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Morgan e Marx pertenciam à primeira geração de cientistas sociais em atividade nas décadas de 1850 a 1870. Não obstante, embora a contribuição deles ofusque a da maioria dos seus contemporâneos, eles estavam longe de ser os únicos:

Nos anos 1860, enquanto Morgan ainda trabalhava em seu belo volume sobre o parentesco, foram publicados na Europa vários livros que em parte complementa­ vam Morgan e era parte levantavam questões inteiramente diferentes. Em 1860 o prolífico antropólogo alemão Adolf Bastian (1826-1905) publicou o seu Der Mensch in der Geschichte em três volumes (“Man inHistory”, ver Koepping 1983). Bastian, médico por formação, tornou-se etnógrafo por influência dos innãos Wilhelm e Ale­ xander von. Humboldt, o lingüista e o geógrafo que revolucionaram o pensamento humanista e social na Alemanha durante a primeira metade dos anos 1800. Bastian viajou muito, na verdade estima-se que tenha passado vinte anos fora da Alemanha (Koepping 1983:8). Entre uma viagem e outra, ele escreveu seus livros, foi nomeado professor de Etnologia na Universidade de Berlim e diretor do Museu Imperial, fun­ dou o importante Berliner Museum für Völkerkunde em 1868 e contribuiu generosa­ mente para formar as coleções desse museu. Como os innãos Humboldt antes dele e Boas depois dele (capitulo 3), Bastian continuou a tradição alemã de pesquisa sobre Volkskultur que fora inspirada por Herder e criticou duramente os esquemas evolucio- nistas simplistas que começavam a se destacar nessa época. Como o único antropólo­ go de vulto do século dezenove, Bastian foi um crítico vigoroso e incisivo do evolu- cionísmo. Sua visão era que todas as culturas têm uma origem comum, da qual se ra­ mificaram em várias direções - uma visão que mais tarde foi desenvolvida com gran­ de sofisticação por Boas e seus alunos. Ele estava profundamente consciente das re­ lações históricas entre culturas, e assim antecipou um desdobramento que ocorreu posteriormente na antropologia alemã, especificamente, o difusionismo. Bastian in-

elusive antecipou o estruturalismo e a psicologia junguiana quando afirmou que to­ dos os seres humanos têm certos padrões elementares de pensamento em comum: Elementãrgedanken, Foi principalmente na antropologia alemã, e em grande parte através da obra de Bastian, que o principio embrionário do relativismo cultural, evi­ dente em Herder mas ausente do pensamento iluminista e da antropologia an­ glo-americana do século dezenove, marcou presença na antropologia durante o sé­ culo dezenove. N a França, por exemplo, a escola sociológica de Augusto Comte (1798-1857) foi tudo, menos relativista, operando com um sistema rígido de três es­ tágios de evolução social.

No ano seguinte à publicação de Der Mensch in der Geschichte, o advogado es­ cocês Henry Maine (1822-1888) publicou Ancient Law. Essa obra era principalmen­ te uma pesquisa sobre a história cultural baseada em fontes escritas. Maine procurou demonstrar como mudanças na legislação refletem mudanças sociais mais amplas e fez a distinção entre sociedades tradicionais baseadas em status e sociedades moder­ nas baseadas em contrato. Nas sociedades baseadas em status, os direitos são distri­ buídos através de relacionamentos pessoais, parentesco e posição social herdada. Por outro lado, a sociedade baseada em contrato baseia-se em princípios formais, escri­ tos, que funcionam independentemente das pessoas reais. A distinção entre status e contrato continua sendo adotada atualmente, e muitos estudiosos seguem a orienta­ ção de Maine ao distinguir entre dois “tipos ideais” - sociedades simples e comple­ xas - e são, por sua vez, criticados por excesso de simplificação.

