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ERIKSEN, Thomas Hylland; NIELSEN, Finn Sivert. História Da Antropologia. Petrópolis Editora Vozes, 2007

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THOMAS HYLLAND ER1KSEN

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HISTORIA

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ANTROPOLOGIA

A literatura acadêmica voltada à história da antropologia expande-se a cada dia, e este livro não quer competir com ela. N o entanto, não conhecemos nenhum texto publicado que tenha o mesmo propósito que este. Enquanto a literatura acadêmica é quase sempre especializada e as obras existentes sobre história da antropologia ou são de caráter mais teórico ou estão vinculadas a uma ou a várias tradições p ro­ fissionais, nesta obra oferecemos uma visão objetiva dos avanços paralelos, con­ vergentes e interdependentes das principais tradições da antropologia social e cultural.

Nesse sentido, esta obra oferece um relato sóbrio e equilibrado do desenvol­ vimento histórico da antropologia como disciplina. Além disso, propõe-se a compreender a multiforme história da antropologia sem fazer dela uma radical reinterpretação.

www.vozes.com.br

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▼ VOZES

Uma vida pelo bom livro

vendos@vozes.com.br

ISBN 9 7 8 -8 5 -3 2 6 -3 4 2 8 -3

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cultural num só volume. Os autores oferecem uma síntese da disciplina no século dezenove, desde as teorias culturais de H erder, M organ e Tylor até as contribuições muitas vezes

negligenciadas dos estudiosos alemães do período. Examinam, além disso, a obra de antropólogos do início do século vinte, como Boas e Malinowski, nos Estados Unidos e na Inglaterra, e a sociologia de Durkheim e Mauss, na França. Também recebe atenção a relação ambígua entre antropologia e culturas nacionais - muitos dos

fundadores da disciplina eram migrantes ou judeus.

O foco principal deste livro volta-se para os temas característicos da

antropologia pós-I G uerra M undial, desde o estrutural-funcionalismo, via estruturalismo, até a hermenêutica, ecologia cultural e análise do discurso. Todo antropólogo de vulto recebe uma breve biografia e são abordadas

controvérsias im portantes, como os debates sobre modelos de aliança e descendência de parentesco, o enigma do totemismo, os problemas do

neomarxismo e da ecologia cultural e as atuais discussões sobre representações do O utro e desconstrução. Este volume oferece uma história oportuna, concisa e abrangente de um a disciplina intelectual im portante, numa narrativa envolvente e instigante que cativará estudantes da matéria.

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Os autores

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Thomas Hylland Eriksen é professor de Antropologia Social na Universidade de Oslo. É autor de diversos livros sobre questões

antropológicas, incluindo Ethnicity and Nationalism e Small Places, Large Issues, e mais recente mente The Tyranny o f the Moment: Fast and Slow Time in the Information Age (Pluto Press).

Finn Sivert Nielsen é professor­ assistente sênior de Antropologia Social na Universidade de Copenhague. Tem publicações sobre trabalho de campo, sobre a Rússia, a União Soviética e sobre antropologia geral.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CTP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Eriksen, Thomas Hylland

História da antropologia / Thomas Hylland Eriksen; Finn Sivert Nielsen; tradução de

Euclides Luiz C alloni; revisão técnica de Emerson Sena da Silveira. Petrópolis, RJ : Vozes, 2007.

ISBN 978-85-326-3428-3

Título original; A History o f Anthropology. Bibliografia

1. Antropologia - Filosofia 2. Antropologia - História L Nielsen, Finn Sivert. II. Título.

06-8071 CDD-306.09

índices para catálogo sistemático:

1. Antropologia : História 306.09

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istória

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antropologia

Tradução: Euclides Luiz Calloni

Revisão técnica: Emerson Sena da Silveira

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Título original inglês: A Histoiy o f Anthropology

A primeira edição de A History o f Anthropology foi publicada por Pluto Press, 2001. Esta tradução foi publicada de acordo com a Pluto Press Ltd,, Londres.

Direitos de publicação em língua portuguesa: 2007, Editora Vozes Ltda.

Rua Frei Luís, 100 25689-900 Petrópolis, RJ Internet: http://www.vozes.com .br

Brasil

Todos os direitos reservados. Nenhum a parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de

dados sem permissão escrita da Editora.

Editoração: Fernando Sérgio Olivetti da Rocha Projeto gráfico: AG.SR Desenv. Gráfico

Capa: W M design

© Thomas Hylland Eriksen e Fiim Sivert Nielsen, 2001

ISBN 978-85-326-3428-3 (edição brasileira) ISBN 0-7453-1385-X (edição inglesa)

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Prefácio, 1 1. Inícios, 9

2. Vitorianos, alemães e um francês, 27

3. Quatro pais fundadores, 49

4. Expansão e institucionalização, 69

5. Formas de mudança, 95

6. O poder dos símbolos, 118

7. Questionando a autoridade, 135 8. O fim do Modernismo?, 163 9. Reconstruções, 188 Posfácio, 211 Bibliografia, 215 índice remissivo, 241

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P

refácio

E ste é um livro ambicioso, mas não pretensioso. É ambicioso no sentido de que, em número relativamente pequeno de páginas, propõe-se a compreender a multifor­ me história da antropologia. Nossas prioridades, omissões e interpretações certa­ mente serão contestadas, pois é impossível haver uma única história oficial de uma determinada área, mais ainda de um campo tão ramificado, dinâmico e disputado como o da antropologia. Não é pretensioso, porém, pois nosso objetivo é oferecer um relato sóbrio e equilibrado do desenvolvimento histórico da antropologia como dis­ ciplina, e não propor uma reinterpretação radical dela.

A literatura acadêmica voltada à história da antropologia expande-se a cada dia, e este livro não quer competir com ela. No entanto, não conhecemos nenhum texto pu­ blicado que tenha exatamente o mesmo propósito que este. A literatura acadêmica é quase sempre especializada e as obras existentes sobre história da antropologia ou são de caráter mais teórico ou estão vinculadas a uma ou a várias tradições profissionais. Embora possamos não ter alcançado plenamente nossos objetivos em todos os aspec­ tos, empenhamo-nos em oferecer uma visão objetiva dos avanços paralelos, conver­ gentes e interdependentes das principais tradições da antropologia social e cultural.

O livro está organizado em ordem cronológica. Ele começa com as “proto-antro- pologias” desde a Grécia Antiga até o Iluminismo e continua com a criação da antropo­ logia acadêmica e com o desenvolvimento da sociologia clássica durante o século de­ zenove. O terceiro capítulo se concentra sobre os quatro homens que, por consenso ge­ ral, são considerados os pais fundadores da antropologia do século vinte, e o quarto mostra como os alunos desses pioneiros continuaram e diversificaram o trabalho ini­ ciado. O quinto e o sexto capítulos abrangem o mesmo período - desde aproximadamente

1946 até por volta de 1968, mas analisam tendências diferentes: o capítulo 5 exami­ na as controvérsias teóricas em tomo dos conceitos de sociedade e de integração so­ cial; o capítulo 6 ocupa-se dos conceitos de cultura e significado simbólico. No capítu­ lo 7 apresentamos os movimentos intelectuais e políticos das décadas de 1960 e 1970,

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com ênfase sobre os impulsos advindos do marxismo e do feminismo. O capítulo 8 analisa a década de 1980, concentrando-se no movimento pós-m odemista e no seu pri­ mo próximo, o pós-colonialismo, duas tendências críticas que abalaram seriamente a autoconfiança da disciplina; por fim, o nono e último capítulo apresenta algumas das principais tendências pós-modemas que emergiram durante os anos 1990.

A história da antropologia não é, para nós, um a narrativa linear de progresso. Algum as controvérsias “m odernas”, por exemplo, foram objeto de estudo desde o Iluminismo e mesmo antes dele. Ao m esm o tem po, acreditamos que houve um au­ mento constante e cumulativo do conhecimento e da compreensão nesse campo, tam bém no que se refere ao seu método. Além disso, como a antropologia reage a m udanças no m undo externo, seu foco substancial m uda de form a correspondente. Assim , o movim ento desde os prim órdios da era industrial e colonial até a era da in­ formação da m odernidade global levou a disciplina ao longo de um a série de trans­ form ações, mas essencialmente ela continua a levantar as mesmas questões de 50,

100 ou mesmo 200 anos atrás.

