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BENEDITO NUNES: “LITERATURA EXISTENCIAL”

2 CLARICE E A CRÍTICA

2.4. BENEDITO NUNES: “LITERATURA EXISTENCIAL”

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Outro crítico importante a analisar a obra de CL foi Benedito Nunes, pessoa com quem a autora conviveu em entrevistas, recepções, em sua casa e na casa de amigos e em outros momentos de suas vidas. Nunes foi um dos primeiros e o mais incisivo crítico a tratar da questão filosófica da arte literária, unindo a filosofia e a literatura por meio do trabalho com a linguagem.

Para o crítico e filósofo, embora em campos conflituosos e inseparáveis, Filosofia e Literatura são “aquela união convertida em tema reflexivo único” (NUNES, 2009a, p. 24). A literatura é utilizada pela investigação filosófica como objeto de sua indagação, servindo assim de instrumento de concretização do abstrato mundo dos questionamentos. A arte literária, acredita Nunes, descortina o mundo dos mistérios, sugerindo, portanto, o método mais eficaz para a investigação filosófica (NUNES, 2009a, p.29).

Para o estudioso, o elemento de união entre esses dois campos do saber é a linguagem, dado que as duas se apresentam como expressão linguística do pensamento. Por isso, é quase indispensável tratar filosofia e literatura de maneira indissociada. Juntas, as duas práticas revelam a existência ao ser, que se descobre inseguro e instável por não possuírem a essência da existência. Ambas as formas de pensar são responsáveis por apresentar modos de se chegar a essa descoberta, embora esse não seja um processo simples e glorioso, como não o é no que acontece com G.H.

É seguindo essa linha litero-filosófica de crítica que o escritor analisa a obra de CL. Ele não se dispõe a analisar a obra dela pelo viés da filosofia como se esta fosse a teoria para estabelecer os parâmetros de sua análise. Ao contrário, Benedito Nunes, em detrimento do estudo estrutural da criação literária, buscou na obra de Clarice uma interpretação para as concepções filosóficas de seu interesse. O crítico preocupou-se em “explicar” a criação literária de concepção existencial que ela possuía de seu mundo.

Olga de Sá (1979, p.50) deixa claro que Benedito Nunes não se preocupou em traçar um perfil filosófico pessoal da escritora, ao invés disso, focalizou em associar as principais concepções pessoais da autora com o pensamento teórico da filosofia.

Os trabalhos de Benedito serão de grande importância para esta dissertação. Primero pela lúcida e irrefutável aproximação da literatura com a Filosofia, uma vez

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que esse campo de saber serve de base para esta pesquisa uma teoria filosófica. Em segundo lugar, Nunes foi um dos primeiros e quem melhor traçou uma aproximação entre a obra de CL e a teoria existencialista de Sartre. Por isso, agora serão apresentados alguns textos produzidos pelo crítico sobre CL bem como as principais informações contidas neles.

Benedito Nunes escreveu livros, artigos e ensaios. Sobre CL destacaremos o ensaio publicado em 1966, pela Editora do Governo do Estado do Amazonas e reeditado em O dorso do tigre, em 1969 e 1976 (Editora Perspectiva) e em 2009 (Editora 34). Esse texto é intitulado: “O mundo imaginário de Clarice Lispector” e dividido em cinco partes intituladas: “A náusea”; “A experiência mística de G.H.”; “A estrutura dos personagens”; “A existência absurda” e “Linguagem e silêncio”. Nele está contida a análise sobre as cinco obras publicadas por CL até então: Perto do coração selvagem (1944); Laços de família (1960); A maçã no escuro (1961) e A Paixão segundo G.H. (1964). Antes de serem organizado naquelas edições, esses textos foram publicados originalmente no suplemento literário do O Estado de São Paulo no ano de 1965. Preferimos a versão publicada em livros pelas modificações realizadas pelo próprio autor a fim de enriquecer ainda mais suas análises. Serão incluídos, também, outros dois textos reunidos em A clave do poético (Companhia das Letras, 2009): A paixão de Clarice Lispector e A escrita da paixão.

