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G.H e a barata: uma literatura animal-humanizadora

3 FILOSOFIA E LITERATURA: A LINGUAGEM EXPERIMENTANDO A EXISTÊNCIA

4.2. A BARATA: O OUTRO ANIMAL

4.2.1 G.H e a barata: uma literatura animal-humanizadora

Como se viu anteriormente, ao entrar no quarto, G.H. esperava encontrar um ambiente sujo, desorganizado e totalmente inóspito. A realidade, porém, foi outra: o quarto estava bastantemente organizado e limpo. O vazio do quarto é contrastado apenas com a cama e o guarda-roupa, o único objeto que dentro do vazio do quarto ocultava outro vazio.

G.H., dando continuidade a sua viagem interior, percebe que deveria revistar o móvel. Resolve, pois, encerá-lo “para dar-lhe algum brilho” (LISPECTOR, 2009a, p.45), e decide fazê-lo, pois percebe que a aparência dele não era agradável. Mas ela decide ir mais além, já que se encontra decidida a mergulhar nas águas interiores do seu ser. Decide abrir o guarda-roupa. Era como se estivesse vendo o seu próprio interior: “como o escuro de dentro me espiasse, ficamos um instante nos espiando sem nos vermos” (LISPECTOR, 2009a, p. 45).

A jornada interior da narradora-personagem iniciou-se logo ao entrar no quarto, no entanto, ainda restava um pequeno lugar que abrigava o resto da escuridão que possuía naquele lugar: o guarda-roupa. E eis que surge, do mais recôndito interior dela um elemento grotesco e horripilante: a barata. O inseto ancestral, que “há trezentos e cinquenta milhões de anos se repetiam sem se transformarem” (LISPECTOR, 2009a, p.47), surge despertando em G.H. uma explosão de sensações: alegria, ódio, amor, tristeza, nostalgia. Seja o que for, o

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importante é que a barata inicia um projeto de alteridade repugnante para a narradora.

Esse inseto foi o escolhido por ser o mais perto, dentre todos os animais, do início da vida, do nada, do surgimento de tudo. Antes mesmo de nós, seres humanos, existirmos, a barata lá já estava exatamente como é hoje, resistente a todas as intempéries da vida.

Ao se deparar com a barata, G.H. sente que algo grandioso e inexplicável vai acontecer e é essa sensação que lhe causa medo; medo de saber que foi invadida por si mesma. Tentando se recusar a experimentar esse processo ela tenta esconder seus olhos da barata tentando impedir que a outra lhe olhasse, mas não consegue e é invadida por um misto paradoxal de medo e alegria:

o medo grande me aprofundava toda. Voltada para dentro de mim, como um cego ausculta a própria atenção, pela primeira vez eu me sentia toda incumbida por um instinto. E estremeci de extremo gozo como se enfim eu estivesse atento à grandeza de um instinto que era ruim, total e infinitamente doce – como se enfim eu experimentasse, e em mim mesma, uma grandeza maior do que eu. Eu me embriagava pela primeira vez de um ódio tão límpido como de uma fonte, eu me embriagava com o desejo, justificado ou não, de matar (LISPECTOR, 2009a, p. 51-52).

Aqui já se inicia o processo de alteridade entre G.H., o homem, e a barata, o animal. A exploração de si mesma não se dará na solidão, ela possui algo muito mais forte que ela própria: um ser dotado de toda a capacidade geradora de sua vida íntima:

uma rapacidade toda controlada me tomara, e por ser controlada ela era toda potência. Até então eu nunca fora dona de meus poderes – poderes que eu não entendia nem queria entender, mas a vida em mim os havia retido para que um dia enfim desabrochasse essa matéria desconhecida e feliz e inconsequente que era finalmente: eu!

Eu, o que quer que seja (LISPECTOR, 2009a, p.52) (grifos nossos)

A barata devolveu G.H. a si mesma. E o processo segue, na narrativa, causando uma estranheza incrível de si: “sem nenhum pudor, comovida com minha entrega ao que é o mal, sem nenhum pudor, comovida, grata, pela primeira vez eu estava sendo a desconhecida que eu era” (LISPECTOR, 2009a, p.52).

