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3 FILOSOFIA E LITERATURA: A LINGUAGEM EXPERIMENTANDO A EXISTÊNCIA

4.1 JANAIR: O OUTRO SOCIAL

A figura de Janair, utilizada no romance, dentre outras formas, também pode ser vista como uma imagem alusiva à luta de classes, tão presente no Brasil de Clarice, assim como – embora de maneira diferente – subsista na nossa sociedade atual.

Atribuir característica ideológica à literatura de CL é tarefa das mais sensíveis, pois podemos incorrer no erro de apresentarmos o romance criado por ela como cartilha político-social, o que não acontece na prática. Esse é mais um dos temas abordados pela autora da forma com a qual ela desenvolveu todos os seus textos: dizendo sem falar, no silêncio, nas entrelinhas em busca da reflexão filosófica acerca da existência.

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A divisão de classes se concretiza na obra quando da condição de G.H. divergente da de Janair. G.H. – mulher rica, divorciada, independente, de boa condição financeira, sem filho (veja os traços de mulher moderna) e habitante de uma cobertura de frente para o mar no RJ – divide o espaço com Janair, pobre e empregada doméstica (em um período em que essa profissão era menosprezada e não oferecia boas condições de trabalho). Do luxo do apartamento de sua patroa, para Janair sobrou apenas um quarto, um cubículo, localizado ao final do corredor, sujo e úmido e que acumula duas funções: tanto serve de moradia para o ser que limpa e organiza a casa da madame, como também é utilizado como depósito das coisas que não se utiliza com frequência no apartamento.

A própria narradora deixa clara essa divisão social e agora até acentua a hierarquização a partir dos cômodos do apartamento:

Começaria talvez por arrumar pelo fim do apartamento: o quarto da empregada devia estar imundo, na sua dupla função de dormida e depósito de trapos, malas velhas, jornais antigos, papéis de embrulho e barbantes inúteis. Eu o deixaria limpo e pronto para a nova empregada. Depois, da cauda do apartamento, iria aos poucos „subindo‟ horizontalmente até o seu lado oposto que era o living, onde – como se eu própria fosse o ponto final da arrumação e da manhã – leria o jornal, deitada no sofá, e provavelmente adormecendo (LISPECTOR, 2009a, p.33).

G.H. sabe que precisará de forças para adentrar no quarto que até o dia anterior ao do relato era habitado pela empregada, por isso adia o máximo possível o trajeto entre a mesa na qual se encontra fazendo bolinhas com o miolo do pão e o cômodo da casa. Mas por que ela precisa ir até lá? O que a motiva a seguir nessa caminhada? Por que recua adiando sua chegada ao quarto? Por que ela sabia que algo iria lhe acontecer naquele espaço, já sentia que uma grande descoberta interior estava prestes a acontecer.

Lembremo-nos ainda de que “cauda” (citação anterior) remete à última parte (o fim) de um animal. O apartamento é então apresentado como mais do que um simples local, ele é visto como um organismo vivo, uma célula que gerará vida: uma nova G.H. É na cauda também, que fica próxima ao ânus (excretor de fezes), onde fica o que deve ser expelido. Depois do quarto, G.H. fizera planos de “subir” “horizontalmente” ao lado “oposto” deixando claro que no apartamento (na vida de

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G.H.) existem dois espaços claramente demarcados: um para os empregados, outro para as patroas, como em uma pirâmide.

Só desce quem já está no topo. Sendo assim, ir ao quarto da empregada era para a narradora rebaixar-se ao mais repugnante lugar em que poderia se encontrar uma dama socialmente reconhecida como ela. Esse é o esforço que a narradora tem de fazer: descer! O que se transforma em uma tarefa extremamente dolorosa e angustiante, como sentirá um pouco depois. O que a move é o ódio, combustível da relação de alteridade que se dá entre G.H. e Janair.

Sartre estabelece essa relação de ódio baseada no reconhecimento, no Outro, da liberdade que possui: “aquilo que odeio no Outro não é tal ou qual fisionomia, este ou aquele defeito, tal ou qual ação em particular. É a sua existência em geral, enquanto transcendência-transcendida. Eis porque a ira encerra um reconhecimento da liberdade do Outro” (SARTRE, 2015a, p.509). O ódio sentido por G.H. é apenas pela existência de sua empregada e por se ver obrigada, pelas regras sociais que condicionam sua posição econômica, a conviver com sua algoz, o olhar que a intimida. Mesmo na distância, a empregada continua a “olhar” sua patroa.