Em A náusea (NUNES, 2009a, p. 93), o autor inicia sua análise inserindo as temáticas contidas na ficção de CL na teoria filosófica da existência. São temas pertencentes ao caráter “pré-reflexivo, individual e dramático da existência humana, tratando de problemas como a angústia, o nada, o fracasso, a linguagem, a comunicação das consciências” (NUNES, 2009, p. 93. [grifos do autor]). Confirmando o que se disse anteriormente, o autor deixa claro que não pretende afirmar que CL tenha recorrido à teoria da filosofia para criar personagens e situações na tentativa naturalista de pôr à prova alguma teoria. Não se trata disso, no entanto,

qualquer que seja a posição filosófica da escritora, o certo é que a

concepção do mundo de Clarice Lispector tem marcantes afinidades

com a filosofia da existência, como no-lo revela, para darmos um só exemplo, a experiência da náusea, que aparece nos contos e romances da autora de Laços de Família (NUNES, 2009a, p.93. [grifos do autor]).

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Prossegue o autor apresentando as definições de náusea estabelecidas por Kierkegaard, Heidegger e Sartre. Para o primeiro, a náusea, diz Nunes, se apresenta como uma “vertigem da liberdade”.

É a vertigem da consciência, como ser precário, falho, não idêntico a si mesmo (Para si), oposto ao modo de ser das coisas (Em si), e que cria, devido à sua própria carência, através das possibilidades que projeta no mundo, o sentido da existência (NUNES, 2009a, p. 94)

Para Nunes, os três filósofos apresentam definições semelhantes sobre esse sentimento. Porém, Heidegger, segundo o professor paraense, a diferencia do medo. O medo se configura pela consciência do que se tem medo, enquanto a angústia – resultado da náusea – não se revela ao ser, não se sabe o porquê se sente isso.

O pensamento sobre esse tema trazido por Sartre, para Benedito, é aquele que afirma ser “a forma emocional violenta da angústia” (NUNES, 2009a, p.93). É o sentimento presente no romance de Sartre, cujo personagem principal é Roquetin. O conceito de náusea apresentado por ele se baseia no pensamento desses três filósofos por acreditar que os personagens clariceanos passam por momentos enauseantes, em momentos decisivos de suas vidas, o momento em que os personagens se deparam com o grande questionamento existencial.

O crítico nos traz, para exemplificar, alguns personagens que viveram esses momentos de experiências enauseantes: Ana, no conto Amor ; Martim, de A maçã no escuro; G.H. em A paixão segundo G.H..

Para a personagem do conto, a náusea acontece quando se depara, na volta para casa, com um cego que masca chiclete. A personagem, organizada, quieta, se desestabiliza com o ser diante dela e sofre uma profunda crise, que toma conta de seu corpo.

Com o personagem masculino, Martim, o momento da náusea se dá quando, no “caminho da conquista de si mesmo, [da] descoberta e [da] tentativa de assimilação dos elementos sensíveis, brutos, penumbrosos, proliferantes e fortes da vida” (NUNES, 2009a, p.97-8) se depara com as fezes de vaca presentes num curral. Nesse espaço, “coisas afins se entremesclam em mistura hostil e repulsiva: matéria-prima com a sua própria luminosidade, energia com a sua auréola, agitação obscena com seu hálito e sua fragrância” (NUNES, 2009a, p.98).

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A protagonista de A paixão segundo G.H. experimenta a náusea com o aparecimento inesperado, no quarto limpo e arejado, da barata, inseto em torno do qual se avolumam, na personagem, “sentimentos contraditórios”. Segundo o autor, ao se deparar com o inseto esmagado, ou seja, na condição de vítima, G.H. se dá conta do ser que existia na barata, que naquele momento passa a ser a própria G.H., ou seja, a personagem se dá conta de que ela e a barata são um próprio ser, um participando da vida do outro, um sendo o outro. O estranhamento é se ver em uma barata, por meio da qual G.H. alcança a ancestralidade de sua própria existência.

Nunes, (2009a, p.100) compara a experiência da náusea vivenciada pelos três personagens clariceanos da seguinte forma:

em “Amor”, a náusea é a crise que suspende a vida cotidiana da personagem. A lembrança dos filhos, a presença do marido, ainda têm forças para reter Ana à beira do perigo de viver, que diante dela se abre como um abismo sem fundo. Em A maçã no escuro, o estado nauseante associa-se ao descortínio instintivo que coloca Martim no plano retificado e orgânico da Natureza. Mas já em A

paixão segundo G.H., o mesmo estado nauseante significa

“desorganização” completa do ser social da enigmática personagem. Os sentimentos comuns (o sentimentário) não acodem, como no conto de “Laços de família”, por nós referido, para reter G.H. à beira do abismo do Ser.

