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MASSAUD MOISÉS: “A ILUMINAÇÃO INSTANTÂNEA DE UM FAROL NAS TREVAS”

2 CLARICE E A CRÍTICA

2.3. MASSAUD MOISÉS: “A ILUMINAÇÃO INSTANTÂNEA DE UM FAROL NAS TREVAS”

Assim como Sérgio Milliet, esse novo crítico não enxerga muitas qualidades nos contos produzidos por Clarice. Moisés acredita que as narrativas curtas dela são apenas uma preparação para seus romances, relegando, pois, os textos curtos à condição de literatura de baixa qualidade no conjunto da obra clariceana. Somente nos romances é que o autor enxerga marcas de originalidade e características excepcionais, a ponto de apresentar a escritora e suas obras como criações inovadoras puramente brasileiras.

O que chama a atenção nas palavras de Massaud, dentre outras coisas, é que, a despeito de críticas anteriores, ele argumenta contrariamente aos que utilizam a ideia de influência estrangeira na literatura de Lispector. Em um país acostumado com uma literatura social e regionalista, de forte engajamento político- social, seria natural atribuir a essa nova forma de narrar o status de cópia do estrangeiro. No entanto, esse pensamento “é ilusório, pois se trata, se assim se pode dizer, de uma coisa brasileira, de um modo de sentir muito nosso, cheio duma

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finura e dum lirismo que radica suas bases em nossa índole histórica psicológica” (MOISÉS, 1964. apud. SÁ, 1979, p.43-44).

Massaud Moisés também chamou a atenção para a poeticidade expressa por CL. Sobre isso, Olga de Sá (1979, p. 44-45) tece o seguinte comentário.

Massaud Moisés também se refere à poetisa que se esconde em Clarice. Essa nota poética imprevista, que surpreende o leitor, é um dos pontos altos de sua narrativa. [...] Atinge-se o tom épico e mitológico, decorrente do tom da fábula. Esse tom ligado a um sentimento do gratuito ensopa as personagens, transformando-as em criaturas, símbolos, sonâmbulas, mecânicas, despida de sua humana condição, e apenas vivendo pelo nauseante ofício de viver, anestesiados do sentido de percepção das coisas.

Em 1970, em artigo publicado no suplemento literário de O Estado de São Paulo e intitulado Clarice Lispector: ficção e cosmovisão, Massaud Moisés volta atrás no que disse antes e assume nova postura diante das narrativas curtas de Lispector. Desdizendo a sua afirmação anterior, de 1961, o autor agora acredita que

as narrativas curtas de Clarice Lispector, longe de construir mero exercício para os romances, enquadram-se perfeitamente nos moldes do conto. A semelhança entre as duas manifestações principais do seu fazer literário não denota que os contos estejam escapando de ser contos, mas certas virtualidades suas apenas se explicam e se concretizam no desdobramento permitido pelo espaço físico de romance: dir-se-ia que o pleno aproveitamento das intuições da ficcionista se processa no romance, sem prejuízos das invulgares qualidades de seus contos (SÁ, 1979, p.46).

Também nesses escritos, Massaud, agora já conhecedor da crítica de Benedito Nunes (1969) e Luís Costa Lima (1966) sobre os textos de CL, aborda a questão do “instante existencial”, que para o crítico, é o responsável pela lógica interna da escrita da autora. É nele que se desenvolvem as ações internas responsáveis pela progressão da narrativa na escrita de CL, apresentando-se como uma “explicação” para a falta de lógica que, se lido de maneira desavisada, pode-se encontrar no texto clariceano.

Esse “instante existencial” toma forma quando, de maneira instantânea, os personagens “são tomados por uma súbita revelação interior, que dura um segundo fugaz, como a iluminação instantânea de um farol nas trevas, e que, por isso mesmo, recusa ser apreendida pela palavra.” (MOISÉS, 1970 apud. SÁ,1979, p.47). É o momento em que as personagens tomam consciência da existência, se enchem

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de uma lucidez plena responsável por apresentar o mundo aos personagens de maneira realística, mas não de qualquer modo, mas sim, por meio de um realismo violento, selvagem e desnorteador porque retira das coisas do mundo o véu que nos impede de ver, naturalmente, a natureza das coisas.

Essa análise desenvolvida por Maussaud Moisés – dos contos que compõem as coletâneas Laços de Família e A legião Estrangeira – é de extrema importância para este estudo. Esse crítico, juntamente com Nunes e Lima, aproximou a literatura de Lispector ao pensamento fenomenologista do existencialismo, teoria filosófica que servirá de suporte na análise sobre o romance A paixão segundo G.H. que será feita neste trabalho.

Olga de Sá expõe alguns pontos da análise crítica de Massaud Moisés que fazem essa união entre a literatura e tal corrente da Filosofia. Acreditamos ser útil reproduzir esses pontos por entendermos que eles possuem forte influência nas análises posteriores da literatura clariceana que assumem um caráter filosófico. A esses pontos seguirão breves comentários de nossa própria autoria.

1º - “As personagens são destituídas de imaginação ou vida interior profunda, atentas ao ir-sendo diário.” (SÁ, 1979, p.47)

As personagens de Clarice não possuem consciência plena de sua existência. O que lhes motiva à vida é o cotidiano banal no qual acontecem alguns “flashs” de epifanias responsáveis pelo conhecimento, por parte desses personagens, de que a vida acontece, existe de fato.