Uma idéia evolucionista que influenciou Morgan, Engels e outros, mas foi rejei­ tada desde então, foi a teoria do matriarcado original. Essa teoria foi proposta inicial­ mente pelo advogado suíço Johann Jakob Bachofen (1815-1887), em Das Mutter- recht (1861; “Mother’s Right”, ver Bachofen 1968). Bachofen defendia uma teoria evolucionista que passava de um estágio inicial de promiscuidade geral (Hetaris- mus) a uma primeira forma de vida social — matriarcado - em que as mulheres deti­ nham o poder político. Ele admitia que não existiam mais matriarcados reais, mas vestígios deles encontravam-se em sistemas de parentesco matrilineares, onde a des­ cendência segue principalmente a linha materna. Essa idéia, implicando que a huma­ nidade progrediu à medida que a liderança das mulheres foi sendo substituída pela dos homens, atraiu muitos seguidores, e quase foi considerada como fato natural pela geração seguinte de antropólogos. N a Inglaterra ela foi promovida por outro advoga­ do interessado em evolução social, John Ferguson McLennan (1827-1881). Apesar da inexistência de evidências etnográficas a favor dessa idéia, ela resistiu tanto que somente na década de 1970 antropólogas feministas se convenceram de que ela devia ser extirpada (Bamberger 1974).

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Assim, Morgan não trabalhou num vácuo intelectual O interesse pelos estudos comparativos da cultura e da sociedade estava aumentando, especialmente na Ingla­ terra e na Alemanha, e o acesso a dados empíricos confiáveis melhorava rapidamente graças ao colonialismo. Ainda assim, o único antropólogo do século dezenove a riva­ lizar com Morgan em influência foi Edward Bumett Tylor (1832-1917).

E.B. Tylor recebeu uma educação quacre, uma crença que o impediu de ffeqüen- tar a universidade. Enquanto convalescia em Cuba, porém, ele descobriu seu interes­ se por arqueologia e foi convidado a participar de uma expedição a ruínas toltecas no México. Num período dominado pelo evolucionismo, o passo da pré-história à antro­ pologia foi curto, e a obra de Tylor como antropólogo logo lhe atrairia (e à disciplina) prestígio considerável. Em 1896 ele foi nomeado prüueiro professor britânico de an­ tropologia na Universidade de Oxford. Em 1912, foi nomeado cavaleiro. Tylor ainda era jovem quando publicou sua primeira grande síntese evolucionista, Researches into the Early History o fMankind and the Development o f Civilization (1865); e sua obra mais importante, Primitive Culture (1871), veio apenas alguns anos depois. Tylor propunha aqui um esquema evolucionista que lembrava o de Morgan em Anci- ent Soeiety (os dois livros foram publicados no mesmo ano). Ele e Morgan acredita­ vam na primazia das condições materiais. Também como Morgan, seu conhecimen­ to da variação cultural era vasto (Darwin se refere a Tylor várias vezes em sua obra dos anos 1870 sobre a evolução humana). Mas, diferentemente de Morgan, Tylor nào se interessava pela terminologia do parentesco, e em lugar dela desenvolveu uma teoria dos sobreviventes culturais. Sobreviventes eram traços culturais que haviam perdido suas funções originais na sociedade, mas haviam sobrevivido, sem nenhuma razão em particular. Esses traços eram de importância crucial para o esforço de re­ construção da evolução humana. Tylor advogava um método comparativo traço a traço, o que lhe permitia isolar sobreviventes do sistema social mais amplo. Embora mfluente na época, esse método foi abandonado pela geração seguinte de antropólo­ gos. Curiosamente, ele reapareceu em meados da década de 1970, quando o sociólo­ go Edward O. Wilson, numa aventura intelectual comparável à de Tylor, procurou conciliar variação cultural e evolucionismo darwinista (ver Ingold 1986).

Mas a contribuição mais importante de Tylor à antropologia moderna é sua defi­ nição de cultura. Essa definição está na primeira página de Primitive Culture, com a seguinte redação;

Cultura, ou civilização, tomada em seu sentido amplo, etnográ­ fico, é aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade {Tylor 1958 [1871]: l).