Oslo/Copenhague, julho de 2001 THE & FSN

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Inícios

H á quanto tempo existem antropólogos? As opiniões a esse respeito estão divi­ didas. Em grande parte, a resposta depende do significado atribuído à palavra antro­ pólogo. As pessoas sempre tiveram curiosidade sobre seus vizinhos e sobre desco­ nhecidos mais distantes. Elas conjeturaram sobre eles, lutaram contra eles, casaram com eles e contaram histórias sobre eles. Algumas dessas histórias ou mitos foram escritos. Alguns desses registros foram mais tarde criticados como imprecisos ou etnocêntricos (ou simplesmente racistas). Algumas histórias foram comparadas com outras, sobre outros povos, levando a pressuposições mais gerais sobre “pessoas em outros lugares”. Nesse sentido, começamos com uma investigação antropológica no momento em que um estranho se muda para o apartamento em frente ao nosso.

Se nos restringimos à antropologia como disciplina científica, alguns estudiosos remontariam suas origens ao Iluminismo europeu durante o século dezoito; outros sustentariam que ela só surgiu como ciência na década de 1850; outros ainda afirma­ riam que as pesquisas antropológicas no sentido atual começaram depois da I Guerra Mundial. Nós também não podemos evitar essas ambigüidades.

Não há dúvida, porém, de que a antropologia, considerada como a ciência do ho­ mem, teve origem na região que em geral, mas imprecisamente, chamamos de “Oci­ dente”, especialmente em três de quatro países “ocidentais”: França, Grã-Bretanha, Estados Unidos e, até a II Guerra Mundial, Alemanha. Historicamente falando, a an­ tropologia é uma disciplina européia, e seus praticantes, como os de todas as ciências européias, às vezes gostam de atribuir suas origens aos antigos gregos.

Heródoto e outros gregos

Graças às pesquisas realizadas por antropólogos, historiadores e arqueólogos, acreditamos hoje que “os antigos gregos” provavelmente eram muito diferentes de

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nós. Nas cidades-Estado clássicas, “democráticas”, mais da metade da população era constituída de escravos: os cidadãos livres consideravam o trabalho manual como degradante, e a democracia (que também foi “inventada” pelos gregos) provavel­ mente era mais semelhante às competitivas festaspotlatch dos kwakiutls (capítulo 4) do que às instituições descritas nas constituições modernas (ver Finley 1973; P. Anderson 1974).

Voltar aos gregos é assim uma longa jornada, e nós entrevemos o mundo deles através de um vidro trincado e esfúmaçado. Vemos pequenas cidades-Estado circun­ dadas de áreas rurais tradicionais da Idade do Feiro e ligadas ao mundo externo por uma rede de relações comerciais marítimas entre povoados urbanos distribuídos ao longo das costas do Mediterrâneo c do Mar Negro. O comércio de bens de luxo e a es­ cravidão levaram riqueza considerável às cidades e os cidadãos da polis, com sua aversão ao esforço físico, tinham à disposição um grande excedente, que usavam, en­ tre outras coisas, para construir templos, estádios, banhos e outros prédios públicos, onde os homens podiam reunir-se e envolver-se em debates filosóficos e especula­ ções sobre como o mundo foi organizado.

Foi numa comunidade assim que viveu Heródoto de Halicamasso (c. 484-425 a.C.). Nascido numa cidade colonial grega na costa sudoeste da Turquia atual, Heró­ doto começou a viajar ainda muito jovem e acumulou um profundo conhecimento sobre muitos povos estrangeiros com os quais os gregos mantinham contato. Hoje Heródoto é lembrado principalmente por sua história das Guerras Persas, mas ele também escreveu narrativas de viagem minuciosas de várias partes da Ásia Ociden­ tal e do Egito, e de lugares tão distantes como a terra dos citas na costa norte do Mar Negro. Nessas narrativas, tão afastadas do nosso mundo atual, reconhecemos um problema que acompanha a antropologia, em roupagens várias, até os dias atuais: como devemos relacionar-nos com “os outros”? Eles são basicamente como nós ou são diferentes? Grande parte da teoria antropológica procura estabelecer um equilí­ brio entre essas posições, e é exatamente isso que Heródoto também fez. Às vezes ele é simplesmente um “homem civilizado” preconceituoso e etnocêntrico que desdenha tudo o que é estrangeiro. Outras vezes ele reconhece que diferentes pessoas têm valo­ res diferentes porque vivem sob diferentes circunstâncias, não porque são moral­ mente deficientes. As descrições que Heródoto faz da língua, do vestuário, das insti­ tuições políticas e judiciais, das ocupações e da economia são perfeitamente legíveis nos dias atuais. Embora às vezes captasse os fatos de modo equivocado, ele era um pesquisador meticuloso, e seus livros são em geral as únicas fontes escritas que te­ mos sobre povos de um passado distante.

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I

1. Inícios 11

Muitos gregos testaram sua argúcia enfrentando um paradoxo filosófico que toca diretamente o problema de como devemos relacionar-nos com “os outros”. Trata-se do paradoxo do universalismo em oposição ao relativismo. Um universalista atual procuraria identificar aspectos e semelhanças comuns (ou mesmo universais) entre diferentes sociedades, ao passo que um relativista enfatizaria a singularidade e parti­ cularidade de cada sociedade ou cultura. Os sofistas de Atenas são às vezes descritos como os primeiros relativistas filosóficos na tradição européia (vários pensadores quase contemporâneos na Ásia, como Gautama Buda, Confúcio e Lao-Tsé, envol­ viam-se com questões semelhantes). Nos diálogos de Platão (427-347 a.C.) Protágo- ras e Górgias, Sócrates debate com os sofistas. Podemos imaginá-los numa batalha intelectual de alto nível, rodeados de templos de colorido variegado e prédios públi­ cos imponentes, com seus escravos quase imperceptíveis nas sombras entre as colu­ nas. Outros cidadãos são espectadores, enquanto a fé de Sócrates numa razão univer­ sal, capaz de determinar verdades universais, é contestada pela visão relativista de que a verdade irá sempre variar de acordo com a experiência e com o que hoje cha­ maríamos de cultura.

Os diálogos de Platão não tratam diretamente das diferenças culturais. Mas eles testemunham que encontros entre culturas faziam parte da vida cotidiana nas cida- des-Estado. As rotas do comércio grego estendiam-se desde o estreito de Gibraltar até a Ucrânia atual. Os gregos empreenderam guerras contra os persas e muitos ou­ tros “bárbaros” . O próprio termo bárbaro é de origem grega e significa “estrangeiro”. Para um ouvido grego, ele soava como se esses estranhos só fossem capazes de dizer “bar-bar, bar-bar”. Do mesmo modo, na Rússia, os alemães são até hoje chamados de nemtsy (os mudos): os que falam, mas não dizem nada.

Aristóteles (384-322 a.C.) também se dedicou a especulações complexas sobre a natureza do homem. Em sua antropologia filosófica ele analisa as diferenças entre os seres humanos em geral e os animais, e conclui que, embora os humanos tenham vá­ rias necessidades em comum com os animais, somente o homem possui razão, sabe­ doria e moralidade. Ele também afirmava que os seres humanos são fundamental­ mente sociais por natureza. Na antropologia e em outras disciplinas esse estilo de pensamento universalista, que procura estabelecer semelhanças mais do que diferen­ ças entre grupos de pessoas, desempenha um papel de destaque até hoje. Além disso, parece claro que, ao longo da história, a antropologia oscilou entre o universalismo e

bém penderam para uma posição ou outra.