O animal, representado pelo inseto, começa, pois, a novamente despertar o ódio em G.H., que se vê de posse de seu maior segredo: sua identidade. Esse sentimento ocasionará uma desgraça, outro momento especial na narrativa que se

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desenrola, a morte da barata: “[...] Só que desconhecer-me não me impediria mais, a verdade já me ultrapassara: levantei a mão como para um juramento, e num só golpe fechei a porta sobre o corpo meio emergido da barata - - - -“ (LISPECTOR, 2009a, p.52).

De mulher rica, dona de um apartamento à beira mar, G.H. transformou-se em assassina. O medo que sentia antes, medo maior do que ela própria, transformou-se em ação. Ela não se via capaz de cometer crime. Tanto que em seguida ao ato proibido, toda “trêmula”, ela fecha os olhos e se pergunta: “que fizera eu?” (LISPECTOR, 2009a, p.52).

Mais assustador que a pergunta é a resposta, que veio também em forma de indagação: “que fizera eu de mim?” (LISPECTOR, 2009a, p.52 [grifo meu]). Emblemática porque com essa pergunta G.H. se denuncia a seu leitor como sendo a própria barata. Ao matá-la, G.H. reconhece a condição animal que compõe seu ser.

Assim é que no romance analisado pode-se traçar uma representação do animal na literatura de CL. A exemplo dos autores modernos, citados anteriormente, que abordaram o assunto animalístico, Clarice apresenta o animal com sua força interior capaz de mostrar para o próprio homem sua própria condição de animal.

G.H., a partir desse acontecimento, será vista, por si própria, e se fará ver, como animal. Mas isso não quer dizer que a personagem, à Kafka, tenha se metamorfoseado em um inseto. G.H. continua humana, mas agora ela é um Homem com consciência de sua condição animal. Ela alcançou seu estágio inicial, afinal, como todos os seres humanos, ela é, antes de humana, animal. Ter atingido essa condição foi o suficiente para se iniciar nela um doloroso, angustiante, repugnante, odioso, porém, alegre (“o coração, me batia quase como numa alegria” (LISPECTOR, 2009a, p.51)) processo: é a alegria da alteridade. Mesmo sem saber, ela já sentia a alegria de tudo isso que lhe aconteceu.

Ainda de olhos fechados, ao matar a barata, impera em G.H. uma luta interior que a fez regredir à condição primeira de vida (já simbolizada pela ancestralidade sugerida pelo inseto), agora ela volta a, a exemplo dos bebês, que descobrem o mundo pela boca, sentir o gosto da vida, o gosto de si mesma, ela se transformou no sabor de si própria: “eu toda estava com sabor de aço e azinhavre, eu toda era ácida como um metal na língua, como planta verde esmagada, meu sabor me veio todo à boca” (LISPECTOR, 2009a, p.53).

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Aí vem, então, a pergunta fatal: “o que matara eu?” (LISPECTOR, 2009a, p.53). Indagação que nos prova a transformação que acontecera dentro dela. Nesse momento, outra prova da transformação de G.H. em uma outra G.H., ela passa a se retratar no romance na 3ª pessoa: “essa mulher calma que eu sempre fora, ela enlouquecera de prazer?” (LISPECTOR, 2009a, p.53). Ela própria não se reconhece mais, afinal: quem é essa G.H. assassina?

No entanto, a narradora, enfim de olhos abertos, se dá conta de que o golpe deferido contra o inseto não fora suficiente para a morte dele, a barata ainda estava viva; imóvel, mas viva. Isso inflama na personagem mais ódio ainda, mas um ódio apaixonante – um ódio sem cólera –; como pode ser tão resistente e não obedecê-la no gesto de morte de sua carrasca? Na verdade G.H. tenta, em vão, se desvencilhar do olhar do Outro, mas, a exemplo do que se passou com Janair, a narradora se vê novamente sem o poder necessário diante do Outro, uma situação impotente.

Mas ela não se dá por vencida, luta com toda a sua força, engendra uma luta contra si e “enfim conseguindo me ouvir, enfim conseguindo me comandar – ergui a mão bem alto como se meu corpo todo, junto com o golpe do braço, também fosse cair em peso sobre a porta do guarda-roupa” (LISPECTOR, 2009a, p.54).