Elas não apresentam consciência anterior ao “instante privilegiado” no qual se encontram no momento da narração. Essas personagens também são ingênuas e refletem apenas o que sentem, segundo suas sensações.

2º - “A contista [lembremo-nos de que Massaud faz uma análise de contos da autora] registra a espessura trágica do cotidiano de vidas internas. (...) [As personagens] são, antes, símbolos, personificações, índices de mediania e sua verossimilhança deve ser referida a eus-coletivos, eus-cidades ou eus- humanidades” (SÁ, 1979, p.48).

Assim, as personagens são representações dos grandes enigmas vividos pelo homem moderno. Ou seja, pode-se concluir que a introspecção não é das personagens, mas sim da própria autora. Ela é quem sente tais dramas e os apresenta em suas narrativas por meio de personagens ficcionais que não

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representam a realidade, mas “constituem mais modos de ser ou situações- paradigmas do homem no mundo, que representações ficcionais de pessoas reais” (SÁ, 1979, p.48).

3º - “Por isso, mantém entre si um diálogo sem comunicação, ou em que a comunicação só se estabelece indiretamente” (SÁ, 1979, p.48).

A escrita clariceana é um diálogo em forma de monólogo. Essa comunicação a qual se refere Moisés é a conversação entre o eu com o outro de si mesmo, o que confirma o processo de alteridade que está presente na narrativa de Clarice Lispector. É um diálogo consigo mesma, embora na condição de outro de si mesma. É uma interlocução individual do drama existencial da própria autora, que pode ser perfeitamente verificado quando, dentro da história, a autora e refere a si mesma na 3ª pessoa.

4º - “Apesar disso, o projeto existencial dessas personagens é sempre um projeto linguístico. O ir-sendo existencial se revela e se constrói por meio de palavras. O ir-sendo pela linguagem se une com a noção de finitude irreversível do tempo. O ser toma consciência de caminhar para a morte e o nada”. (SÁ, 1979, p.48)

Esse ponto é, talvez, o que mais interessa, por trazer à tona todo o projeto escritural da autora, que utilizou a linguagem para materializar a existência. A expressão verbal em Lispector é a responsável por traduzir o mundo à sua volta ao mesmo tempo em que foi utilizada para traduzir a pessoa, o humano chamado Clarice Lispector. À linguagem, portanto, é atribuído o papel de ser o elo de ligação entre o ser e a existência, cuja plenitude se encontra no jogo de palavras. Este trabalho também visa explicar como Clarice significou a existência no poder da palavra, uma vez que, em sua literatura, palavra é vida e a vida é ressignificada na palavra. A linguagem também assume nessa visão o papel de Outro, uma vez que mostra ao eu quem ele é.

5º - “O “viver” das personagens significa inconsciência, respeito pelo oculto do ser” (SÁ, 1979, p.48).

Quando tomam consciência da existência, as personagens são coisificadas na aproximação ao objeto. É por isso que os bichos são tão frequentes na literatura da contista, pois eles, simplesmente vivem, não possuem consciência plena de sua existência, nem possuem “a percepção do cotidiano à sua volta” (SÁ, 1979, p.48)

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porque não dominam a linguagem e por isso vivem num profundo estágio de existência vazia.

6º - “O tom bíblico característico de alguns contos, e música de fundo de outros, expressa uma das possíveis saídas para a naúsea existencial, que acompanha a descoberta de que o homem ignora a própria razão de viver e é condenado a uma solidão incurável.” (SÁ, 1979, p.49)

A representação do sobrenatural nessa literatura é obtida de tal forma a apresentar-se como uma pseudo-saída para a inefável condição existencial. O contato com o divino se estabelece em uma via de mão-dupla: o divino se humaniza e o humano se diviniza na busca das explicações dos fatos da realidade existencial.

7º - “Donde a ficção de Clarice Lispector não interpreta o mundo, anseia refleti-lo como „aparece‟ e na profundidade psicológica, que sua imaginação sonda (...) participa do chamado “realismo mágico”, mostrando-nos a face oculta do ser, revela-nos o perigo maior que nos espreita no recesso da alienação e nos convoca para, por meio da arte, reconduzir-nos ao rumo certo” (SÁ, 1979, p.49).

A literatura clariceana descortina o eu, escancara a profundidade do íntimo do ser, trazendo à tona a face reservada do Ser, não mais como um ser que vive, mas como um ser que explica sua exterioridade. Clarice se desnuda em sua literatura. Deixou às claras, por meio do objeto artístico, a sua identidade de ser existencial. E como a matéria para essa descoberta é a arte literária, não tem como aquele que entrar em contato com essa matéria linguística não se desnudar também, em um processo de alteridade literária inevitável.

Apesar de ter estabelecido essa análise a partir das narrativas curtas de Clarice, o pensamento de Massaud Moisés será de extrema utilidade nesta análise romanesca. A visão negativa do crítico de que os contos da autora são uma preparação de seus romances esqueceu de levar em consideração que toda a literatura de CL é uma busca incessante de experimentação da existência. O que se iniciava nos contos ecoava até seus romances, não para efeitos de complementação, mas como forma de continuar um ciclo infinito de investigação existencial.