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Questão de estilo: o império do silêncio

3 FILOSOFIA E LITERATURA: A LINGUAGEM EXPERIMENTANDO A EXISTÊNCIA

4.4 LITERATURA: LINGUAGEM DE ALTERIDADE

4.4.2 Questão de estilo: o império do silêncio

Como foi dito anteriormente, em um processo de metaficção, a própria narrativa de G.H. se encarrega de criar no leitor uma reflexão sobre a composição literária. Ao tentar atribuir uma forma ao que viveu e experimentou – sem o que não saberia mais viver –, G.H. se impõe uma dúvida: como fazer o que tem de fazer? Ou seja, como dizer o que tem a dizer:

será preciso coragem para fazer o que vou fazer: dizer. E me arriscar à enorme surpresa que sentirei com a pobreza do coisa dita. Mal a direi, e terei que acrescentar: não é isso, não é isso! Mas é preciso também não ter medo do ridículo, eu sempre preferi o menos ao mais por medo também do ridículo: é que há também o dilaceramento do pudor (LISPECTOR, 2009a, p.18).

Na continuação de sua fala, adiando o momento de dizer o que de fato lhe ocorreu, ela continua afirmando não recear a falta de estética, pois “perdi o medo do feio” (LISPECTOR, 2009a, p.19). Como se não ter “estética” não já se constituísse como um estilo determinado. Duas marcas de estilo de Clarice se percebem na fala da personagem: simplicidade e o não seguimento de padrões literários tradicionais existentes na época.

Sua literatura surge em um cenário nacional de esgotamento do modelo regionalista produzido por autores brasileiros – sobretudo do sertão nordestino. Clarice surge, então, juntamente com Guimarães Rosa, com uma proposta inusitada de expressão. O plano de exploração da expressão da linguagem proposto pelos modernistas da semana de 22 parece ter, de fato, se concretizado, a partir do eco da voz de Mário de Andrade. Ainda que essa não tenha sido a intenção original da autora, ela conseguiu levar a linguagem a sua expressão máxima de significação.

Diferenciando-se do cenário literário da época, CL produz uma anti-literatura com provocações linguísticas no campo da existência. Assim é que sua palavra diz muito mais do que aparenta e o responsável por essa vastidão significativa é o silêncio. A palavra se esgota, pois não é capaz de transformar-se em coisa, ela apenas sugere a coisa vista. É no silêncio das entrelinhas que os ser se transmuta em linguagem capaz de dizer-se a si mesmo e ao Outro.

Assim é que as palavras em CL não desempenham a função de mimetizar o mundo, de transformar o mundo em literatura. Ao contrário, a linguagem, nessa nova

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forma, alcança o limite de sua representatividade e se torna a própria coisa, torna- se, pois, matéria de existência. A única coisa que G.H. deseja é falar, e falar é fazer uso da palavra para materializar o mundo e assim colocar o leitor no mesmo mundo do qual faz parte, ou seja, a necessidade básica da narradora-personagem é fazer da linguagem um mundo de acontecimento no qual seja possível experimentar-se a si mesmo, a partir da objetividade do Outro. Ela queria apenas viver e sabia que para isso era necessário achar o “nome”, achar a palavra:

aquilo de que se vive – e por não obter nome só a mudez pronuncia – é disso que me aproximo através da grande largueza de deixar de me ser. Não porque eu então encontre o nome do nome e torne concreto o impalpável – mas porque designo o impalpável como impalpável, e, então o sopro recrudesce como na chama de uma vela (LISPECTOR, 2009a, p.174).

Ela sabe possuir o poder sobre a palavra (“designo o impalpável como impalpável”), por isso a sua coragem de “entrar naquilo que poderia vir a ser o desespero” (LISECTOR, 2009a, p.172). Possuía inteiro conhecimento de que o único passaporte para essa viagem seria a linguagem, único meio capaz de colocá- la em um mesmo plano com ela mesma e assim se dá o seu conhecimento próprio. A palavra é então a força motriz que a leva para dentro de si. Mas no caminho descobre um problema: não consegue achar “o nome do nome”, ou seja, não é capaz de achar a palavra primitiva, aquela que vem antes de todas as outras palavras, aquela incapaz de apenas nomear, aquela que gera, concretiza. Não consegue porque antes da palavra o que surge é o silêncio, mas ao chegar nessa anti-palavra, a literatura de CL acaba encontrando um verdadeiro tesouro, campo de dizer sem pronunciar. Esta é, pois, a estética de Clarice: a estética do silêncio, a estética que “por não ter nome só a mudez pronuncia” (LISPECTOR, 2009a, p.174).