No entanto, esse é outro momento de tensão: “eu vi a cara da barata” (LISPECTOR, 2009a, p.54). O olhar, nessa relação com o animal, é algo de extrema significação. Ver significa se ver no Outro, o olhar é, assim, a porta de entrada em si mesmo pelo Outro. A partir do momento que ela “vê”, tudo se clareia, tudo se torna mais transparente e G.H. definitivamente se olha no olhar da barata, enxerga-se como barata, torna-se barata. Ao olhar, ela consegue, nitidamente, descrever a barata. Esse momento é tão significativo no romance que não se pode deixar passar. Veja-se a riqueza de detalhes:

Era uma cara sem contorno. As antenas saíam em bigodes dos lados da boca. A boca marrom era bem delineada. Os finos e longos bigodes mexiam-se lentos e secos. Seus olhos pretos facetados olhavam. Era uma barata tão velha como um peixe fossilizado. Era uma barata tão velha como salamandras e quimeras e grifos e leviatãs. Ela era antiga como uma lenda. Olhei a boca: lá estava a boca real.

[...]

E es que eu descobria que, apesar de compacta, ela é formada de cascas e cascas pardas, finas como a de uma cebola [...]. Ela era arruivada. E toda cheia de cílios. Os cílios seriam talvez as múltiplas

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pernas. Os fios de antena estavam agora quietos, fiapos secos e empoeirados.

A barata não tem nariz. Olhei-a, com aquela sua boca e seus olhos: parecia uma mulata a morte. Mas os olhos eram radiosos e negros. Olhos de noiva. Cada olho em si mesmo parecia uma barata. O olho franjado, escuro, vivo e desempoeirado. E o outro olho igual. Duas baratas incrustadas na barata e cada olho reproduzia a barata inteira” (LISPECTOR, 2009a, p.54-55).

Aí está toda a maestria da autora. CL utiliza-se do jogo da literatura para apresentar agora a nova G.H., um ser animal. Esse é o momento do recebimento da olhada do Outro, quando o eu recebe dele a mensagem de quem se é. Essa não é a descrição da barata, mas sim, a visão de si que G.H. enxerga no seu Outro, não se pode esquecer de que ela agora não é mais apenas G.H., é um animal.

Sartre já advertiu, como se viu anteriormente, que o eu não se enxerga a si próprio. Isso porque ele é incapaz de se colocar na condição de objeto de si. G.H. confirma sua identidade no olhar observador do Outro, brilhantemente escolhido por CL, pelas razões já mencionadas, para alertar os leitores dela da animalidade que também as compõem.

Dentro do pensamento existencialista sartriano o olhar é condição fundamental para se dá a relação do eu com o Outro. Ele diz:

para que o Outro seja objeto provável e não um sonho de objeto, é necessário que sua objetividade não remeta a uma solidão originária e fora de meu alcance, mas sim a uma conexão fundamental em que o Outro se manifeste de modo diferente daquele captado pelo conhecimento que dele tenha (SARTRE, 2015a, p.327)

A barata, apesar de sua ancestralidade, não era conhecida de G.H. A descrição anterior da descoberta do inseto mostra que a narradora estava diante de

um semelhante desconhecido. Somente nesse complexo processo de

descobrimento da consciência de sua própria identidade é que ela se descobre barata como a barata que estava diante dela.

No momento em que é olhada, ou melhor, no instante em que tem consciência do olhar do Outro, o mundo desaba e G.H. perde a percepção do mundo que a cerca. A única coisa que deseja naquele instante é o olhar do ser que a vê. Sartre explica esse fenômeno afirmando que não se pode ao mesmo tempo, perceber o mudo e captar a olhada do Outro, isso porque perceber é também olhar e não se “vê” duas coisas ao mesmo tempo.

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Ao se dissociar do olhar da barata, vem o desassossego, a inquietação do que resta: “a vida me olhando” (LISPECTOR, 2009a, p.56). G.H. declara: “não quero o que vi” (LISPECTOR, 2009a, p.56). E o que ela vê: vê-se dentro dela mesma, não deseja, entretanto, chegar tão longe e descobrir o segredo que encobre a vida: o que ela é. A revelação desse segredo causa náusea: “enquanto eu recuava para dentro de mim em náusea” (LISPECTOR, 2009a, p.56). G.H. fecha, então, novamente os olhos, pois continuar a ver é mexer na ferida aberta que não cicatriza, é descobrir o ser.