Esse sentimento (tido pela dona do apartamento) transformou o trajeto até o quarto em um verdadeiro calvário. No capítulo7 em que narra o momento em que se levanta da mesa é nítida a aflição sofrida no ato que em alguns minutos irá se concretizar. A narrativa nos prepara para uma terrível derrocada, e o leitor é, então, levado a também se preparar, pois a queda de G.H. é também a sua.

O apartamento é apresentado como uma pirâmide erguida por “centenas de operários práticos” (LISPECTOR, 2009a, p.35). Ao jogar o cigarro pela janela, ela se dá conta do despenhadeiro no qual se encontra seu apartamento. G.H. olha para baixo: “treze andares caíam do edifício” (LISPECTOR, 2009a, p.35). Semanticamente os vocábulos pirâmide, despenhadeiro e caíam reforçam o movimento de descida sofrido pela narradora-personagem, uma descida pior do que todas as outras, uma vez que essa a levará para a base da pirâmide social: ao quarto da empregada, local inapropriado para uma mulher rica e bem sucedida.

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O romance não foi dividido por Clarice em capítulos. Há o espaço em branco que demarca uma pausa entre um momento e outro a ser narrado. Em nossa visão, essa pausa consiste em uma tomada de fôlego para o prosseguimento do conteúdo a ser narrado. A experiência é sinistra e necessário é, pois, “aliviar” o corpo e a alma nessa empreitada. Decidimos, como já é consensual, considerar essas pausas como capítulos. Esse ao qual nos referimos, por exemplo, se fosse obedecida essa organização em capítulos, seria o 3º.

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A alteridade entre a patroa e a empregada que se analisa aqui é construída, também, pela concepção de corpo estabelecida por Sartre na relação do Ser-para- Outro.

Para o filósofo, o corpo constitui-se como a complementariedade de duas ideias: 1 – “O centro de referência indicado em vazio pelos objetos utensílios do mundo”; 2 – “Contingência existida pelo Para-si” (SARTRE, 2015a, p.426). Isso significa que o ser não é visto como simples órgão fisiológico, ou seja, o corpo é a possibilidade de existência do Outro e é reconhecido posteriormente à consciência da existência do Outro como ser que me faz ser: “o corpo não é o que primeiro manifesta o Outro a mim” (SARTRE, 2015a, p.427). A relação que se dá entre o eu e o Outro não é, portanto, relação de exterioridade (concretizada pela presença do corpo do Outro diante de mim); mas sim, uma relação de interioridade: “o Outro existe para mim primeiro, e capto-o como corpo depois; o corpo do Outro é para mim uma estrutura secundária” (SARTRE, 2015a, p.427).

O que existe primeiro é o olhar que me vê e me constitui ser. Após essa consciência é que me dou conta do corpo do Outro. Isso significa que o Outro não precisa existir primeiro enquanto corpo para me ver, uma vez que, assim como o corpo, o olhar não se trata de um ser fisiológico. O Outro existe, pois, como olhar a me observar nos objetos – utensílios do mundo, como relação de ausência. Janair não se encontra mais com G.H. em seu relato, mas as coisas preservam a presença da empregada, que continuava, mesmo ausente, a olhar G.H..

Janair, analisada na perspectiva de sua condição social, ganha mais poder enquanto Outro quando, mesmo na ausência, mostra-se como olhar observador de G.H. Essa primeira relação de alteridade estabelece-se no vazio.

O quarto está vazio, o guarda-roupa está vazio, as figuras representadas na parede contornam e tomam forma em um vazio, o que representa o vazio existencial vivido por G.H. que mergulha no seu próprio vazio: o nada existencial.

O próprio vazio do quarto é a presença de Janair indicada na própria ausência, juntamente com os objetos (cama, guarda-roupa e a janela utilizada pela moradora do quarto para observar a vista do apartamento – veja a indicação de Janair enquanto olhar observador) que me fazem aparecer como corpo diante do corpo do Outro e me fazem, então, ser transcendência-transcendida do Outro, concretizando, assim, a relação de alteridade. A presença de Janair está marcada

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nesses objetos-utensílios. É a cama utilizada por ela; é o local onde ela guarda suas roupas; é a janela na qual ela teve acesso ao mundo de fora. Tudo no quarto é presença da empregada.

Mas se a luta de classes na visão ideológica é representada no eixo vertical, indo do mais poderoso para o mais vulnerável, a relação entre G.H. e sua empregada é horizontal. Apavora à madame o fato de ter de conviver no mesmo plano que sua funcionária; ela sabe que a alguns passos encontrará um ambiente inóspito e inadequado a sua posição e que sempre fora habitado por uma mulher de condição inferior. Até que, como possuída por uma obsessão, a narradora, enfim, resolve ir em direção ao quarto. Quando entra, a surpresa foi inevitável: ao encontrar um ambiente inteiramente limpo, G.H. se enche de um desagrado físico.