Em A experiência mística de G.H. (NUNES, 2009), Benedito Nunes continua a observar a náusea na literatura de CL a partir do romance que narra a aventura mística de G.H. Nesse ensaio, o autor inicia suas palavras estabelecendo a diferença da experiência da náusea vivida por Roquetin, personagem do romance de Sartre, A náusea, e a personagem G.H., protagonista clariceana. Para Nunes, esse sentimento em Sartre não envolve o ser por completo, há uma distância entre o ser e essa sensação. “Roquetin não adere ao absurdo da existência revelado pela náusea, nem se entrega ao ser indiferenciado, prolífico, repugnante e sedutor que o domina, provocando em sua consciência um misto de nojo, de repulsa, medo e lucidez” (NUNES, 2009, p.103).

Já em CL, o processo se dá ao inverso. G.H. se deixa envolver completamente pela experiência da náusea. “Clarice Lispector entrega a personagem de A paixão segundo G.H. ao completo domínio do ser amorfo e vivido que transparece no estado nauseante” (NUNES, 2009, p. 103-104).

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Como o título do ensaio sugere, Benedito propõe um estudo místico da experiência vivida por G.H. ao entrar em contato com a gosma, substância dotada de existência que uniu o inseto à personagem em uma única experiência de Ser. Para isso, o autor busca exemplos de místicos do Ocidente e do Oriente que intensamente viveram a experiência inefável do encontro com o divino. Mas é em São João da Cruz que Nunes busca, talvez, uma “explicação” da experiência de G.H..

Nunes explica pormenorizadamente o processo inefável de encontro com o Nada vivido pelos místicos. O crítico literário e filósofo afirma que ao se desprender do corpo, ao romper todas as ligações com o terreno, o místico permanece na zona que São João da Cruz chama de noite dos sentidos. É nessa zona que ocorre o “vazio interior”, o vazio da alma, a libertação total do Ser em relação ao corpo que o sustenta. Para Nunes essa zona é vivida pela personagem G.H.

O abismo para onde salta G.H. é o próprio abismo da existência, que nada sustenta. Sua participação primeira é o ser indiferenciado, espécie de substância spinozista, sem atributos e sem modos, e, no entanto, dotada de viva atualidade, puro élan, matéria-prima aristotélica, desenfreada, em estado de fusão, suscetível de receber qualquer forma, embora não necessariamente sujeita a forma – maré, lama cosmogônica, caos anterior ao cosmo (NUNES, 2009a, p.105).

Em G.H. a barata foi a responsável por essa “terrível descoberta”. O ser que pulsava de vida na personagem, em um processo de identificação com o inseto, encontrou o Nada, onde inexiste o ser. Esse processo acontece em meio a uma “alegria infernal”.

Ao alcançar o êxtase de toda essa experiência mística, ao se deparar com a desnudação do eu, G.H. encontra o caminho de volta ao humano, à experiência da realidade, ao “gosto das coisas dimensionadas pelo cotidiano”. Essa experiência também é dolorosa porque com ela acontece “a imolação total do Eu”, o sacrifício da consciência. Esse sacrifício se dá, segundo Benedito, na degustação “totêmica” da barata, no momento em que a personagem central experimenta da massa branca da barata; uma experiência paródica da comunhão cristã.

Entretanto, a experiência mística pela qual passa a personagem não é a mesma vivida pelos santos da igreja. Esses passam por todo um processo inefável que culmina no encontro ao ser sagrado, portanto, exterior a si. Já a narradora

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encontra-se com o nada que habita o seu próprio ser (portanto, o processo é interior). O desconforto que gera a náusea encontra sua justificativa na descoberta de si próprio: o nada. A essência da vida é alcançada e o ser se depara com uma profunda desilusão: o que fazer? como prosseguir com a vida? O processo místico em CL, portanto, constitui-se de uma descoberta solitária de si, mesmo ainda que o outro seja necessário na realização dessa descoberta.

É no relato de todo esse acontecimento, em tom de apelo, de súplica, de confidência a um personagem oculto, que CL impõe sua marca pessoal de escritora, fazendo de sua experiência e da materialização dela (a escrita), processos únicos de experimentação do místico.