No auge de sua náusea, a personagem declara: “a entrada para este quarto só tinha uma passagem estreita: a barata” (LISPECTOR, 2009a, p.58). Como dito anteriormente, o quarto transforma-se em uma metáfora para o ser íntimo de G.H., ao adentrá-lo, pois, ela se enxerga, mas essa visão só se completa com a barata, o Outro que enxerga para ela quem ela é verdadeiramente: “ali entrara um eu a que o quarto dará uma dimensão de ela” (LISPECTOR, 2009a, p.59).

Partindo um pouco para a análise linguística utilizada por CL no momento da narrativa no qual G.H. se depara com a barata pela primeira vez (na edição que utilizamos, 2009, nas páginas entre 46 e 50) conseguiremos entender a sensação de pânico e pavor na qual se encontrava G.H.

Os substantivos escuridão, grito, susto, nojo (uma vez repetido), horror, nudez, desconfiança, escuridão, pobreza, hostilidade, deserto, sarcófago, arrepio, calor, medo (duas vezes repetido), queda, tropeçar (substantivado), fuga, perigo (duas vezes repetido) nos ajudam a nomear a sensação vivida por G.H. naquele momento: pavor. Os adjetivos abafado, morto, secado (particípio com função adjetiva) obsoletas, esturricado, imobilizada, ardente, presa, terror (na função de adjetivo), podem ser úteis na descrição do espaço, o quarto, cárcere do eu, explorado pela personagem. A sensação de prisão e a necessidade de libertação ficam evidentes ao observarmos os verbos repugnara, repelira e tropeçar.

Os substantivos, adjetivos e verbos utilizados pela autora e destacados aqui nos ajudam a entender o momento no qual G.H. se encontra com o Outro que a observa, um momento assustador e inteiramente desconcertante. Até aquele instante, G.H. estava sozinha, no quarto, não havia ninguém para observá-la, apesar do incômodo sentido antes mesmo de adentrar o ambiente, o encontro com o Outro (o ser estranho que me observa e me faz enxergar minha própria identidade) é de

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uma profundidade desestabilizante e assustadora. G.H. começa, então, sentir-se incomodada pelo olhar do Outro e é exatamente isso o que sente o eu ao ser colocado na posição de objeto a ser olhado pelo Outro, processo que faz o eu ter consciência de sua existência.

Esse é o momento que Sartre denominou de vergonha. Com o surgimento do Outro (a barata) o eu (G.H.) se sentiu coagido, vigiado, recuado. Qualquer um nessa situação se sentiria apavorado. Sobre esse momento, o filósofo escreve: “Quando estou só, não posso efetivar meu „ser-que-está-sentado‟; no máximo, pode-se dizer que, ao mesmo tempo, eu sou e não sou este ser. Basta que o Outro me olhe para que eu seja o que sou.”(SARTRE, 2015, p.33). O incômodo para G.H. é esse ser o que se é: lembremo-nos do que ela disse no nico da narrativa: “Como é que se explica que o meu maior medo seja exatamente a ser?” (LISPECTOR, 2009, p.11)

No meio de sua aflição, G.H. faz novo apelo ao seu leitor, a quem já pediu a mão:

- Segura a minha mão, porque sinto que estou indo. Estou de novo indo para um inferno de vida crua. Não me deixes ver porque estou

perto de ver o núcleo da vida – e, através da barata que mesmo

agora revejo, através dessa amostra de calmo horror vivo, tenho medo de que nesse núcleo eu não saiba mais o que é esperança (LISPECTOR, 2009a, p.59) (grifos nossos).

O que G.H. está dizendo, na verdade, poderia servir de tradução para o que afirma Sartre, quando ele ensina que no mais profundo de mim mesmo devo encontrar o próprio Outro enquanto aquele que não sou (SARTRE, 2015a, p.325). G.H. é, no olhar da barata, nesta altura da sua experiência íntima, transcendência- transcendida.

Nessa condição, a mulher G.H. chegou ao limite da existência, chegou ao nada: “eu chegara ao nada, e o nada era vivo e úmido” (LISPECTOR, 2009a, p.61). Chegar ao nada é atingir o máximo da experiência existencialista que vive, e ela alcança esse limite de transcendência na liberdade que possui seu Outro, o inseto. Mandando ser quem ela mostra em seu olhar, a barata anula a possibilidade de liberdade que existe em G.H., novamente esse Outro é mais valente que G.H., que se vê naufragando na liberdade que o Outro possui.

