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FILOSOFIA E LITERATURA: DUAS FACES DE UMA MESMA MOEDA

3 FILOSOFIA E LITERATURA: A LINGUAGEM EXPERIMENTANDO A EXISTÊNCIA

3.1 FILOSOFIA E LITERATURA: DUAS FACES DE UMA MESMA MOEDA

Poesia (literatura) e Filosofia são definidas por Benedito Nunes, em Ensaios Filosóficos (2010) da seguinte forma: o primeiro termo é compreendido por ele como “composição verbal, vazada em gênero poético, tal como se entende desde o século XVIII, mas designando também o elemento espiritual da arte” (NUNES, 2010, p. 01). Esse termo “poesia” na visão do autor não se resume apenas ao verso, estende-se ao poético, presente na ficção de modo geral. Já a filosofia, para ele, “designa seja o pensamento, de cunho racional, seja a elaboração reflexiva das concepções do real e de seu conhecimento respectivo” (NUNES, 2010, p. 01). Após apresentar suas concepções sobre os dois termos, o autor passa a apresentar o percurso histórico da relação entre os dois.

Os estudos da literatura começaram - mesmo ainda sem essa denominação – há muito tempo, ainda com os gregos, na era clássica. Mas, sem dúvida, os escritos de Platão constituem-se de um marco para o estudo crítico literário. O filósofo grego, ao decidir expulsar os poetas da Pólis, como busca de manter a ordem e a organização social, relegou a poesia à margem da civilização. O artista da palavra, por não criar nada, por não desenvolver nada – a exemplo do carpinteiro usado pelo filósofo – e ser visto como simples imitador, assim como o pintor, não são dignos de participarem da Pólis, portanto. Platão diz o seguinte sobre essa categoria:

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- Quer parecer-me, disse, que a designação mais acertada seria a de imitador daquilo que os outros são obreiros.

- Que seja, lhe disse. Dás, assim, o nome de imitador ao que produz o que se acha três pontos afastados da natureza.

- Perfeitamente, respondeu.

- Ora, exatamente como ele [o pintor], encontra-se o poeta trágico, por estar, como imitador, três graus abaixo do rei e da verdade, o que aliás se dá com todos os imitadores. (PLATÃO, 2006, p.141)

Dessa forma, Platão cria uma escala ascendente de representantes da Pólis, comandada por um rei, submetido às verdades do pensamento. Abaixo de todos eles e sem chances de ascensão, estão todos os “imitadores”, que justamente pelo seu ofício de imitar – e não criar – são desprovidos de razão própria, incapazes, pois, de articular o pensamento de forma a construir o mundo em que vive. Assim foi criada a discussão, ou mesmo a querela, como diz Nunes, entre Filosofia e Literatura, com a supremacia daquela.

A questão parece estar envolta ao significado do termo mimesis. Conceito- chave para o pensamento artístico grego. Platão (precisamos não esquecer que ele analisa a arte sob o ponto de vista ético) ao colocar o poeta como simples imitador da vida põe o artista como ausente de ética, uma vez que quem imita, o faz sem saber realizar o original; pode imitar a virtude, por exemplo, mas não saber, nem – mais grave – ser virtuoso. Outro aspecto importante considerado pelo filósofo grego é a capacidade de reproduzir o objeto imitado que possui o artista, ou seja, como possui a capacidade de imitar os outros, pode o fazer de maneira descompromissada com os valores da verdade.

Até que Aristóteles, anos mais tarde, reconfigura o conceito de mimesis. Diferentemente de seu mestre, o novo filósofo acredita que o artista tem a capacidade de imitar a realidade, representando-a da maneira como ela pode vir a ser, e não necessariamente como é. Descarta, portanto, a visão de simples imitador atribuída aos artistas, que agora serão apresentados como dotados da capacidade de representar o meio social e apresentá-lo aos próprios indivíduos que dele fazem parte e não o enxergam, em totalidade, em sua realidade.

Desse modo, a produção artística do que hoje conhecemos como literatura ganha novo contorno e à palavra é atribuída uma importância significativa dentro da relação do pensamento. Ao elevar a tragédia ao topo das produções poéticas, Aristóteles conduz a arte à capacidade de levar o homem a analisar, ou seja, refletir

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sobre sua condição humana. O homem, por meio da produção artística é, pois, levado a experimentar seus dramas, seus medos, suas dúvidas, suas virtudes, e suas fragilidades em uma relação de catarse entre a obra e seu apreciador. Filosofia e Literatura são, pois, postas de um mesmo lado, a fim da consolidação dos acontecimentos vividos pelo homem.

Os estudos avançam e na Idade Média ganham novos contornos. Surgem, nesse período, o estudo da retórica e o estudo da Gramática. A poesia é regida pelo pensamento religioso e escrita em latim clássico pelos clérigos da Igreja Católica. Mas isso não impediu que os trovadores produzissem poesia profana, escrita em latim vulgar. Nessa época, o pensamento da verdade estava subordinado aos preceitos religiosos, ou seja, a filosofia só poderia existir se fosse para confirmar a base teológica dos ensinamentos católicos.