Outra questão abordada por Nunes é a linguagem. Já vimos anteriormente, e não é excedente reforçar, que nessa autora a linguagem é a personificação da coisa, é meio pelo qual a coisa se transforma, ressignificadamente, em coisa novamente, agora mergulhada nas concepções pessoais e intimistas da romancista. Nunes faz uma brilhante explicação desse processo linguístico-existencial. Por sua importância faz-se necessário apresentar na íntegra as palavras de Nunes (2009a, p.110):

parece-nos que o conteúdo místico da experiência da personagem, aqui resumida em linhas gerais, é fundamental para compreendermos as intenções da romancista. Precisamos levar em conta esse dado para não corrermos o risco de aplicar à narrativa critérios inadequados, um dos quais seria, por exemplo, exigir que ela obedecesse a um padrão de clareza ou de expressividade direta. Se o objeto de A paixão segundo G.H. é, como vimos, uma experiência não objetiva, se a romancista recriou imaginariamente a visão mística do encontro da consciência com a realidade última, o romance, dessa visão terá que ser, num certo sentido, obscuro. A linguagem de Clarice Lispector, porém, não é nada obscura. Obscura é a experiência de que ela trata. (...) a atitude de G.H., abdicando do entendimento claro para ir ao encontro do que é impossível compreender, lança a linguagem numa espécie de jogo decisivo com a realidade, que mais reforça o sentido místico do romance de Clarice Lispector.

Continuando, em A estrutura dos personagens, a análise do estudioso, como bem sugere o título do escrito, recai na forma como são esquematizados e apresentados os elementos narrativos da prosa clariceana, mais precisamente, os personagens, sem apresentar, no entanto, uma análise estruturalista da narrativa.

Tomando como exemplo novamente os personagens Joana, de Perto do coração selvagem, e Martim, de A maçã no escuro, Nunes retira esses elementos

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narrativos da ficção de CL do grupo dos chamados tipos psicológicos. Para ele, os personagens de CL são “esquemáticos, cujos traços individuais, apenas emolduram a inquietação que os consome e que sobrepõe à identidade pessoal de cada um deles” (NUNES, 2009a, p. 113).

Sobre o tempo e o espaço, o professor paraense, afirma que eles, em Clarice, “compõem-se de dados abstratos”. Os diversos lugares citados nos romances de CL podem pertencer a qualquer cidade. Mas espaço e tempo, enquanto elementos estruturantes da narrativa, seguem em CL o propósito existencialista. Ou seja,

no universo da romancista, o ambiente é Espaço e o Espaço, meio de inserção da existência. As paisagens naturais e urbanas, que não adquirem importância por si mesmas, mas pela maior ou menor carga de coisas que encerram, são situações equivalentes. Traduzem aspectos parciais de uma só situação global. Exteriorizam, integralmente, em cada caso, o ser no mundo da existência humana. Daí a inevitável abstração de particularidades locais, de dados sociais, e, por fim, dos elementos objetivos da realidade (NUNES, 2009a, p.114).

A sensação despertada de que todos os personagens de Clarice, quer dos seus contos, quer dos seus romances, parecem um só se deve justamente a essa configuração existencialista atribuída. Todos os personagens clariceanos estão à beira do encontro com o Nada, à beira de mergulhar profundamente no vazio da existência. “Nesse sentido, é sempre o mesmo homem, o mesmo Ser-aí (Dasein), descobrindo a sua solidão e o seu abandono em meio às coisas” (NUNES, 2009a, p.114). Homem, mulher, criança, adulto ou idoso, o fato é que as personagens de CL são um único ser que se veem abandonados e entregues a sua própria sorte. Seria a própria autora que se representou a si mesma nas várias etapas de sua vida? É o que se acredita e se pretende deixar claro ao longo deste trabalho.

Os personagens lispectorianos estão destituídos de seu próprio EU, em um processo de desconfiguração da identidade, de esvaziamento da alma. São seres que traduzem o Nada. Em CL,

ninguém é ninguém. Cada qual empenhado no fingimento de ser, que a memória estimula e a imaginação conduz, busca a si mesmo para encontrar-se. E o que o homem encontra afinal é quem ele quer ser e não quem ele é (NUNES, 2009a, p.118).