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tam-Depois da Antigüidade

Na cidade-Estado grega clássica, as condições talvez fossem particularmente fa­ voráveis para o desenvolvimento da ciência sistemática. Mas também nos séculos seguintes, atividades “civilizadas”, como arte, ciência e filosofia, se desenvolveram em tomo de todo o Mediterrâneo: primeiro, no período helenístico, depois que Ale­ xandre Magno (356-323 a.C.), da Macedônia, conduziu seus exércitos até os confins setentrionais da índia, difundindo a cultura urbana grega por onde quer que passasse; em seguida, mais tarde, durante os vários séculos em que Roma dominou grande parte da Europa, do Oriente Médio e do norte da África e imprimiu em sua população uma cultura derivada dos ideais gregos. Nessa sociedade complexa, multinacional, não sur­ preende descobrir que o interesse grego pelo “outro” também continuou. Assim, o geó­ grafo Estrabão (c. 63-4 a.C.-c. 21 d.C.) escreveu vários tomos volumosos sobre povos estrangeiros e lugares distantes, obras que cintilam de curiosidade e de alegria da des­ coberta. Mas quando o cristianismo foi elevado à condição de religião oficial e o Impé­ rio Romano começou a desintegrar-se na metade do século IV d.C., processou-se uma mudança fundamental na vida cultural européia. Os cidadãos abastados da Antigüida­ de, que graças às suas receitas provenientes do comércio e do trabalho escravo podiam dedicar-se à ciência e à filosofia, desapareceram. Na verdade, desapareceu toda a cul­ tura urbana, o próprio elemento aglutinador que mantinha coeso o Império Romano como um Estado integrado (embora de modo instável). Em seu lugar, manifestava-se um sem-número de culturas européias locais, portadoras de tradições germânicas, es­ lavas, fmo-ugrianas e celtas, tão antigas quanto as da Grécia pré-urbana. Politicamen­ te, a Europa se desagregou em centenas de soberanias, cidades e enclaves locais autô­ nomos, que só foram integrados em unidades maiores com o crescimento do Estado moderno, do século dezesseis em diante. No decorrer de todo esse longo período, o que manteve o continente unido foi em grande parte a Igreja, a última depositária da estrutura “universal” de Roma. Sob a égide da Igreja, redes internacionais entre mon­ ges e clérigos surgiram e floresceram, interligando nichos de saber em que sobrevi­ veram as tradições filosóficas e científicas da Antigüidade.

Os europeus gostam de se ver como descendentes lineares da Antigüidade, mas no curso de toda a Idade Média a Europa foi uma periferia. Durante os anos 600 até os 700 os árabes conquistaram territórios desde a Espanha até a índia e no decorrer dos sete séculos seguintes, pelo menos, os centros econômicos, políticos e intelec­ tuais do mundo mediterrâneo ficaram sediados em metrópoles sofisticadas como Bag­ dá e Córdova, não nas ruínas de Roma ou Atenas, para não mencionar vilas de reno­ me como Londres ou Paris. O maior historiador e filósofo social desse período foi Ibn Khaldun (1332-1406), que viveu na atual Tunísia. Entre outras coisas, Khaldun

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escreveu uma volumosa história dos árabes e berberes, com uma longa introdução critica sobre o modo como usou suas fontes. Ele desenvolveu uma das primeiras teo­ rias sociais não religiosas e antecipou as idéias de Émile Durkheim sobre a solidarie­ dade social (ver capítulo 2), hoje considerada um dos fundamentos da sociologia e da antropologia. À semelhança de Durkheim e dos primeiros antropólogos que utiliza­ ram suas teorias, Khaldun destaca a importância do parentesco e da religião na cria­ ção e manutenção de um senso de solidariedade e de compromisso mútuo entre os membros de um grupo.

Existem, no entanto, alguns escritos europeus do período medieval tardio que podem ser considerados precursores da antropologia dos nossos dias. O mais famoso é o relato de Marco Polo (1254-1323) de sua expedição à China, onde ele teria per­ manecido durante dezessete anos. Outro exemplo é a grande viagem através da Ásia Ocidental descrita em The Voyage and Traveis ofSir John Mandeville, Knight, escri­ ta por uiíi inglês desconhecido no século quatorze. Esses dois livros estimularam o interesse europeu por povos e costumes estrangeiros. Então, com o advento de eco­ nomias mercantilistas e o Renascimento contemporâneo nas ciências e nas artes, as pequenas, mas ricas cidades-Estado européias da Idade Média tardia começaram a se desenvolver rapidamente e surgiram os primeiros sinais de uma classe capitalista. Estimuladas por esses grandes movimentos sociais e financiadas pelos novos empre­ endedores, muitas e longas viagens marítimas exploratórias foram promovidas por governantes europeus. No Ocidente, essas viagens - com destino à África, Ásia e América - são em geral descritas como “as grandes descobertas”, embora os povos “descobertos” quase sempre tenham tido razão em questionar essa grandeza ( ver, por exemplo, Wolf 1982).

O impacto das conquistas européias

As “grandes descobertas” tiveram importância crucial para as mudanças que ocorreriam a partir delas na Europa e no mundo, e — em menor escala - para o desen­ volvimento da antropologia. Da exploração de Henrique, o Navegador, da costa oci­ dental da África no início do século quinze, passando pelas cinco viagens de Colom­ bo à América (1492-1506), até a circunavegação do mundo por Magalhães (1519-

1522), as viagens desse período alimentaram a imaginação dos europeus com descri­ ções vívidas de lugares cuja própria existência lhes fora até então íotalmente desco­ nhecida. Essas narrativas de viagens, além disso, chegaram a um público insohta- mente numeroso, uma vez que a imprensa, inventada em 1448, transformou o livro num produto comum e relativamente barato em toda a Europa.

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Muitas narrativas de viagens estavam obviamente repletas de erros factuais e prejudicadas por preconceitos cristãos arraigados. Exemplo bem conhecido é a obra do cartógrafo Américo Vespúcio, que publicou muitos relatos populares sobre o con­ tinente que ainda preserva seu nome. Seus livros foram reimpressos e traduzidos mui­ tas vezes, mas suas descrições dos americanos (que eram chamados índios, pois Co­ lombo acreditava que havia descoberto uma rota para a índia) revelam um a atitude muito menos cuidadosa com relação aos fatos do que os escritos de Heródoto ou de Khaldun, Vespúcio parece usar os índios como mero efeito literário para justificar afirmações sobre sua própria sociedade. De modo geral, os americanos nativos são representados como reflexos distorcidos e muitas vezes invertidos dos europeus: são gentios, promíscuos, andam nus, não têm governo nem leis e chegam a ser canibais! Sobre esse pano de fundo Vespúcio defende ardorosamente as virtudes da monarquia absolutista e do poder papal, mas suas descrições etnográficas são praticamente inú­ teis como dados fidedignos sobre a vida nativa na época da conquista.

Houve contemporâneos de Vespúcio, como o huguenote francês Jean de Léry, que fizeram relatos mais confiáveis da vida dos índios, e esses livros também vendiam bem. Mas tudo indica que o mercado para histórias de aventuras em regiões distantes era insaciável na Europa nesse tempo. A maioria desses livros traça um contraste mais ou menos explícito entre os Outros (que bem eram “nobres selvagens” ou então “bár­ baros”) e a ordem existente na Europa (que é contestada ou então defendida). Como veremos em capítulos adiante, o legado desses primeiros relatos, moralmente ambí­ guos, continua resistente na antropologia contemporânea, e ainda hoje antropólogos são muitas vezes acusados de distorcer a realidade dos povos sobre os quais escrevem - nas colônias, no Terceiro Mundo, em subculturas ou áreas marginais. Como no caso de Vespúcio, essas descrições são geralmente denunciadas por refletirem mais a pró­ pria formação e experiência do antropólogo do que o povo estudado.

A conquista da América contribuiu para uma verdadeira revolução entre os inte­ lectuais europeus. Além de provocar a reflexão sobre diferenças culturais, em pouco tempo ela deixou claro que fora descoberto todo um continente que nem sequer esta­ va mencionado na Bíblia! Essa compreensão “não-religiosa” estimulou a seculariza- ção cada vez m aior da vida intelectual européia, a libertação da ciência com relação à autoridade da Igreja e a relativização dos conceitos de moralidade e de pessoalidade. Como diz Todorov (1984), os indios atingiram a própria essência da idéia européia do que significa ser um ser humano. Os índios eram humanos, mas não se comporta­ vam do modo como os europeus consideravam “natural” para seres humanos. O que era humano, então? O que era natural? Para os filósofos da Idade Média, Deus havia criado o mundo num ato único e definitivo e dera aos seus habitantes a natureza

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espe-l. Inícios 15

cífica que os distinguia, e que haviam conservado desde então. Agora era possível perguntar se os índios representavam um estágio anterior no desenvolvimento da humanidade. Essa percepção, por sua vez, deu origem aos conceitos de progresso e desenvolvimento que prenunciaram uma ruptura radical com a visão de mundo está­ tica da Idade Média. Na história mais recente da antropologia, concepções de desen­ volvimento e progresso desempenharam às vezes um papel importante. Mas se o progresso é possível, infere-se que ele é produzido pela atividade de seres humanos, e essa idéia, de que as pessoas traçam seu próprio destino, é uma noção ainda mais persistente em antropologia.

