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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma problemática se viu presente durante este trabalho: quem são os outros e qual a relação deles com o eu que se apresenta na obra de Clarice Lispector. Buscando bases na filosofia de Sartre, fez-se uma leitura de como a autora enxergava a vida e o que dela fazia.

As questões relativas ao ser (O que é ser? O que significa existir?), ao ateísmo e à religião, às liberdades, à humanização e à animalização do ser, fazem- se presentes em um projeto literário composto por nove romances, alguns contos e crônicas e cinco histórias infantis; um projeto literário que culmina na composição do romance escrito em 1964: A paixão segundo G.H. Tal é a justificativa pela escolha desse romance: todo o projeto literário existencialista de CL foi potencializado no relato da alegria agonizante de G.H.

Nesse romance, Clarice se faz presente como autora e como ser que busca respostas para os questionamentos próprios da sua época. A modernidade na qual ela viveu trouxe consigo a fragmentação do eu, ou seja, o homem não é mais visto com um ser individual e estático de antes, sua identidade é alcançada por meio do desdobramento dos eus que compõem o seu ser. Os avanços tecnológicos trouxeram praticidade ao homem em seu dia-a-dia, mas o tornaram reféns de si mesmo. A existência e suas exigências tomam conta, portanto, das reflexões desse momento. Lispector utilizou sua maestria no uso da linguagem para transformar todas elas em reflexões literárias, resolveu dar “forma” ao que a vida apresentava naturalmente pelo contexto que se impunha naquela época.

A linguagem se apresenta na autora de A paixão segundo G.H. como uma poderosa arma de exploração dessas questões. Dentre todas as coisas para as quais a autora acredita ter nascido, uma delas foi escrever. Essa atividade era para ela uma forma de compreender o ser e desvendar seus mistérios, isso porque, a palavra trona-se expressão das angústias, dos medos, das alegrias, das necessidades impostas pelo ato de existir, em uma autora tão habilidosa com a palavra como foi CL.

Assim, escrever para ela, é mais do que apenas ficcionalizar o mundo real. Como foi visto, sobretudo no capítulo quatro, escrever era uma forma de se ver, de ser olhada e de se ouvir. Partindo de questões individuais, esse tipo de literatura

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torna-se universal, pois o leitor é convidado a também viver a experiência que só será sentida se vivenciada na presença do Outro.

Por essa necessidade de ser com o Outro, é possível perceber que a escrita clariceana é processo de alteridade com os vários Outros que se relacionam com a narradora-personagem. Sua necessidade de estar sempre em comunhão com os outros, com aquele que estará fora de si, forçou a busca no projeto existencialista de Jean-Paul Sartre as bases da leitura que aqui se fez.

Não se pretende dizer que a escrita, bem como todo o projeto literário desenvolvido por CL seja puramente tentativa de prova do modelo filosófico proposto por esse filósofo. Tentou-se estabelecer um diálogo entre esses dois campos do saber por se ver nos dois uma preocupação recorrente: a existência. A filosofia, nesse caso, foi importante para se entender alguns conceitos surgidos com a leitura atenta de uma literatura, que como se viu, também é existencialista.

Essa aproximação entre literatura e filosofia ficou clara a partir da busca pelo que os dois saberes têm em comum, conforme mostrou Benedito Nunes: a linguagem. O discurso de ambos se materializa no mesmo elemento, que é a expressão linguística. Mas essa relação não se dá por apagamento de um no outro. No capítulo I foi visto que literatura e filosofia se encontram na complementariedade. O discurso filosófico pode, então, apresentar-se na linguagem literária.

Clarice afirma na experiência de G.H. que ser é estar na presença do outro; Sartre propõe que apenas o Outro é capaz de entregar ao ser a sua constituição enquanto ser-em-si, sendo o olhar a base constituidora desse relacionamento. Vendo-se observado e tomando a consciência dessa olhada é que o eu se torna transcendência-transcendida e se constitui enquanto ser que é.

Pôde-se perceber que com A paixão segundo G.H., Clarice Lispector deixa clara a necessidade que se tem de estar em comunhão com o que está fora do em- si para se conhecer. Na verdade, o que deseja a autora em todo o conjunto de sua obra, e não apenas nesse romance, é desvendar os mistérios da existência, o que verdadeiramente significa “ser”, o que só se consegue na presença do Outro. Desde o início dessa narrativa, G.H. explicita essa necessidade, desejando sempre ser o que o outro a faz ser.

Esta pesquisa, então, tratou de buscar na obra em questão quem são e como se constituem esses outros, que dentro do relato, fornecem a G.H. uma visão do que

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ela verdadeiramente é. Chegou-se à conclusão de que quatro Outros se impõem no processo de alteridade desse romance.

