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Até 1930, comunidades de “novos antropólogos” haviam se estabelecido na Grã-Bretanha, na França e nos Estados Unidos, com contatos entre antropólogos que trabalhavam na Alemanha e na Europa Oriental, na África do Sul, na índia e na Aus-

trália. Os grupos ainda eram pequenos. No total, não passavam de algumas centenas os antropólogos profissionais em atividade no mundo, e por isso falar em “escolas” nesse contexto pode parecer um tanto exagerado. Oito anos apenas haviam decorrido desde que os dois fundadores da nova antropologia na Inglaterra tinham publicado suas obras de impacto - e seria inexato falar em uma “Escola Inglesa” numa data tão antecipada. Radcliffe-Brown ainda estava em Sydney e passaria a maior parte da dé­ cada de 1930 em Chicago. Malinowski ainda tinha poucos alunos e nenhum deles ha­ via produzido nada de importante até então. O difusionismo e até certo ponto a “an­ tropologia de gabinete” especulativa estavam florescendo. Frazer ainda tinha onze anos pela frente como professor em Cambridge. Em 1930, não havia certeza nenhu­ ma de que a nova antropologia obteria sucesso na Inglaterra, e a situação na França e nos Estados Unidos não era muito diferente.

Os fundadores da antropologia moderna pertenciam a um grupo restrito e tinham muito em comum apesar de suas muitas diferenças. Um aspecto muito importante, talvez, é que todos eles procuravam assentar a antropologia num “estudo detalhado de costumes em relação à cultura total da tribo que os praticava” (Boas 1940 [ 1896]: 272). O ponto central dessa citação é a idéia de que traços culturais não podiam mais jser_es tu dados isoladamente. Um rimai não pode ser reduzido a um “sobrevivente” separado de um passado hipotético. Ele precisa ser visto em relação à-§pciedade total de que ele faz parte aqui e agora. Ele precisa ser estudado no contextp. A antropolo­ gia é uma ciência holística - sua finalidade é descrever sociedades ou culturas como todos integrados. Até aqui - concordavam os quatro fundadores - , de fato, idéias se­ melhantes eram centrais também nas sociologias marxista, durkheimiana e weberia- na, e pela virada do século haviam conquistado ampla aceitação. Poderíamos inclusi­ ve dizer que o conceito de “sociedade como sistema” é a mais fundamental de todas as intuições sociológicas, e não deve suipreender, portanto, que quando foi introdu­ zido na antropologia ele produziu uma verdadeira revolução teórica de que todos os fundadores, de uma forma ou outra, participaram.

A despeito das dimensões diminutas da disciplina, as diferenças entre as tradi­ ções nacionais já eram marcantes: nos métodos, na teoria e na organização institucio­ nal. Mais tarde, com todos os fundadores já mortos, formaram-se na disciplina certas imagens de cada um deles e de suas relações mútuas. Essas imagens ou mitos estão amplamente difundidos atuahnente e possibilitam que certas qualidades mais evi­ dentes de cada um ofusquem todas as outras. Por isso, o leitor deve ter em mente que as relações acadêmicas entre os antropólogos não são menos complexas do que as re­ lações humanas em geral (ver Leach 1984). Assim, Boas e Mauss concordavam em •" que não havia conflito profundo entre história cultural e estudos sincrônicos, e por

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isso ambos se interessavam pelo difnsionismo, enquanto Radcliffe-Brown e M ali­ nowski consideravam esses interesses como “não-científicos” . Essa divisão reflete claramente o fato de que dois antropólogos britânicos estavam envolvidos numa “re­ volução”, ao passo que na França e nos Estados Unidos predominava uma atmosfera de continuidade. Mas outras divisões eram igualmente importantes. Radcliffe-Brown e M auss concordavam em que seus estudos faziam parte de um grande projeto de so­ ciologia comparada, enquanto Boas, dos quatro o menos relacionado com a sociolo­ gia, desconfiava da “ciência francesa” que Radcliffe-Brown pregava em Chicago e duvidava profundamente do método comparativo. De sua parte, Malinowski parece ter evitado toda forma de comparação. Nesse caso, a herança germânica de Mali­ nowski e Boas une-os claramente contra a “escola francesa”. Mas essa unidade tam ­ bém é incompleta. Enquanto Radcliffe-Brown e Mauss eram coletivistas metodoló­ gicos comprometidos que investigavam os segredos da “sociedade como um todo”, Boas e Malinowski eram particularistas (alemães). O particularismo de Malinowski, porém, voltava-se para as necessidades físicas do indivíduo, ao passo que Boas acre­ ditava na prim azia da cultura.