Assim, quando se examinaram no espelho oferecido pelos índios, os europeus se perceberam indivíduos livres e modernos. Entre as expressões mais marcantes dessa li­ berdade subjetiva recém-descoberta estão os Ensaios (1580) do filósofo francês Mi- chel de Montaigne (1533-1592). Com abertura e um estilo pessoal até então desconhe­ cido, Montaigne especula sobre inúmeras questões de maior e menor relevo. Diferen­ temente da maioria dos seus contemporâneos, em seus escritos sobre povos remotos Montaigne se revela alguém que hoje chamaríamos de relativista cultural. No ensaio “Dos Canibais”, ele inclusive conclui que se tivesse nascido e sido criado numa hibo canibal, com toda probabilidade teria comido came humana. No mesmo ensaio, que mais tarde inspiraria Rousseau, Montaigne também cunhou o termo le bon sauvage, “o bom selvagem”, uma idéia que depois foi muito debatida em antropologia.

Nos séculos seguintes as sociedades européias se expandiram rapidamente em escala e complexidade, e os contatos interculturais - através do comércio, das guer­ ras, da atividade missionária, da colonização, da migração e da pesquisa - toma­ ram-se cada vez mais comuns. Ao mesmo tempo, “os outros” passaram a ser progres­ sivamente mais visíveis na vida cultural européia - a começar com as peças de Sha- kespeare até os libretos de Rameau.

Todo grande filósofo desde Descartes (1596-1650) até Nietzsche (1844-1900) desenvolveu sua própria doutrina sobre a natureza humana, sua própria antropologia filosófica, muitas vezes baseando-a diretamente no conhecimento corrente e em crenças sobre povos não-europeus. Mas na maioria desses relatos, “os outros” ainda desempenham um papel passivo: os autores raramente se interessam pelo modo de vida desses povos; antes, importa-lhes sua utilidade como munição retórica em deba­ tes europeus sobre a própria Europa.

Exemplo relevante desse fato foi a grande polêmica filosófica entre empiristas e racionalistas durante os séculos dezessete e dezoito. Os primeiros eram representa­ dos por filósofos ingleses, como John Locke (1632-1704). Para Locke a mente

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hu-mana, no momento do nascimento, era como uma tábua rasa, unia tabula rasa. Todas as nossas idéias, valores e especulações resultam de nossas experiências - ou “im­ pressões dos sentidos” - do mundo. As pessoas não nascem diferentes, mas tor­ nam-se diferentes através de diferentes experiências. Locke lança aqui os fundamen­ tos epistemológicos de uma ciência da sociedade que combina um princípio univer- salista (todos nascemos iguais) com um princípio relativista (nossas experiências nos tornam diferentes). Mas os filósofos do século dezessete eram menos especializados do que os dos tempos atuais, e por isso era bastante comme il fa ut para um homem como Locke passar diretamente de uma discussão de ontologia para um comentário político contemporâneo. O empirismo de Locke teve assim repercussões diretas so­ bre seu argumento político a favor de um princípio de “lei natural” (jus naturel) - que é a base da idéia moderna dos direitos humanos universais. A idéia de que todos os seres humanos nascem com certos direitos intrínsecos remonta à Idade Média, quan­ do Tomás de Aquino (1225-1274) afirmava que os direitos do Homem eram dados por Deus. Mas no século dezessete filósofos como Locke e Thomas Hobbes (1588- 1679) defendiam que a lei natural não era “dada” do alto, mas estava implícita nas necessidades biológicas do indivíduo. Assim, o argumento é invertido: o indivíduo tem direitos porque é um ser humano, e não pela graça de Deus (ou do rei). Essa foi uma posição radical na época, e mesmo quando assumida explicitamente para justifi­ car a autocracia (como faz Hobbes), ela tem um potencial revolucionário. Em toda a Europa, reis e príncipes defrontaram-se com exigências de uma burguesia liberal cada vez mais irrequieta e forte: exigências de que o governante fosse obrigado por lei a respeitar os direitos dos indivíduos à propriedade, à segurança pessoal e ao de­ bate público racional. Parece seguro supor que Locke se interessava mais por essas questões do que pelo modo de vida de povos distantes e que sua antropologia filosó­ fica foi fortemente influenciada por esse fato.

A herança do empirismo britânico, que chegou à sua forma mais sofisticada no Iluminismo escocês, notadamente na filosofia de David Hume, ainda é evidente na antropologia britânica contemporânea, como veremos mais adiante. Do mesmo modo, as antropologias francesa e alemã ainda trazem a marca do racionalismo con­ tinental, uma posição que talvez tenha sido mais ardorosamente defendida por René Descartes, um homem de muitas qualidades que deu contribuições substanciais à matemática e à anatomia e que é por muitos considerado o criador da filosofia m o­ derna. Na antropologia ele é particularmente conhecido pela distinção clara que esta­ beleceu entre consciência moral e vida espiritual de um lado, e mundo material e cor­ po humano de outro. Enquanto os empiristas britânicos diziam que os sentidos do corpo eram a única fonte de conhecimento válido sobre o mundo externo, Descartes

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duvidava dos sentidos. Nossas imagens do mundo externo são apenas isso-im agens - e como tal elas são profundamente marcadas pelas idéias preexistentes que o sujei­ to que percebe tem sobre o mundo. Só podemos ver o mundo através de um filtro de idéias. Por isso, a tarefa primeira da filosofia é verificai' se existem idéias verdadeiras que possam constituir uma base sólida para o conhecimento positivo. Com esse obje­ tivo em mente, Descartes assumiu uma atitude de “dúvida metodológica radical”. Todas as idéias de que se pode duvidar são incertas, e portanto inadequadas como fundamento para a ciência. Poucas idéias subsistiram à prova decisiva de Descartes. Sua máxima Cogito, ergo sum (“Penso, logo existo”) expressa essa certeza funda­ mental: posso ter certeza de que existo porque sei que penso. Mas Descartes gastou muita energia para derivar dessa primeira duas outras certezas: a certeza da existên­ cia de Deus e a certeza das proposições matemáticas.

Diferentemente de Locke, Descartes não era um filósofo social. Ainda assim, ele foi produto do seu tempo. Apesar de sua epistemologia racionalista ser explicitamen­ te contrária à dos empiristas, Descartes - como Locke e Hobbes - situa o indivíduo no centro de sua investigação. Afinal, sua prova da existência de Deus foi uma decor­ rência do auto-reconhecimento do indivíduo. Os empiristas também tinham a mesma fc dc Descartes na faculdade humana da razão, e tanto racionalistas como empiristas foram atores fundamentais para definir as premissas de uma ciência secular, como representantes da nova ordem social, a ordem burguesa, que em pouco tempo emer­ giria em toda a Europa Ocidental.

Por que tudo isso ainda não é antropologia

Essa breve revisão da pré-história da antropologia sugere que inúmeras questões que mais tarde se destacariam na antropologia já haviam sido tema de muitos debates desde a Antigüidade. Povos exóticos haviam sido descritos normativamente (etno- centrismo) ou descritivamente (relativismo cultural). Também fora retomada repeti­ damente a dúvida de se as pessoas em toda parte e em todos os tempos são basica­ mente semelhantes (universalismo) ou profundamente diferentes (relativismo). Ha­ viam sido feitas tentativas de definir as diferenças entre animais e seres humanos, na­ tureza e cultura, congênito e aprendido, coipo sensual e mente consciente. Muitas descrições detalhadas de povos estrangeiros também haviam sido publicadas, algu­ mas delas baseadas em estudos meticulosos.

Apesar desses desenvolvimentos históricos antigos e contínuos, sustentamos que a antropologia como ciência só apareceu num estágio posterior, não obstante ser verdade que sua origem foi um processo mais gradual do que às vezes se supõe. Nos­

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sas justificativas para isso são, primeira, que todo o trabalho mencionado até aqui pertence a um de dois gêneros: escritos de viagem e filosofia social. Só quando esses dois aspectos da investigação antropológica se combinam, isto é, quando dados e teoria se integram, é que surge a antropologia. Segunda, e talvez mais controversa, chamamos a atenção para o fato de que todos os escritores até aqui mencionados são influenciados pela época e pela sociedade em que viveram. Isso naturalmente se apli­ ca também aos antropólogos contemporâneos. Mas os antropólogos modernos vi­ vem num mundo moderno, e nós sustentamos que a antropologia não faz nenhum sentido fora de um contexto moderno. A disciplina é produto não apenas de um con­ junto de pensamentos singulares como os que mencionamos acima, mas de mudan­ ças muito amplas na cultura e na sociedade européias que no devido tempo levariam à formação do capitalismo, do individualismo, da ciência secularizada, do naciona­ lismo patriótico e da reflexividade cultural extrema.