G.H. fala, então, em neutro: “não tenho palavras para me exprimir, e falo então em neutro. Tenho apenas esse êxtase, que também não é mais o que chamávamos de êxtase, pois não é culminância. Mas esse êxtase sem culminância exprime o neutro de que falo” (LISPECTOR, 2009a, p.161). Ela se depara com um embate ao desejar falar e perceber que já utilizou todas as palavras, restando-lhe apenas o silêncio, ela mesma também terá que aprender a falar no silêncio:

Ah, falar comigo e contigo está sendo mudo. Falar com o Deus é o que de mais mudo existe. Falar com as coisas é mudo. Eu sei que

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isso te soa triste, e a mim também, pois ainda estou vivendo pelo condimento da palavra. E é por isso que a mudez está me doendo como uma destituição (LISPECTOR, 2009a, p.161).

Esse silêncio é tão importante que, também solo sagrado que é, torna capaz o encontro com Deus, o divino que habita onde a palavra não reina, onde o silêncio impera.

Com um eu esfacelado, desconcertado, disperso, como se encontra G.H., a palavra não consegue mais atingir a representatividade plena. Não consegue ser mais suficiente apenas com o poder de representar o objeto, ela entra num estágio de antimimese. Assim, Clarice inova a relação do sujeito com a escrita. Ela lança mão da brutalidade da força da palavra-objeto, aquela que mais do que representar tornar-se o próprio objeto, ou seja, a palavra aqui vai além da representatividade, é um modo de aproximar o sujeito da coisa. Um lugar onde “o eu deixa de ser soberano e absoluto para dar lugar a uma subjetividade mais aberta, mais porosa” (HOMEM, 2012, p.12), como diz Yudith Rosenbaum no prefácio do livro de Maria Lúcia Homem, No limiar do silêncio e da letra – traços da autoria em Clarice Lispector.

A própria Clarice explicou sua relação com essa maneira de dar forma a sua literatura da seguinte maneira: “mas já que se há de escrever, que ao menos não esmaguem com palavras as entrelinhhas” (LISPECTOR, 1999, p.174). Há que se respeitar nesse tipo de escritura o espaço do silêncio, pois ele é a representatividade do local sagrado no qual se encontra o nada; onde o eu se descortina completamente e é apresentado ao ser que ele habita. Nessa revelação é que a existência acontece.

Nesse momento do silêncio é que ela se dá conta de sua fragilidade e de sua superficialidade em vida. É nesse silêncio, onde o nada habita, que G.H. se dá conta de que

era uma mulher que vivia bem, vivia bem, vivia bem, vivia n super- camada das areias do mundo, e as areias nunca haviam derrocado de debaixo de seus pés: a sintonização era tal que, à medida que as areias se moviam, os pés se moviam em conjunto com elas, e então tudo era firme e compacto. G.H. vivia no último andar de uma superestrutura, e, mesmo construído no ar, era um edifício sólido, ela própria no ar, assim como as abelhas tecem a vida no ar. E isto havia séculos vinha acontecendo, com as variantes necessárias ou casuais, e dava certo. Dava certo – pelo menos nada falou e

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ninguém falou, ninguém disse que não; era certo, pois (LISPECTOR, 2009a, p.67).

O discurso produzido em 3ª pessoa indica que G.H. já possui em si a sua própria identidade, a linguagem cumpriu seu papel de espelho na relação de alteridade que estabelece com sua manipuladora. O discurso no passado mostra que o eu, não só se viu espelhado na linguagem, como também aceitou a visão que o Outro possui de si, em uma atitude, como disse Sartre, de apreensão do que o Outro disse de mim. Não uma aprovação, porque mesmo que reprovasse o que o outro a diz sobre ela, em nada mudaria o olhar do Outro, uma vez que nessa relação ele é autônomo. Não há mais o que fazer, a G.H. só resta aceitar a descoberta de sua fragilidade, a descoberta de que “os alicerces vergam e que, num instante não anunciado pela tranquilidade, as vigas [que compõem seu edifício interior] vão ceder porque a força de coesão está lentamente se desassociando um milímetro por cada século” (LISPECTOR, 2009a, p.67). E é aí que “sem aviso, houve o fragor do sólido que subitamente se torna friável numa derrocada” (LISPECTOR, 2009a, p.68). Acontece, então, o momento da tomada de consciência de quem se é.

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