Por um lado, cultura é assim um termo geral que perpassa estágios evolutivos. Onde a evolução diferencia sociedades em termos qualitativos, a cultura une a humani­ dade. Tylor, como Bastían, foi um proponente explícito da “unidade psíquica da huma­ nidade”. E a semelhança com Bastian vai além disso. Tylor era versado em antropolo­ gia alemã e em filosofia e havia lido tanto o próprio Bastian como vários dos professo­ res dele (ver Koepping 1983). Por outro lado, Tylor equipara cultura com civilização, um termo qualitativo. Cultura assim, pelo menos implicitamente, se toma uma questão de grau: todos têm, mas não em quantidade igual. Esse conceito de cultura contradiz totalmente Bastian e toda a noção herderiana de Volk. Para Herder e seus sucessores, a humanidade consistia em culturas autônomas, limitadas. Para Tylor e outros evolucio- nistas vitorianos a humanidade consistia em grupos que eram aculturados em vários graus e distribuídos nos degraus de uma escada de evolução cultural.

Nos anos entre 1840 e 1880 sociólogos e antropólogos levantaram todo um con­ junto de novos problemas. Enquanto Marx desenvolvia a primeira grande teoria de cu­ nho sociológico, abrangendo a modernização, a formação do valor, o poder e a ideolo­ gia, e enquanto Darwin formulava os princípios da evolução biológica, os antropólo­ gos estavam envolvidos num projeto de duas direções. Em parte, eles se ocupavam em esboçar grandes esquemas evolucionários - uni lineares na intenção e universalistas nas pretensões; em parte, tratavam de documentar a imensa amplitude da variação so- ciocultural humana - e do conhecimento assim acumulado emergiram as primeiras teorias de “baixo alcance” pertencentes a domínios etnográficos específicos, como o do parentesco, e enraizadas em descrições empíricas específicas e detalhadas.

Ainda era raro o próprio antropólogo realizar estudos de campo, embora Morgan e Bastian fossem exceções notórias. Outra exceção, menos conhecida, foi o etnógra- fo russo Nicolai Nicolaievich Miklukho-Maklai (1846-1888), que em 1871.40 anos antes de Malinowski, realizou um estudo de campo intensivo de 15 meses na costa da Nova Guiné e lançou as bases para uma rica tradição etnográfica na Rússia que é pra­ ticamente desconhecida no Ocidente (verPlotkin e Howe 1985). Mas a grande maio­ ria dos antropólogos coletava seus dados através de correspondência com adminis­ tradores coloniais, colonizadores, oficiais, missionários e outros “brancos” residen­ tes em lugares exóticos. Dada a qualidade desigual desses dados e as imensas ambi­ ções teóricas dos autores, esses estudos estavam quase sempre repletos do tipo de es­ peculação que Radcliffe-Brown (capítulo 3) mais tarde rejeitaria como história con­ jetural. Apesar desses defeitos, no entanto, os livros eruditos dos vitorianos possu­

íam um enfoque teórico e uma base empírica num grau nunca visto até então. A importância do parentesco nessa fase da evolução da disciplina não pode ser exagerada. A terminologia do parentesco era um campo empírico limitado. Entretan­

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to, mapeá-lo e compreendê-lo era uma experiência humilhante. Quanto mais o olhar se aproximava desses sistemas estranhamente formais, mais complexos eles pare­ ciam. De fato, para os primeiros praticantes dos estudos do parentesco, principal­ mente advogados de profissão, a tarefa parecia bastante simples. Eles procuravam um “sistema legal” que regulasse o comportamento em sociedades primitivas, e o paren­ tesco era o candidato óbvio - um sistema empírico de normas formalizadas, verbali­ zadas. No fim do século uma analogia muito comum era a de que o parentesco era um tipo de Pedra de Roseta do antropólogo que possibilitava que costumes primitivos fossem compreendidos e traduzidos em termos racionais.

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