O gesto de abrir a porta do quarto (ação adiada desde o início do relato) é mais do que uma simples ação. G.H. estava iniciando ali seu processo de autodescoberta, um procedimento de inicialização do descobrimento de si própria, o que se reforça pela sensação de oco expressa por ela, oco que não é apenas do quarto, mas também do vazio que existe em seu ser, o nada que nela habita. Revirar esse nada é que gera o desconforto e o conflito existencial.

A ação de adentrar o ambiente repugnante é movida, como já se disse, pelo ódio, que reforça a luta de classes a que se alude nesta dissertação. Ela se sente incomodada com a limpeza deixada pela empregada e, pior, uma limpeza não autorizada: “não contara é que aquela empregada, sem me dizer nada, tivesse arrumado o quarto à sua maneira, e numa ousadia de proprietária o tivesse espoliado de sua função de depósito” (LISPECTOR, 2009a, p.36). O orgulho de G.H. foi brutalmente ferido pela liberdade de Janair, pois o poder exercido sobre essa por aquela, confirmado pela demissão (G.H. possuía, ou pelo menos pensava possuir Janair em suas mãos) não foi suficiente para eliminar, derrotar a figura da empregada. Com o poder que possui, G.H. demite Janair, no entanto, a empregada ainda encontra condições de arrumar seu quarto, um pedaço de G.H. que ela (Janair) possuía. Sem permissão, a funcionária interferiu no espaço de sua patroa; mais do que no quarto, a mulher pobre – portanto inferior – mexeu no “ser” de sua madame, o que gerou nessa um grande desconforto.

Ao entrar no quarto (ação que simboliza a descida, a queda), G.H. ainda se sente incomodada com o fato de ter descido até a ala dos empregados, o que a faz

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tentar mudar a posição simbólica do quarto, primeiro elevando-o ao “nível incomparavelmente acima do próprio apartamento” (LISPECTOR, 2009a, p.37). Em seguida, logo o transforma em um minarete (torre – parece star, pois em um castelo), lugar de onde, além de ficar mais elevada em relação aos outros, terá uma visão ampla de tudo o que deseja ver.

A degradação ocasionada pela “incursão” em si esma se acentua quando ela se depara com o desenho deixado por Janair na parede do quarto. Trata-se de uma imagem à carvão de três figuras: um homem, uma mulher e um cachorro. G.H. logo se dá conta de que ali é a representação dela mesma: “olhei o mural onde eu devia estar sendo retratada [...] a figura na parede lembrava-me alguém, que era eu mesma” (LISPECTOR, 2009a¸ p.39,40).

Ao se deparar com o desenho, o processo de autoconhecimento se intensifica e G.H. mergulha na relação de alteridade com Janair que, pela primeira vez, ofereceu um julgamento da madame que narra o relato, um julgamento de alguém de fora do ciclo social da patroa: “havia anos que eu só tinha sido julgada pelos meus pares e pelo meu próprio ambiente que eram, em suma feitos de mim mesma e para mim mesma. Janair era a primeira pessoa realmente exterior de cujo olhar eu tomava consciência (LISPECTOR, 2009a, p.40). G.H. é, então, ferida por se ver em um Outro inferior a ela. Seu ego é inflamado e ela não aceita quem a julga, ou pelo menos não quer aceitar, mesmo sabendo que não há outra saída.

Aqui se inicia o processo de alteridade vivenciado pela narradora-personagem em toda a sua narrativa. O papel de Janair é escancarar o eu de G.H., que se vê desnudada por alguém inferior à sua condição de mulher rica. Esse processo desencadeia uma série de reações na narradora: nojo, repulsa, desconfiança, desconforto, mal-estar. Essa mescla de sentimentos será o combustível do ódio sentido por ela e que impulsionará todo o processo de relacionamento com o Outro, como se verá mais adiante.

Janair possuía um alto poder de visão. O silêncio que é dado às empregadas domésticas não a impediu de observar G.H. A narradora do relato se dá conta desse poder de sua empregada quando percebe que essa havia desfrutado melhor da vista que se tinha do apartamento a partir da janela do quarto. Como pode a empregada ver mais do que a patroa? Na verdade essa força observadora de Janair é o que torna possível G.H. de se ver a si mesma.