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O outro ensaio de Benedito Nunes, publicado pela Editora 34, é A existência absurda. Nele o autor trata da questão puramente existencialista das obras de CL. Através de temas como a construção do Eu, o autor ensaia uma explicação de como os personagens clariceanos se dão conta da existência que possuem. Esse processo de tomada de consciência acontece em tais personagens quando o Eu se sente ameaçado, deslocado do ser que o abriga, é quando o Eu se depara com o abismo do Nada.

A existência humana, no trabalho de ficção de CL, toma forma a partir do confronto do humano com a coisa em si, aquela que não necessita dos humanos para existir. E o que irá diferenciar um do outro é justamente as idiossincrasias do humano, representado pela subjetividade amplamente explorada pela artista literária. Em meio a essa descoberta de impotência diante da coisa-objeto o humano se vê enfrentado pela “natureza orgânica” do objeto, representado, não poucas vezes pelo animal.

O tema animalístico constitui-se de uma temática muito cara no conjunto da obra de CL. Diversas vezes, em seus escritos, a existência humana é posta à prova mediante à existência animal. Os temas da existência e do ser são, pois, apresentados nas obras da autora por meio da condição animal do ser. Nesse viés o que acontece é uma animalização do humano e a humanização do animal, um prova da existência do outro.

O animal nesse tipo de literatura assume o lugar do Outro, cujo papel fundamental é garantir a existência do Eu. A figura do animal ancestral, presente no romance, é, por exemplo, a porta de entrada para o mundo interior, da essência, do ser. Através da barata, G.H. se descobre em um mundo cruel, triste, infeliz e se sente desamparada para prosseguir. Essa relação entre o humano e o animal se estabelece plenamente pelo olhar, ou seja, vai bem mais além do que simplesmente o globo ocular. É o que Sartre afirma: é preciso ser visto para que o eu se descubra no Outro e assim compreenda a essência de si. Ao se perceber olhada pelo inseto, que não fala – portanto só o olhar é capaz de estabelecer comunicação nesse processo –, G.H. se percebe no vazio existencial.

O último dos ensaios de Nunes reunidos em O dorso do tigre (2009a) intitula- se Linguagem e silêncio. Nele, seguindo a ideia de complementar os cinco textos dessa coletânea, o autor explica como a linguagem se transforma em forma que

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concretiza todas as temáticas apresentadas nos ensaios anteriores de Benedito Nunes.

Esse texto inicia com a afirmação de que a autora conseguiu em A paixão segundo G.H. “levar ao extremo o jogo da linguagem iniciado em Perto do Coração Selvagem, e já plenamente desenvolvido em A maçã no escuro” (NUNES, 2009a, p.125)

O jogo ao qual se refere o autor não aceita o valor depreciativo comumente atribuído a expressões do tipo “jogo de palavras”, “jogo verbal”, como se a autora flertasse com o material verbal. O autor quer deixar claro que faz referência ao caráter estético assumido pelas palavras, quando usadas com intenção artística.

A linguagem utilizada por CL não apenas sugere, torna-se a própria coisa, dá forma ao objeto. Daí resulta a ideia segundo a qual a escrita dessa escritora é a representação, materialização da existência. Isso pode ser percebido com

o jogo estético [da autora], que suspende ou neutraliza, por meio da imaginação, a experiência imediata das coisas, dá acesso a novas possibilidades, a possíveis modos de ser que, jamais coincidindo com um aspecto determinado da realidade ou da existência humana, revelam-nos o mundo em sua complexidade e profundeza (NUNES, 2009a, p. 125).

Apoiando-se no pensamento de Heidegger, Nunes nos apresenta o elemento- chave da questão literária de CL: a linguagem como material da existência. O plano da expressão verbal utilizado exaustivamente pela autora serve, nas obras dela, como uma espécie de “expressão da existência”.

A identidade pessoal e o Ser são mesclados pela linguagem, em uma união íntima entre o mundo das coisas, o mundo real e o mundo da linguagem, que é a expressão daquele.

No jogo verbal praticado por CL o ser é traído pela linguagem: ela consegue expressar o mundo real, o das coisas, no entanto, esbarra-se na expressão do Ser, em sua individualidade.

O ser que conquistamos não é, pois, aquele para o qual o nosso desejo tende, mas aquele que a expressão capta e constrói, e que é, de qualquer modo, uma realidade provisória, mutável, substituível, que oferecemos aos outros e a nós mesmos. Daí a relativa falência da expressão, afetando a comunicação entre os homens. Não nos comunicamos plenamente de ser para ser, segundo o ideal da