O primeiro é o ser social representado por Janair, que para a narradora- personagem trata-se de um ser inferior e insignificante, substituível até. Mas G.H. sabe o peso que o olhar dessa empregada teve sob sua constituição enquanto ser. Mesmo não estando presente no apartamento, na hora do acontecimento da epifania, continuava a olhar e a envergonhar a sua patroa, fazendo-a conhecer a si mesma. Constatou-se com a pesquisa que com esse romance foi a primeira vez que Clarice abordou em seus escritos a questão social. Mas não se disse com isso que ela escreveu um panfleto ideológico acerca da questão das diferenças de classes sociais. Tudo na literatura de Lispector apresenta um viéis existencialista; a relação entre G.H. e Janair é, pois, a discussão entre o ser e o ter: nem sempre quem mais tem possui a plenitude da existência.

O segundo é o Outro-animal. Com a barata, inseto ancestral, Clarice questiona a intrínseca relação entre o ser e o animal, levando seus leitores, a entrar em contato com sua condição animal. Para essa leitura buscamos os estudos de Derrida sobre a animalização do humano. A barata é o ponto central para G.H. e seu leitor compreenderem sua natureza animal, afinal, antes de serem humanos, são seres animais. Pela história da humanidade, principalmente pelo pensamento cristão, o animal foi assujeitado pelo homem e dele recebeu a condição de besta a ser combatida.

A barata é, então, a metáfora da animalização do humano e a humanização do animal. Ela é a responsável por G.H. adentrar em sua força animal que constitui o seu ser e se ver também animal Mas isso não quer dizer que há uma metamorfose de um homem em um animal. G.H. entra em contato com o não-humano que habita o seu ser e lhe torna mais próxima de sua condição primitiva, é assim que acontece esse processo de animalização humana.

O inseto surge aí como personificação do olhar, condição primeira para o início do processo de alteridade, segundo Sartre. De repente G.H. se descobre olhada e inicia-se o processo de alteridade. A narradora-personagem toma consciência de que possui uma vida e no olho da barata se vê, como reflexo, uma barata também, ou seja, um animal.

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O terceiro Outro visto com essa pesquisa é o leitor, que é, em um plano metafísico, um leitor real, um ser para quem o eu se mostra na expectativa da devolução do que se é. G.H. pede a mão de um leitor para se apoiar durante a longa caminhada que realizará ao longo da escrita do texto. Esse não é um simples processo metonímico. Ela quer a mão para sentir a segurança de todo o leitor, segurança necessária para enfrentar a desconfortante viagem ao centro de si mesma. É com a mão que ela se apoiará na bengala necessária à vida, espécie de “terceira perna” utilizada no equilíbrio do em-si. É por isso que a alteridade nesse tipo de literatura é um processo de alegria, o leitor é necessário e é a única peça capaz de, com propriedade, afirmar o em-si do eu presente na autora, dando forma ao que se chama de escrita de si.

O último Outro do processo de alteridade do romance em questão é a linguagem, que por sua vez se desdobra em outro, a literatura. O eu se torna o Outro de si mesmo por meio da linguagem, fala a si mesmo, escuta a si mesmo através da leitura de si, explicitada na e por meio da linguagem.

Toda essa relação de alteridade descrita anteriormente na obra de Clarice só se dá graças à criação literária. É a arte literária que proporciona a CL um Outro- linguagem, um Outro-leitor e, somente nas possibilidades do limite da literatura que G.H. se descobre um animal, um inseto – uma barata.

Desde o início do romance é visível a preocupação de G.H./autora com a forma que terá que dar a tudo o que se passou com ela no dia anterior. Isso assume uma importância maior quando se atenta para o fato de que dando forma – portanto transformando o vivível passado em literatura – ela consegue reviver/remorrer com o leitor, companhia, como vimos, indispensável nesse processo. A literatura e toda a sua organização serve à descoberta da existência. Em Clarice, essa linguagem transforma-se em literatura existencial.

A paixão segundo G.H. é a existência explorada na linguagem. É uma tentativa de atribuir sentido àquilo que se chama existir. CL apresenta esse projeto por meio de um estilo inovador, no qual a estrutura apresentada nos romances tradicionais não consegue mais se sustentar. O tempo cronológico se desfaz diante do instante-já, momento no qual as epifanias acontecem e o ser toma consciência de sua existência. O enredo não é linear, com começo, meio e fim; as coisas acontecem no momento da escritura e a autora perde o controle sobre a linguagem

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e torna-se linguagem na tentativa de se ouvir, ver-se e se entender. Enfim, Clarice Lispector inaugura o estilo existencial, uma literatura envolvida única e exclusivamente em experienciar a vida; uma literatura na qual autor e leitor vivem seus dramas pessoais e os veem presentes na forma de linguagem, numa tentativa de reviver tudo o que se passou em vida para encontrar o caminho da morte. Mas morrer para a vida não significa deixar de existir. Ignifica mergulhar no caos interior e descobrir o nada existencial; é se encontrar na plenitude da existência.

Essa pesquisa, além de acadêmica é pessoal, pois não há como se ler Clarice Lispector sem descobrir a verdadeira identidade do que se é. Com A paixão segundo G.H. se descobre bem mais do que o prazer em ler; descobre-se o verdadeiro segredo da vida: o ser. Nessa descoberta, seu leitor é envolto em uma difícil e dolorosa alegria: a alegria agonizante de ser com o Outro.

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