No século XVIII, os românticos alemães produziram um “nexo entre poesia e filosofia que justificava um gênero misto de criação verbal, que nos daria obras de mão dupla, poética sob um aspecto e filosóficas por outro” (NUNES, 2010, p.2). O surgimento da Metafísica afastou a religiosidade da Filosofia e Kant leva a poesia a “uma tábua de salvação intelectual” (NUNES, 2010, p. 2). Nesse momento surge Goethe com seu pensamento de que o poeta deveria ser fiel às suas vivências.

Benedito Nunes propõe três tipos de relações entre filosofia e poesia: disciplinar, supradisciplinar e transacional. No primeiro caso, a filosofia tem a poesia como um objeto de investigação, conceituando-a e determinando-lhe sua essência:

formariam, portanto, diferentes universos de discurso, a Filosofia movida por um interesse cognoscitivo, que tende a elevá-la, mediante a elaboração de conceitos, acima da poesia, dessa forma sob o risco de ser depreciada como ficção e, assim, excluída do rol das modalidades do pensamento. A poesia é considerada inferior ao saber conceptual da filosofia, como pensamento que a supera explicando-a ou compreendendo-a (NUNES, 2010, p. 3).

A poesia se subordina, assim, aos conhecimentos da verdade filosófica, responsável por fornecer as chaves necessárias para a abertura dos mistérios expressos pela arte poética. O conhecimento se sobrepõe, pois, à poesia, que está predeterminada pela filosofia. Mas isso não quer dizer, no entanto, que o conhecimento filosófico seja nocivo à poesia; pelo contrário, a tradição nos mostra que, em muitos casos de críticos conceituados, a literatura vem sendo explicada à luz da filosofia.

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A segunda relação, a extra ou supradisciplinar, estabelece a união mútua da Filosofia e da Literatura, de tal forma: uma fornecendo bases empíricas para a outra. O ponto central encontrado pelos românticos alemães da união entre as duas disciplinas é a discussão do Eu, presente tanto nas discussões filosóficas da época, como também na elaboração da poesia. Filósofos e poetas estão, pois, imbricados e impelidos a discutir uma única coisa, o eu e sua construção; um fornecendo ao outro elementos norteadores da discussão em torno dessa temática. Na verdade, esses dois campos do saber se unem nesse período para tentar explicar a fragmentação do eu em busca de sua identidade. Isso só é possível porque, como disse o próprio Nunes, há um elo poderoso e eficaz que une a Literatura à Filosofia, a linguagem:

afinal, o que, de imediato há, em comum, entre filosofia e literatura? A linguagem. Como assim? É que ambas só existem em obras de linguagem, o que significa que só existem operativamente ou poeticamente, no sentido originário da palavra grega poiesis (NUNES, 2009, p. 27).

A linguagem, desde sempre utilizada para a tradução do mundo, faz-se arma na mão de poetas e filósofos na busca de um entendimento do indivíduo. Filosofia é, pois, nesse viés, reflexão da vida humana; e Literatura, expressão da alma humana. Juntas ajudam o ser humano a entender seu papel no mundo em busca das verdades universais que nunca se esgotam.

Se a linguagem agora é ponto que, mesmo na distância, aproxima esses dois campos do saber, o que prevalece agora é o discurso. Temos, nesse caso, o discurso filosófico, que, pelo movimento “emprestado” pelos românticos, torna-se sempre discurso poético, a ponto de Nunes dizer: “não é descabido afirmar que toda filosofia é poética” (NUNES, 2010, p.12). Para se chegar a essa conclusão buscou- se estudar os filósofos pré-socráticos cujos discursos estavam perpassados de metáforas, assim como a poesia moderna. O filósofo é o artista do pensamento e sua única ferramenta é a linguagem, isso o torna, então, o artista da linguagem, da reflexão do pensamento. Por sua vez, a poesia não necessariamente, torna-se filosófica, como queriam propor os românticos, embora ela possa suscitar reflexões que poderão ser melhor compreendidas pela filosofia.

A terceira e última relação entre a Filosofia e a Literatura proposta por Nunes (2010, p.13) é a transacional, ou seja, o movimento de ir de uma para a outra em busca de reflexões da vida. Nessa relação, o professor paraense nos quer explicar

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que mesmo próximas – e por vezes, mesmo, imbricadas uma na outra –, Filosofia e Literatura mantém suas idiossincrasias. “A filosofia não deixa de ser filosofia tornando-se poética, nem a poesia deixa de ser poesia tornando-se filosófica. Uma polariza a outra sem assimilação transformadora”. Ou seja, os dois campos de reflexão não se metamorfoseiam em uma única coisa; os dois concorrem, cada um com sua contribuição, para uma produção: a poiesis.

Isso não tira o caráter científico da filosofia, que busca, como tal, a verdade. Mas o que é a verdade senão a mentira poética, o fingimento das metáforas? Essa aproximação sem uma transformação de uma em outra reforça justamente o que cada uma se pretende a ser: ciência, poesia, arte da palavra. Ambas unidas pela produção de metáforas que lhe dão vida.