicação de Perto do coração selvagem, o campo linguístico.

O rococó, imagens sem soluções de continuidade, um requinte que é um fim em si mesmo, língua descosida e relaxada, verbiagem, exibicionismo insistente, são alguns defeitos que estão presentes no terceiro livro da autora, conforme afirma Milliet. O autor reconhece que CL possui um potencial e “grande talento”, no entanto,

(33)

33

a preocupação da joia rara que ameaçava adelgaçar a visão da romancista acabou por subverter por completo a escrita, o rococó mascarou com sua interminável seriedade de ornatos a estrutura da obra, impedindo-nos de perceber e penetrar-lhe o espírito. E, o que me parece mais grave, a forma virou fórmula (MILLIET, 1981, p. 33).

O que nos parece é que – e aí não apenas Sérgio Milliet, mas a crítica em geral daquela época –, os críticos literários não assumiram, de fato, seus posicionamentos críticos apresentados na estreia da escritora. No caso de Milliet, o interessante é o vermos afirmar, ao criticar Perto do coração selvagem, que a autora empresta um conteúdo novo às palavras a ponto de não mais as dominar, mas ser dominada por elas, e agora, nesse outro romance, apresentar a linguagem utilizada pela autora como sendo rococó, imagens sem soluções etc.

Como pode uma autora desconfigurar sua escrita tão rapidamente e levar seu estilo a níveis tão antagônicos entre um livro e outro? O que acontece é que, como vimos, faltou aos críticos de Clarice um pouco de coerência em seus pensamentos. Ao apresentarem-na como uma inovação nas letras do Brasil de então, o mínimo a se esperar é que se recebesse sua nova forma de produzir literatura de maneira integral e sem imposições de condições de forma e estilo. Se sua linguagem era inovadora seria necessário que o público crítico da época abandonasse as lentes tradicionais utilizadas nas análises dos romances da escritora brasileira e, assim, organizasse uma crítica comprometida com o rompimento de barreiras do tradicionalismo literário como propunha a literatura brasileira do final da primeira metade do século XX.

Sobre a questão de forma e conteúdo utilizaremos a crônica de CL, intitulada Forma e conteúdo, para respondermos a crítica de Milliet.

Fala-se da dificuldade entre a forma e o conteúdo, em matéria de escrever; até se diz: o conteúdo é bom, mas a forma não etc. Mas, por Deus, o problema é que não há de um lado um conteúdo, e de outro a forma. Assim seria fácil: seria como relatar através de uma forma o que já existisse livre, o conteúdo. Mas a luta entre a forma e o conteúdo está no próprio pensamento: o conteúdo luta por se formar. Para falar a verdade, não se pode pensar num conteúdo sem sua forma. Só a intuição toca na verdade sem precisar de conteúdo nem de forma. A intuição é a funda reflexão inconsciente que prescinde de forma enquanto ela própria, antes de subir à tona, se trabalha. Parece-me que a forma já aparece quando o ser todo está com um conteúdo maduro, já que se quer dividir o pensar ou escrever em duas fases. A dificuldade de forma está no próprio constituir-se do conteúdo, no próprio pensar ou sentir, que não

Referências

Documentos relacionados

b) Execução dos serviços em período a ser combinado com equipe técnica. c) Orientação para alocação do equipamento no local de instalação. d) Serviço de ligação das

A proposta também revela que os docentes do programa são muito ativos em diversas outras atividades, incluindo organização de eventos, atividades na graduação e programas de

4 Este processo foi discutido de maneira mais detalhada no subtópico 4.2.2... o desvio estequiométrico de lítio provoca mudanças na intensidade, assim como, um pequeno deslocamento

[r]

A máxima produção de pectinases foi obtida em 40% de umidade e 1,0% da concentração da fonte de nitrogênio, alcançando 250,0 U/g de meio fermentado para a atividade pectinolítica

A divisão do número de eosinófilos obtidos nos 125 pacientes em tercis nos possibilitou delimitar e contrastar as duas extremidades discreta e intensa da TATE nos

pouco regulamentado, com uma proteção contra o desemprego classificada pela OIT e OCDE como sendo de níve l mediano, quando comparada à dos demais países