Por um lado, então, alguns tópicos nos acompanharam constanteraente ao longo do tempo que estivemos considerando até aqui, Por outro, do século quinze em dian­ te apareceram inúmeras novas idéias e novas formas de vida social que formariam a base sobre a qual a antropologia e as demais ciências sociais seriam construídas.

Duas dessas novas idéias foram analisadas acima. Primeira, vimos que o encon­ tro com “o outro” estimulou os intelectuais europeus a ver a sociedade como uma en­ tidade passível de mudanças e crescimento, de comunidades locais relativamente simples, de pequena escala, para nações industriais grandes e complexas. M as a idéia de desenvolvimento ou progresso não se limitou a noções de mudança social. O indi­ víduo também podia se desenvolver, através da educação e da profissão, aprimoran­ do sua personalidade e encontrando seu “eu verdadeiro” . Como diz Bruno Latour (1991), a idéia do indivíduo autônomo foi um pré-requisito para a idéia de sociedade. Só quando o indivíduo livre foi alçado à condição de “medida de todas as coisas” é que a idéia de sociedade como associação de indivíduos pôde formar raízes e tomar-se objeto de reflexão sistem ática. E só q u an d o a so c ied ad e em erg iu co m o o b je to a se r

continuamente aperfeiçoado e remodelado em formas mais avançadas é que o indiví­ duo racional, independente, pôde transformar-se em algo novo e diferente, e inclusi­ ve “mais verdadeiro para si mesmo” . Sem um discurso explícito sobre essas idéias, jam ais haveria possibilidade de surgir uma disciplina como a antropologia. As se­ mentes foram lançadas no alvorecer da filosofia moderna, avanços importantes fo­ ram feitos no século dezoito, mas foi no século dezenove que a antropologia se tor­ nou uma disciplina acadêmica e somente no século vinte que alcançou a forma em que é ensinada aos estudantes atualmente. Dirigiremos nossa atenção agora às cor­ rentes intelectuais do século dezoito e dos inícios do século dezenove, antes de des­

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1- inícios 19

crever - no próximo capitulo - como a antropologia chegou à maioridade como dis­ ciplina acadêmica.

f O Iluminismo

O século dezoito testemunhou um florescimento da ciência e da filosofia na Eu­ ropa. Nesses anos a autoconfiança da burguesia aumentou, os cidadãos refletiam so­ bre o mundo e seu lugar nele e em breve fariam exigências políticas de uma ordem social racional, justa, previsível e transparente. A palavra-chave era iluminismo (Aufídarung, iluminação). Como Hobbes, Locke e Descartes haviam afirmado, o in­ divíduo livre devia ser a medida de todas as coisas - do conhecimento e da ordem so­ cial. A autoridade de Deus e do rei deixou de ser considerada um pressuposto natural. Mas as novas gerações de intelectuais desenvolveram essas idéias ainda mais. Eles se reuniam em clubes infonnais e em salões para discutir arte, filosofia e temas sociais. Cartas pessoais e diários evoluíram para jornais, periódicos e romances, e embora a censura ainda fosse comum em quase toda a Europa, os novos meios de comunicação logo conquistaram uma liberdade maior e ampliaram sua circulação. A burguesia se empenhava em libertar-se do poder da Igreja e da nobreza e em substituí-lo por uma democracia. Crenças religiosas tradicionais eram denunciadas cada vez mais como superstições - obstáculos no caminho para uma sociedade melhor, governada pela razão. A idéia de progresso também parecia confirmar-se através do desenvolvimen­ to da tecnologia, que fez seus prim eiros grandes avanços nessa época. Novas tecnologias tornaram mais precisas as medições científicas. Máquinas industriais começaram a aparecer. A tentativa puramente teórica de Descartes de provar a ver­ dade universal da matemática de repente tomou-se uma questão prática de suma rele­ vância. Se a matemática, a linguagem da razão, podia revelar verdades naturais fun­ damentais como as leis de Newton, não se seguia que a natureza era ela própria racio­ nal e que todo empreendimento dirigido pela razão estaria destinado ao sucesso? To­ das essas expectativas culminaram abmptatnente na Revolução Francesa, que tentou realizar o sonho de uma ordem social perfeitamente racional na prática, mas foi rapi­ damente suplantada por seu oposto irracional: a revolução devorou seus filhos. E en­ tão todos os sonhos, decepções e paradoxos da Revolução se espalharam a toda a Europa durante as Guerras Napoleônicas, no início dos anos 1800, influenciando profunda­ mente as idéias de sociedade que gerações posteriores desenvolveriam.

Mas estamos ainda no século dezoito, a “idade da razão”, quando foram feitas as primeiras tentativas de criar uma ciência antropológica. Uma obra inicial importante foi La scienza nuova (1725; The New Science, 1999), de Giambattista Vico (1668- 1744), uma síntese grandiosa de etnografia, história da religião, filosofia e ciência

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natural. Vico propõe uma estrutura universal de desenvolvimento social segundo o qual todas as sociedades passam por quatro fases, com características específicas for­ malmente definidas. O primeiro estágio é uma “condição bestial” sem moralidade ou arte, seguido de uma “Idade dos Deuses”, caracterizada pelo culto à natureza e por estruturas sociais rudimentares. A seguinte, a “Idade dos Heróis”, distingue-se por perturbações sociais generalizadas devidas à grande desigualdade social. Por fim, a “Idade do Homem”, quando as diferenças de classe desaparecem e predomina a igualdade. Essa fase, porém, degrada-se pela corrupção interna e degenera em “bes­ tialidade”. Vemos aqui, pela primeira vez, uma teoria de desenvolvimento social que não só contrapõe barbarismo e civilização, mas específica vários estágios de transi­ ção. A teoria de Vico serviría de modelo para os futuros evolucionistas, desde Marx até Frazer. Mas Vico comporta um elemento que inexiste na maioria dos seus segui­ dores. As sociedades não necessariamente se desenvolvem lineannente na direção de condições sempre melhores, mas passam por ciclos de degeneração e crescimento. Esse aspecto confere à obra iluminista de Vico um subtexto crítico e romântico, como em Rousseau (ver abaixo).

Vico foi um pioneiro italiano, mas os primeiros passos para a instituição da an­ tropologia como ciência foram dados na França. Em 1748 o Barão de Montesquieu (1689-1755) publicou o seu De l 'esprit des lois, (The Spirit o f Laws, 1977). Essa obra é um estudo comparativo entre “culturas” distintas, sobre sistemas legislativos que Montesquieu conhecia de primeira ou de segunda mão, com base nos quais ele pro­ cura derivar os princípios gerais que subjazem aos sistemas legais interculturalmen- te. Montesquieu apresenta o sistema legal como um aspecto do sistema social mais amplo, intimamente entrelaçado com muitos outros aspectos do todo maior (política, economia, parentesco, demografia, religião, etc.) - uma concepção que levou muitos a descrevê-lo como protofuncionalista (capitulo 3). Segundo Montesquieu, a poliga­ mia, o canibalismo, o paganismo, a escravatura e outros costumes bárbaros podiam ser explicados pelas funções que eles exerciam na sociedade como um todo. Montes­ quieu escreveu também o notável Lettres persanes (1722; Persian Letters, 1973), uma coleção de cartas fictícias de dois persas que descrevem a França para seus con­ cidadãos. Aqui o autor explora o “estranhamento” da diferença cultural para parodiar a França no tempo de Luís XIV. O livro é provocante e estimulante. Mesmo atual­ mente ele continua polêmico, pois recentemente Montesquieu foi acusado de ser um proto-orientalista (Said 1978, 1993) que enfatizou indevidamente o exotismo dos persas. Essa crítica justifica-se, sem dúvida, pois evidentemente o principal objetivo de Montesquieu não é descrever a Pérsia, mas criticar a França. Mas as cartas persas também revelam uma compreensão sutil de um problema às vezes descrito como

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meblindness na antropologia cultural: nossa incapacidade de ver nossa própria cultu­ ra “objetivamente”, “de fora”. Montesquieu empregou uma técnica específica para resolver esse problema: descreveu sua própria sociedade do ponto de vista de um fo­ rasteiro. Antropólogos críticos ainda usam essa técnica atualmente.