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Ao se ver, ao se perceber no Outro, o eu sofre uma desestabilização por não se aceitar conforme essa visão de outrem. Mesmo sabendo que apenas o Outro é capaz de me ver por completo. Ele enxerga em mim atitudes, expressões, sentimentos, que muitas vezes eu mesmo sou incapaz de enxergar. Aceitar do Outro uma visão de mim que não é clara a mim mesmo, é uma confirmação de minha fragilidade, de minha impotência. G.H. entregou, portanto, toda a sua subjetividade, sua liberdade ao seu Outro, sua empregada.

O jogo se inverteu: G.H. desceu até o quarto da empregada e com essa descida perdeu o poder social que pertencia. Seu valor social já não importa mais. Ela não é mais uma senhora da alta sociedade, vivendo em semi-luxo numa cobertura no Rio de Janeiro. Agora é SER, e um ser preenchido de nada, de vazio, o nada existencial.

É por isso que a luta de classes presente nesse romance de CL não se apresenta da mesma forma que nos textos ideológicos. Aqui a luta de classes se confirma como luta existencial, uma luta na qual quem mais bens possui se enclausura numa bolha social conforme as regras que conduzem seus pares – as madames ricas de uma sociedade desigual –, enquanto quem menos têm – aqueles que servem aos outros do grupo anterior – possui a liberdade necessária para descobrir a existência. Janair é socialmente inferior a G.H., mas no plano da existência é perceptivelmente superior, uma vez que ela possui a chave da existência de sua patroa. CL consegue ressignificar, dessa forma, a luta entre TER x SER.

O ódio que G.H. sente não é apenas por Janair; é um ódio coletivo a todos que pertencem a mesma classe social de empregada. Sartre afirma que “o ódio é ira de todos os Outros em um só Outro” (SARTRE, 2015a, p.510). A narradora possui o conhecimento de que as empregadas é quem são as verdadeiras donas das patroas; são elas (as funcionárias) quem possui a guarda dos objetos pessoais e valiosos das madames; quem sabe onde estão, quantas são e como usar as joias da patroa; quem possui o domínio da casa, cuidando, zelando, observando tudo o que se passa dentro dela; quem sabe o que tem e o que falta na geladeira da mansão. O poder da madame é um poder imaginário, socialmente construído; elas são apenas figurantes no mundo da existência. Um poder possuído por G.H., mas que na verdade não existe, uma vez que não impediu a empregada de assumir o controle

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da situação no jogo da existência e se apresentar como olhar inquisidor para a patroa frágil e existencialmente desestruturada.

G.H. é revelada a si mesma no olhar de sua empregada, em um processo, segundo Sartre, guiado pela vergonha. A vergonha de ser visto e se olhar como um objeto por Janair deixa G.H. em alerta, que toma consciência de sua existência. Sobre isso, Sartre afirma:

A vergonha ou o orgulho me revelam o olhar do Outro e, nos confins desse olhar, revelem-me a mim mesmo; são eles que me fazem viver, não conhecer, a situação do ser-visto. [...] É o reconhecimento de que efetivamente sou este objeto que o Outro olha e julga (SARTRE, 2015a, p.336).

O olhar de Janair transformou G.H. em um novo ser. Esse processo de transformação, de metamorfose em si mesma, deixou-a perceber que não era nada, em relação ao que entendia de si antes da experiência. Receber do outro essa nova identidade causa dor e sofrimento, como todo processo de metamorfose causa.

O desespero de G.H. é que ela é vista e se descobre, vê-se julgada por alguém que é inferior a ela; alguém que é descartável, ou seja, facilmente substituída (G.H. decidiu entrar no quarto para arrumá-lo para a nova empregada que iria contratar) por outra empregada no dia seguinte. Mesmo doloroso, G.H. não têm como fugir desse relacionamento, uma vez que não se pode impedir que o Outro me veja por completo e continuamente. E sem o Outro não há ser; não há como efetivar o eu (o ser-que-está-sendo) sem o olhar do Outro: “basta que o Outro me olhe para que eu seja o que sou” (SARTRE, 2015a, p.338).

Dentro do quarto, a narradora, depois de se ver em Janair, descobre um Outro que a observa de maneira também feroz. É a barata. É sobre essa segunda relação de alteridade presente no romance A paixão segundo G.H. que vai tratar a próxima seção. Como se trata do entrelaçamento entre humano e animal, faz-se importante, antes de se ir para o “x” da questão, apresentar uma breve contextualização da relação homem-animal estabelecida ao longo da humanidade. Ela será importante para se compreender o propósito literário de Clarice Lispector nesse romance. Para isso se seguirá o pensamento de Derrida sobre a relação entre animal e literatura e o de Evando Nascimento, que explica a presença animal na literatura clariceana.

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