Nesse ápice existencialista a narradora-personagem tenta encontrar uma definição de ser que é:

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eu, corpo neutro da barata, eu com uma vida que finalmente não me escapa pois enfim a vejo fora de mim – eu sou a barata, sou minha perna, sou meus cabelos, sou o trecho de luz mais branca no reboco da parede – sou cada pedaço infernal de mim – a vida em mim é tão insistente que se me partirem, como a uma lagartixa, os pedaços continuarão estremecendo e se mexendo. Sou o silêncio gravado numa parede, e a borboleta mais antiga esvoaça e me defronta: a mesma de sempre. De nascer até morrer é o que eu me chamo de humana, e nunca propriamente morrerei (LISPECTOR, 2009a, p.64- 65)

Chegar a essa descoberta não é nada fácil, tomar consciência do que é e ter em mãos a revelação da vida, o segredo da existência, transforma-se em uma experiência desconcertante. Mas essa revelação não encerra o processo existencialista que vive a personagem, uma vez que o Ser não é tão simples assim, nem possui uma definição encerrada. G.H. seguirá nessa autodescoberta e chegará ao fim exatamente como iniciou: procurando, procurando, procurando um sentido para a existência.

É preciso perceber que, nessa definição, ela se vê como a barata, dentre tudo o que acredita ser, tem certeza de que é a barata (lagartixa, borboleta, também), ou seja, é um animal, e só alcança o limite da existência enquanto Homem, porque se depara com e assume a sua condição animal, que insiste em seu ser, isto porque “os humanos precisam se reconhecer animais para se tornarem humanos” (MACIEL, 2016, p.19).

A percepção de seu lado animal, ou seja, ter consciência de que também é um animal despertou novamente ódio em G.H., e sua condição de homem tenta assumir o controle da situação, assujeitando o inseto que está diante dela à sua vontade. É aí, então, que G.H. força a porta do guarda-roupa contra o corpo da barata. E mesmo assim, ainda não satisfeita, por ver que a barata continuava viva, esmaga com mais força ainda o corpo do inseto até que uma massa branca sai de dentro dele.

Mas ela continua insegura, desnorteada, com medo, sem entender o que estava acontecendo, sem compreender como lidar com a transformação que se passara com ela: “é que por enquanto a metamorfose de mim em mim mesma não faz nenhum sentido” (LISPECTOR, 2009a, p.66). Porém, mesmo sem compreender ela possuía uma certeza de si: “o inumano é o melhor nosso” (LISPECTOR, 2009a, p.68).

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Até que, novamente, mesmo esmagada e tendo a matéria branca jorrando de seu interior, a barata continua a olhar a mulher. E novamente o olhar causa o estranhamento.

G.H. sente que a cada minuto que se passa a barata se apodera da objetividade dela e, assim, o ser repugnante que tenta não morrer, mesmo depois de esmagada, continua a ser senhor da liberdade do humano que se apresenta a ela. A narradora entra em contato cada vez mais com a essência de sua existência.

Mas o que ela deseja agora é experimentar da barata. Comer, sentir com a língua o gosto que é a matéria da vida, o plasma da existência. Esse canibalismo demonstra mais uma vez a confluência de desejos entre humano e inumano, o assujeitamento do animal, através da morte da barata, e o sentir o gosto da vida para passá-la adiante.

Todo esse processo de alteridade que se dá entre a mulher e a barata, não esqueçamos, dá-se com uma testemunha que tudo presencia e confirma todo o processo vivido pela narradora-personagem. Além de testemunha, o leitor atualiza o processo existencialista sofrido por G.H. e, junto com ela, é impelido a viver sua própria descoberta. É necessário, pois, analisar esse outro tipo de relação de alteridade que se dá em A paixão segundo G.H.: a relação com o leitor. Será explicado no próximo tópico como se dá o entrelaçamento entre G.H. e o leitor de seu relato, e como esse leitor se comporta no decorrer do relato que chega até ele.

4.3 O LEITOR: A TESTEMUNHA DO RELATO; A TERCEIRA PERNA DE G.H.; A