Outro passo na direção de uma ciência antropológica foi dado por um grupo de intelectuais franceses jovens e idealistas. Foram os enciclopedistas, liderados pelo fi­ lósofo Denis Diderot (1713-1784) e pelo matemático Jean Le Rond d ’Alembert (1717-1783). O objetivo desses intelectuais era coletar, classificar e sistematizar o maior volume possível de conhecimentos com o intuito de promover o avanço da ra­ zão, do progresso, da ciência e da tecnologia. A Encyclopédie de Diderot foi publica­ da em 1751-1772, e incluía artigos de intelectuais eminentes como Rousseau, Voltai­ re e Montesquieu. A enciclopédia se impôs rapidamente como modelo para projetos posteriores do mesmo gênero. Obra liberal e abrangente, para não dizer revolucioná­ ria, ela foi censurada em muitos países da Europa por sua crítica acerba à Igreja, Mas os 17 volumes de texto e 11 volumes de ilustrações também continham outros mate­ riais polêmicos, como descrições detalhadas de aparelhos mecânicos desenvolvidos por agricultores e artesãos comuns. Assuntos assim receberem destaque numa obra acadêmica era fato inédito à época e indicava que em breve seria natural estudar a vida cotidiana de pessoas comuns. A enciclopédia também continha descrições deta­ lhadas de costumes culturais e sociais de todo o mundo. Um dos colaboradores mais jovens, o Marquês de Condorcet (1743-1794), que morrería prematuramente numa prisão jacobina, escreveu comparações sistemáticas entre diferentes sistemas sociais e procurou desenvolver uma síntese da matemática e da ciência social que lhe possi­ bilitasse fonnular leis objetivas de desenvolvimento social.

O colaborador mais influente da Encyclopédie foi sem dúvida Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Contrariamente à maioria dos seus contemporâneos, Rous­ seau afirmava que o desenvolvimento não era progressivo, mas degenerativo, e que a causa desse declínio era a própria sociedade. De um estado de natureza inicial, ino­ cente, em que cada indivíduo vivia por si mesmo em harmonia com seu ambiente, as pessoas passaram a criar instituições de casamento e parentesco e se estabeleceram em grupos pequenos e sedentários. Aos poucos esses grupos cresceram em comple­ xidade e criaram sacerdotes e chefes, reis e príncipes, propriedade privada, polícia e magistrados, até que a alma livre e boa do homem ficou esmagada sob o peso da desi­ gualdade social. Todos os vícios humanos são produto do aumento da desigualdade social, e Rousseau atribuiu a queda original desde um estado de graça à entrada da in­ veja no mundo. “O homem nasceu livre, mas está a ferros em toda parte”, declara ele em D li contrai social (1762; On die Social Contract, 1978); mas Rousseau também

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promete que o “contrato social falso” do tempo dele pode ser substituído por um con­ trato verdadeiro baseado na liberdade e na democracia. Apesar do seu pessimismo com relação à situação da época, Rousseau continuou assim com os mesmos sonhos utópicos de Vico ou Condorcet.

O modelo da sociedade ideal de Rousseau devia ser encontrado entre os “nobres selvagens”, os povos livres e sem Estado. Essa reavaliação das sociedades livres re­ presentou obviamente um passo significativo para o verdadeiro relativismo cultural. Mas o relativismo de Rousseau era “superficial”. Também ele se interessava pelos “prim itivos”, principalmente por representarem valores contrários aos da época. Eles simbolizavam o homem racional que renasceria na sociedade ideal do futuro. Assim o homem era livre e racional ou cativo e corrompido, e com isso como premis­ sa, pesquisas práticas e aplicadas de diferenças culturais empíricas eram considera­ das irrelevantes. Não obstante, Rousseau foi uma fonte importante de inspiração para cientistas sociais que vieram depois - desde Marx a Lévi-Strauss - e com freqüência é considerado intermediário entre o llumimsmo francês e o Romantismo alemão, que surgiu nas décadas finais dos anos 1700, em parte como reação à filosofia iluminista. Aqui, a celebração rousseauniana do “homem autêntico" recebeu novo impulso e os

p rim eiro s conceitos de cultura foram apresentados explicitamente.

Romantismo

O Iluminismo acreditava no indivíduo e na mente racional. Em contraste, o pensa­ mento romântico deslocou sua atenção do indivíduo para o grupo, da razão para a emo­ ção. Na política, houve um movimento semelhante, de um discurso universalista sobre indivíduos livres e democracia para um discurso particularista sobre construção da na­ ção e sentimento nacional. É comum considerar o Romantismo como uma tendência que substituiu o Iluminismo nos anos de reação depois da Revolução Francesa. Mas, como sugere Emesl Gellner (1991), talvez seja mais exato ver os dois movimentos co­ mo fluxos paralelos, às vezes divergindo ou competindo, às vezes convergindo e mesclando-se. Esta segunda constatação é especialmente comum na antropologia, que tem como objetivo não somente compreender todos culturais (um projeto romântico), mas também dissecá-los, analisá-los e compará-los (um projeto iluminista).

No século dezoito, a Alemanha, o centro do pensamento romântico, ainda era um mosaico político de principados independentes e cidades autônomas, reunidos tenue- mente sob a égide do “Sacro Império Romano” - ao qual Voltaire se referiu certa vez dizendo que não era sacro, nem romano, nem império. Assim, diferentemente das idéias francesas de sociedade e cidadania, o conceito de uma nação germânica basea­

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i. Inícios 23

va-se na língua e na cultura mais do que na política. A França era um Estado grande e poderoso, cujo estilo, poesia e realeza dominavam o mundo ocidental. Saber falar francês era em toda parte sinal de uma mente cultivada. Um dos românticos alemães mais populares (Friedrich Richter) chegou a adotar um pseudônimo francês: Jean Paul. Era muito natural que os alemães, politicamente fragmentados, mas cultural­ mente articulados, acabassem reagindo à dominação francesa. Eles também tinham mais razão em especular sobre as qualidades que unificavam sua nação do que os franceses centralizados. Em 1764, o jovem Johann Gottfried von Herder (1744- 1803) publicou seu Audi eine Philosophie der Geschichte (“Yet another Philosophy o f History”, 1993), um ataque vigoroso ao universalismo francês defendido, por exemplo, por Voltaire (1694-1778). Herder proclamava a primazia das emoções e da linguagem e definia a sociedade como uma comunidade profundamente consolida­ da, mítica. Ele afirmava que todo Volk (povo) tem seus próprios valores, costumes, língua e “espírito” (Volksgeist). Dessa perspectiva, o universalismo de Voltaire não passava de um provincialismo disfarçado. Sua civilização universal, na verdade, não era outra coisa senão cultura francesa.

O debate Voltaire-Herder continua a confrontar-nos atualmente. O ataque de Herder ao universalismo aberto, transnacional, de Voltaire lembra a crítica dos an­ tropólogos do século vinte às missões, à ajuda ao desenvolvimento, às políticas de minorias e globalização. Lembra também a critica lançada à própria antropologia como agente de imperialismo cultural. Além disso, uma distinção entre cultura e ci­ vilização processou-se posteriormente no mundo de língua alemã, embora com su­ cesso limitado na academia: a cultura era considerada como experimental e orgânica, ao passo que a civilização era cognitiva e superficial,

O conceito de Volk introduzido por Herder foi aperfeiçoado e politizado por filó­ sofos posteriores, inclusive Fichte (1762-1814) e Schelling (1775-1854), que o transformaram num instrumento de germinação de movimentos nacionalistas que se espalharam pela Europa na esteira das Guerras Napoleônicas. Mas o mesmo concei­ to entrou também na academia, onde reapareceu, no início do século vinte, como a proposição do relativismo cultural. Assim, os sistemas antagônicos do relativismo e do nacionalismo remontam ambos suas origens ao mesmo conceito de cultura que se originou no Romantismo alemão.

O maior filósofo desse período foi sem dúvida Immanuel Kant (1724-1804). A filosofia de Kant é fundamental demais para ser enquadrada numa escola filosófica bem definida. Em geral se diz que Kant pôs um ponto final a muitos debates filosófi­ cos respeitáveis, entre eles a controvérsia entre empirismo e racionalismo. Em seu Kritik der reinen Vemunft (1781; Critique qfPure Reason, 1991) Kant concordou

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cora Locke e Hume que o verdadeiro conhecimento deriva das impressões dos senti­ dos, mas ele também ressaltava (com Descartes) que os dados sensoriais eram filtra­ dos e modelados pelas faculdades da mente. O conhecimento era tanto sensual como matemático, positivo e especulativo, objetivo e subjetivo. A grande realização de Kant foi demonstrar que pensamento e experiência estavam relacionados dinamica­ mente e que a aquisição do conhecimento é um processo criativo. Conhecer o mundo é criar um mundo que é acessível ao conhecimento. Num sentido, o homem é, por­ tanto, incapaz de conhecer o mundo como este é em si mesmo (Ding an Sich). Mas o homem tem acesso ao mundo enquanto o mundo representa a si mesmo para o ho­ mem (.Ding für Mich) e o homem é capaz de obter conhecimento verdadeiro sobre este mundo.