As qualidades puram ente pessoais dos quatro hom ens tam bém influenciaram a nova ciência da sociedade. B oas assum iu sem esforço o papel da figura do “pai be­ nevolente” da antropologia americana. Com efeito, sua popularidade foi tão grande durante sua longa carreira, que seu ponto cego óbvio, sua d e ^ o n tia n ç a (hpg£ncra.U- zação, se tomou o ponto cego de toda uma geração. Com muito poucas exceções (entre as quais, nom eadam ente, Benedict 1934), grandes generalizações estiveram totalm ente ausentes da antropologia am ericana do século vinte até depois da morte de “Papa Franz”, Na Inglaterra esse consenso não existiu. Num a etapa avançada de suas carneiras RadtdifEe-Brawn u M alinowski foram com panheiros ativistas na “re­ volução funcionalista”, mas à m edida que o inimigo comum foi recuando, seus an­ tagonismos m útuos passaram a se evidenciar, e seus alunos (e alunos dos alunos) reproduziram fervorosam ente o conflito (le scus m çstrcs (capítulo 4): radcliffe- brownianos falariam com desdém da m onografia “ m alinow skiana” - repleta de de­ talhes enfadonhos, m as vazia de idéias exeqüíveis - e os m alinow skianos critica­ riam seus colegas de Oxford por produzirem modelos tão coerentes a ponto de ser incom patíveis com os fatos.

Finalmente, havia diferenças sistemáticas entre as três tradições nacionais, dife­ renças essas que não eram acadêmicas nem pessoais. Devido em parte ao prestígio de Boas e em parte ao fato de que recursos para pesquisas eram mais acessíveis nos Estados Unidos, a antropologia americana chegou rapidamente ao nível de uma dis­ ciplina mais ampla e constituída do que a européia. Quando a American Anthropolo-

gical Association (AAA) (Associação Antropológica Americana) foi criada em 1906, ela já contava com 175 membros. Em contraste, mais recentemente, em 1939, havia somente em tomo de 20 antropólogos profissionais em todo o Império Britâni­ co; e quando a Association of Social Anthropologists (ASA) (Associação de Antro­ pólogos Sociais) foi fundada na Inglaterra, em 1946, eram apenas 21 seus membros plenos (Kuper 1996: 67; Stocking 1996: 427).

Na França a situação é totalmente diferente. O sistema acadêmico francês era mais centralizado do que nos dois outros países, e Paris atraía uma elite intelectual numerosa, talentosa e dinâmica que gozava de prestígio considerável. Fazer parte dessa elite era mais importante do que respeitar fronteiras disciplinares, e por isso os : antropólogos cooperavam intensamente e envolviam-se em debates com sociólogos, filósofos, historiadores, psicólogos e linguistas. Embora a antropologia esteja sendo claramente institucionalizada aqui como em outros lugares, não existe a mesma sen­ sação forte de uma disciplina nova e revolucionária tomando forma, definindo-se como distinta de suas predecessoras, de outras disciplinas e de outras escolas antro­ pológicas. Assim, a antropologia francesa, num sentido, foi tanto a de horizontes mais abertos quanto a mais elitista das tradições nacionais.

Até os inícios da década de 1930 as quatro escolas da nascente antropologia mo­ derna estavam firmemente estabelecidasC jNIo breve período de uma década, a antro­ pologia vitoriana de Tylor e Frazer, o materialismo de Morgan e o difusionismo dos alemães haviam acumulado uma espessa camada de poeira, Uma teoria mais antiga ainda continuava em estado de dormência, esperando para ser redescoberta por gera­ ções seguintes, especificamente a obra de Marx e Weber; mas como um todo, o em­ preendimento da antropologia era percebido como viçoso, novo e estimulante, como uma chave recém-descoberta para uma verdadeira compreensão da condição huma­ na. Os praticantes em cada país eram poucos e intensamente motivados, em alguns casos (temos os seguidores de Mauss e Radcliffe-Brown em mente) quase lembran­ do adeptos de cultos religiosos.

Na Europa, excluídas a França e a Inglaterra, a difusão da nova disciplina ainda não havia começado. Na Alemanha os difusionistas predominaram durante bastante tempo depois da II Guerra Mundial, e só na década de 1950 foi que a antropologia so­ cial se estabeleceu na Escandinávia e na Holanda (ver Vermeulen e Roldán 1995 para a história particular das antropologias européias). A história cultural na linha di- fusíonista ou evolucionista, muitas vezes salpicada de preconceitos etnocêntricos (quando falando de outros) e de aspirações nacionalistas (quando falando da própria “cultura popular”) ainda prevaleceria por décadas na maioria da Europa.

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