Conhecer o m undo é contribuir com sua criação, como todo antropólogo que rea­ liza trabalho de campo sabe. Nós colhemos amostras, modelamos e interpretamos a realidade à medida que prosseguimos; Kant foi o primeiro a reconhecer explicíta- mente esse processo, o qual continua a gerar debates importantes na antropologia atual. Na formulação de Kant, porém , essa idéia ainda não se aplicava diretamente às ciências sociais. Coube a seu sucessor, Georg W ilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), completar essa linha de raciocínio. Para Kant, o conhecimento era um processo, um movimento sem fim. O ponto fixo em torno do qual seu movimento fluía era o indiví­ duo. Com Hegel, o ponto fixo se dissipa. O indivíduo também é parte e resultado do processo de conhecimento. Assim, conhecendo o mundo, criamos não somente um mundo cognoscível, mas também um E u cognoscente. Mas se não existe ponto fixo, como é possível alcançar o conhecimento? Quem será a medida de todas as coisas, senão o indivíduo? Hegel responde a essa pergunta dizendo que não estamos sozi­ nhos no mundo. O indivíduo participa de uma sociedade comunicativa com outras pessoas. O mundo criado através do conhecimento é portanto fundamentaimente co­ letivo, e o indivíduo não é sua causa, mas um dos seus efeitos.

Assim, através das complexas e freqüentemente obscuras formulações de Hegel, vemos emergir o princípio do coletivismo metodológico - a idéia de que a sociedade é mais fundamental do que o indivíduo. A visão oposta, o individualismo metodoló­ gico, segue Kant e tem seu ponto de partida na pessoa individual. Mesmo hoje, essas posições estão relatívamente bem definidas na antropologia. Com H egel no entanto, o coletivismo alcança seu apogeu. Hegel descreve um Weltgeist, um “espírito do mundo” que evolui independentemente dos indivíduos mas que também se manifes­ ta através deles. O Geist tem seus centros e periferias, e se propaga segundo leis evo­ lucionárias específicas. Com essa idéia, sugeriu Geana (1995), Hegel foi o primeiro filósofo a antever uma humanidade verdadeiramente global.

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1. Inícios 25

Estão lançados a essa altura os fundamentos epistemológicos da teoria social moderna. Se o conhecimento é um processo coletivo, que cria um mundo coletivo que pode ser conhecido por indivíduos, toma-se possível visualizar esse mundo num padrão de comunicação mais ou menos sistemático entre pessoas. Posteriormente, os teóricos descreveram esse padrão de diversos modos, com conceitos como estrutura, função, solidariedade, poder, sistema e agregado. O próprio Hegel estava interessado no desenvolvimento do Weltgeist e descreveu seu desdobramento como um processo dialético de conflito e síntese que levava a sociedade a novos estágios evolucioná­ rios. Não obstante, embora a dialética tenha mais tarde alcançado proeminência en­ tre teóricos sociais inspirados por Marx, a “construção social da realidade” continua sendo a idéia mais importante que a ciência social herdou de Hegel e Kant.

Mas essa idéia também combinava perfeitamente com os movimentos naciona­ listas inspirados por Herder, os quais haviam se difundido por toda a Europa nas dé­ cadas seguintes a 1800. Nações eram precisamente essas realidades e sociedades co­ municativas socialmente construídas como Hegel havia descrito, cada uma com seu estilo e caráter únicos. Idealmente, a nação era um a coletividade de pessoas, gover­ nada pelas pessoas, de acordo com os anseios e necessidades coletivos mais profun­ dos das pessoas. Assim, o nacionalismo tem sua inspiração na filosofia romântica, mas foi também produto de processos históricos subjacentes: as conturbações políti­ cas na seqüência das guerras napoleônicas, a alienação produzida pela industrializa­ ção e a difusão dos ideais revolucionários de liberdade, igualdade e fraternidade,

Foi nesse mundo agitado e em transição que a antropologia começou a ser consi­ derada como disciplina acadêmica. Uma precondição importante para que isso se concretizasse foi a criação dos primeiros museus etnográficos. Coleções de artefatos exóticos existiam havia muito tempo nas cortes européias. Uma das primeiras, reuni­ da pelo rei dinamarquês Frederico III, data de 1650 e mais tarde se tomaria a base do Museu Nacional Dinamarquês. Mas a coleta sistemática de objetos etnográficos só começou nos anos 1800. Grandes museus nacionais foram criados em Londres (1753), Paris (1801) e Washington, DC ( 1843), e todos eies desenvolveriam departa­ mentos etnográficos influentes. Ainda assim, os primeiros museus etnográficos es­ pecializados foram criados em áreas de língua alemã, especialmente Viena (1806), Munique (1859) e Berlim (1868). Isso pode surpreender, pois a Alemanha e a Áustria não possuíam colônias. No entanto, acadêmicos alemães, seguindo o programa de Herder, haviam começado a realizar estudos empíricos sobre os costumes “do povo”. Eles coletavam dados sobre a vida camponesa - sobre contos populares e lendas, vestuário e dança, ofícios e habilidades. Assim, os prim eiros museus interessa­ vam-se principalmente pelo Võlkskunde (o estudo de culturas camponesas

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domésti-cas) mais do que pelo Völkerkunde (o estudo de povos remotos). De qualquer modo, devemos observar que a institucionalização da antropologia começou em áreas de língua alemã, e não na França ou na Inglaterra - um fato que muitas vezes é negligen­ ciado nos relatos históricos da antropologia.

Como o próximo capítulo mostrará, a contribuição alemã à antropologia conti­ nuou importante no decorrer de todo o século dezenove, concomitantemente ao de­ senvolvimento de uma antropologia “vitoriana” peculiar na Grã-Bretanha.

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Vitorianos, alemães e um francês

E n tre as Guerras Napoleônicas (1792-1815) e a I Guerra Mundial (1 9 14-1918), vemos o nascimento da Europa moderna - e do mundo moderno. Acima de tudo, po­ rém, essa foi talvez a era da Revolução Industrial. Nos anos 1700 transformações profundas se processaram na agricultura e na manufatura, especialmente na Inglater­ ra. Máquinas a vapor e de fiação haviam se espalhado por toda parte e uma classe cada vez mais numerosa de camponeses sem terra e de trabalhadores urbanos come­ çou a se fazer ouvir. As mudanças mais importantes, contudo, ocorreriam mais adi­ ante. Na década de 1830 foram construídas as primeiras grandes ferrovias; uma dé­ cada depois, navios a vapor cruzavam o Atlântico regularmente; e em 1846 foi intro­ duzido o telégrafo. Numa escala que o mundo desconhecia até então, começava a ser possível movimentar enormes quantidades de informações, de matérias-primas, de mercadorias e de pessoas por distâncias globais. Essa efervescência, por sua vez, sig­ nificava que a produção podia ser aumentada, tanto na agricultura como na indústria manufatureíra. A Europa tinha condições de alimentar mais pessoas, em parte com o aumento da produção e em parte com a expansão das importações. O resultado foi o crescimento da população. Em L800 a Inglaterra contava com 10.5 milhões de pes­ soas. Em 1901 sua população chegava a 37 milhões de habitantes, 75 por cento dos quais viviam em cidades. Forçados pela pressão populacional e pela racionalização da agricultura, os camponeses abandonaram o interior e migraram para centros urba­ nos como Londres ou Paris, onde foram ressocializados como operários. As condi­ ções nas cidades em rápido crescimento eram sempre precárias: epidemias eram co­ muns, e quando foi intr oduzida a primeira lei britânica contra o trabalho infantil, em

1834, ela apenas regulamentou a situação de crianças com idade inferior a 9 anos. Com o tempo, protestos contra essas mudanças aumentaram em freqüência e em escala. O exemplo mais extremo foi a Revolução Francesa, mas a revolta Cartista na Inglaterra nos anos 1840, as revoluções francesa, austríaca e italiana em 1848-1849, a

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Comuna de Paris de 1870, também indicam claramente o potencial para a violência de­ sencadeado pela industrialização. Simultaneamente aos protestos desenvolveu-se uma ideologia nova, de caráter socialista. Suas raízes remontam a filósofos sociais como Rousseau e Henri de Saint-Simon (1760-1825) e aos neo-hegelíanos alemães, mas sua formulação definitiva ocorreu com Karl Marx, que abordaremos mais adiante.

O sucesso do m ovimento trabalhista durante o século dezenove teria sido prati­ camente impossível sem o trem e o navio a vapor. Milhões de migrantes se desloca­ ram por esses meios de transporte para os Estados Unidos, Austrália, Argentina, África do Sul, Sibéria e outras partes do mundo, aliviando a pressão populacional na Europa e possibilitando um a elevação continuada nos padrões de vida de todos. Ao mesmo tempo, nas colônias, administrações difundiam a cultura e as instituições eu­ ropéias. Esse impressionante processo de difusão teve efeitos os mais diversos. N o­ vas relações de poder surgiram - entre o administrador colonial e o comerciante ín­ dio, entre o proprietário rural e o escravo negro, entre boer, inglês e bantu, entre colo­ nizador e aborígene australiano. Na esteira dessas novas relações de dominação e de­ pendência, novas filosofias, ideologias e mitos surgiram para defendê-las ou ata­ cá-las. A campanha contra a escravatura é um dos primeiros exemplos disso, e a es­ cravidão foi abolida com sucesso nas possessões inglesas e francesas nos anos 1830. Mas o racismo, que emergiu como ideologia organizada durante o século dezenove, foi um a resposta aos mesmos processos. Finalmente, surgiu um a ciência internacio­ nalizada. O pesquisador global se tom a uma figura popular - e o protótipo é, natural­ mente, Charles Darwin (1809-1882), cuja Origem das espécies (1859) se baseava em dados coletados durante uma circunavegaçào de seis anos ao redor do globo.

Não surpreende que a antropologia tenha surgido como disciplina nesse período. O antropólogo é um pesquisador global prototípico que depende de dados detalhados sobre pessoas em todo o mundo. Agora que esses dados se tom avam disponíveis, a antropologia podia estabelecer-se como disciplina acadêmica. E também a sociolo- giapodia alçar-se a essa condição. Se a antropologia se desenvolveu ap artir do impe­ rialismo, a sociologia resultou da mudança das relações de classe produzida pela in­ dustrialização na Europa em si — todos os país fundadores da sociologia analisam o significado da “modernidade” e o contrapõem às condições “pré-m odem as” .

Evolucionismo biológico e social - Morgan

Enquanto os principais sociólogos do século dezenove eram em sua maioria ale­ mães ou franceses, os antropólogos mais destacados estavam na Inglaterra (o maior poder colonial, com grande facilidade de acesso aos “outros”) ou nos Estados Unidos (onde “os outros” estavam próximos). Os avanços teóricos nas duas tradições

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tam-2. VITORIANOS, ALEMÃES E UM FRANCÊS 2 9

bém eram bastante diferentes. O evolucionismo típico da antropologia do século de­ zenove construía-se sobre idéias de desenvolvimento do século dezoito, favorecido pela experiência do colonialismo e (a começar nos anos 1860) pela influência de Darwin e seu defensor mais célebre, o filósofo social Herbert Spencer (1820-1903), que fundou o Darwinismo Social, uma filosofia social que exalta as virtudes da com­ petição individual. Mas a antropologia não derivou para uma pseudociência racista. Todos os principais antropólogos da época apoiavam o princípio da unidade psíqui­ ca da humanidade - os seres humanos nasciam em toda parte com aproximadamente os mesmos potenciais, e as diferenças herdadas eram negligenciáveis. Com efeito, as teorias da evolução social pressupunham esse princípio, pois se as diferenças raciais eram consideradas como fundamentais, as comparações culturais sobre as quais es­ sas teorias se baseavam seriam desnecessárias.

Paralelamente, sociólogos continentais seguiam a liderança de Kant e Hegel e exploravam a realidade socialmente construída descoberta pelos dois alemães. Dife­ rentes sociólogos compreenderam esse projeto de modos diversos, mas todos tinham em comum a idéia de sociedade como uma realidade autônoma que deve ser estuda­ da em seus próprios termos, não com os métodos da ciência natural. Como os antro­ pólogos, os sociólogos defendiam a unidade psíquica da humanidade e aceitavam a teoria evolucionista. Diferentemente dos antropólogos, que classificavam e compa­ ravam as características externas das sociedades em todo o globo, os sociólogos diri­ giam a atenção para a dinâmica interna da sociedade ocidental, industrial. As teorias sofisticadas que assim se desenvolveram exerceriam um impacto fundamental tam­ bém sobre a antropologia a partir do inicio do século vinte.

Ilustraremos aqui as diferenças entre essas duas tradições emergentes com a obra de duas de suas figuras pioneiras mais destacadas: o antropólogo americano Lewis Henry Morgan (1818-1881) e o sociólogo alemão Karl Marx (1818-1883).

A vida de Morgan consubstanciou de muitas formas os Estados Unidos de opor­ tunidades iguais que o sociólogo francês Alexis de Tocqueville havia descrito em 1835. Ele cresceu numa fazenda no Estado de Nova York, formou-se em advocacia e participou de modo ativo e bem-sucedido na política local. Um dos primeiros defen­ sores dos direitos políticos dos nativos americanos, ele era fascinado pelos índios desde a juventude. Na década de 1840 ele viveu com os iroqueses durante algum tempo, quando foi adotado por uma das tribos e recebeu o nome Tayadaowuhkidr. “aquele que constrói pontes”.

Morgan compreendeu que grande parte da complexidade da cultura nativa ame­ ricana em pouco tempo seria irrecuperavelmente destruída como conseqüência do influxo de europeus, e considerava como tarefa crucial documentar a cultura

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tradi-cional e a vida social desses nativos antes que fosse tarde demais. Essa atitude, mui­ tas vezes denominada antropologia urgente, foi assumida também pelo segundo grande antropólogo americano, Franz Boas (capítulo 3), e desde então foi muito utili­ zada em pesquisas de povos indígenas.

Morgan tinha contato estreito com o povo que ele estudava, simpatizava com os problemas desse povo e publicava relatos detalhados de sua cultura e vida social. Mas ele também fez contribuições teóricas substanciais, especialmente em sua obra pionei­ ra sobre o parentesco. O interesse de Morgan pelo parentesco tinha origem em seu con­ vívio com os iroqueses. Mais tarde, ele descobriu semelhanças e diferenças surpreen­ dentes entre o sistema de parentesco desse povo e o de outros povos na América do Norte. Ele então elaborou um estudo comparativo em larga escala do parentesco dos nativos americanos, no qual acabou incluindo também outros grupos. Morgan criou a primeira tipologia de sistemas de parentesco (cf. Holy 1996) e introduziu uma distin­ ção entre parentesco classificatório e descritivo que continua em uso ainda hoje. Numa explicação muito simplificada - sistemas descritivos (como o nosso) diferenciam pa­ rentes da linha ascendente ou descendente direta (parentela linear) dos parentes “late­ rais” (parentela colateral, como irmãos, primos e contraparentes). O parentesco classi- ficatôrio (como entre os iroqueses) não faz diferença entre essas duas categorias. Aqui o mesmo termo pode ser usado, por exemplo, para todos os parentes masculinos linea­ res e colaterais do lado paterno (pai, irmão do pai, filho do irmão do pai, etc.). Mas Morgan fez mais do que formular uma teoria: ele fundamentou sua teoria em anos _de estudos intensivos sobre os sistemas de parentesco existentes ao redor do mundo. Ele apresenta os resultados dessas pesquisas em seu influente Systems o f Consanguinity• and Affinity ofthe Human Family (1870), onde também considera o parentesco, defini­ tivamente, como um tema antropológico fundamental.

Para Morgan, o parentesco era principalmente um a porta de entrada paia o estu­ do da evolução social. Ele sustentava que as sociedades primitivas organizavam-se sobre a base do parentesco e que as variações terminológicas entre sistemas de paren­ tesco tinham correlação com variações na estrutura social. M as ele também supunha que a tenninologia do parentesco mudava lentamente e que portanto continha indica­ ções para uma compreensão de estágios anteriores da evolução social.

Em sua obra magna Ancient Society (1877), Morgan procura realizar uma gran­ diosa síntese de ioda sua obra. Ele distingue três grandes estágios da evolução cultu­ ral: selvageria, barbárie e civilização (com três subestágios para a selvageria e três para a barbárie). Os critérios para essas divisões eram principalmente técnicos: seus “selvagens” eram caçadores e coletores, o “barbarismo” estava associado à agricul­ tura e a “civilização” à fonnação do Estado e à urbanização. Observando-se

Referências

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