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A antropologia inglesa era pequena, elitista, fechada e cheia de conflitos. Não obstante, no curso de alguns anos, ela produziu alguns dos maiores clássicos da an­ tropologia. Mas o meio era realmente fechado e tendia a m arginalizar quem não per­ tencesse seja ao campo estrutural-funcionalista ou ao íuncionalista. Um bom exem­ plo é A.M. Hocart (1884-1939), cuja obra sobre as sociedades do Pacífico nos anos intermediários entre as duas grandes guerras, influente na época, foi depois esqueci­ da, mas às vezes voltando à tona em anos mais recentes. Hocart realizou pesquisas no Pacífico de 1909-1914, principahnente em Fiji, mas também em Tonga e Samoa. Os interesses de Hocart eram tanto históricos quanto sutilmente estruturais, e ele estava bem distante seja do pragmatismo dinâmico de Malinowski seja da busca de “leis” e “mecanismos” simples de Radclifíe-Brown. Seu principal interesse eram o ritual e as hierarquias sociais, e ele desenvolveu um método comparativo que está mais próxi­ mo da antropologia francesa desde M auss até Lévi-Strauss do que dos seus contem­ porâneos ingleses. Com efeito, seu livro inovador sobre o sistema de castas (Hocart

1938) foi publicado numa tradução francesa antes de aparecer em inglês e é mais ci­ tado em francês do que na literatura anglófona. Hocart nunca conseguiu emprego acadêmico na Inglaterra, mas sucedeu Evans-Pritchard como professor de Sociolo­ gia no Cairo em 1934, onde permaneceu até sua morte prematura.

Outro forasteiro foi o austríaco Siegfried Nadei (1903-1956), músico habilidoso, africanista e pioneiro da antropologia psicológica na Inglaterra; tomou-se professor

na Universidade Nacional Australiana, em Camberra. U m terceiro foi Daryll Forde (1902-1973), ainda mais marginal do que Nadei; ele estudou arqueologia na Ingla­ terra e mais tarde antropologia cultural com Kroeber e Lowie em Berkeley. Voltando à Inglaterra com um a inclinação incomum para estudos ecológicos, ele no entanto encontrou um forte aliado em Evans-Pritchard e foi nomeado Diretor do University College, em Londres^ em 1945.

O mais interessante dos jovens forasteiros ingleses nos anos entre as duas gran­ des guerras, porém , foi Gregory Bateson (1904-1980). Ele vinha de um a família aca­ dêmica, de classe média alta. Seu pai, o famoso biólogo W illiam Bateson, deu esse nome ao filho em homenagem a Gregor Mendel, criador da genética. Bateson estu­ dava biologia quando Haddon, em conversa com ele num trem com destino a Cam- bridge, o converteu para a antropologia (Lipset 1982: 114), e ele logo partiu para pes­ quisas de campo na Nova Guiné. Depois de uma tentativa fracassada de trabalho de campo entre os bainings, Bateson estudou os iatmuls, um povo das terras baixas cujo ritual naven formou a espinha dorsal da prim eira (e única) monografia etnográfica de Bateson, Naven (1936).

Na Nova Guiné, e ao que parece numa viagem de canoa no Rio Sepik, Bateson encontrou Reo Fortune e sua esposa, M argaret M ead, que realizavam trabalho de campo na mesma região. A descrição desse encontro se tornou um clássico na histó­ ria da antropologia. O encontro foi intenso sob todos os aspectos. Os três falaram so­ bre antropologia e a vida em geral, discutiram sobre as diferenças entre os povos que estavam estudando e analisaram corajosam ente suas próprias relações pessoais. Quando a situação se acalmou, Fortune e M ead se divorciaram, Bateson se casou com M ead e em 1939 ambos se m udaram para os Estados Unidos.

O encontro de Mead com Bateson ilustra a relação entre a antropologia inglesa e a americana nesses anos. A admiração de Bateson pelo intelectualism o elegante de Radcliffe-Brown foi posta à prova pela intuição de Benedict com relação à psicolo­ gia e às emoções. Qual era o papel específico do antropólogo: descobrir princípios sociológicos gerais ou descrever as sutilezas da comunicação humana? Um excluía o outro? Ou existia uma linguagem comum que podia abranger a ambos? A m onogra­ fia de Bateson é um a expressão desses dilemas. No ritual naven, homens iatmul se vestem de m ulher e representam o desejo homossexual por seus sobrinhos jovens. B ateson analisou esse ritual a partir de três perspectivas analíticas distintas. A pri­ m eira foi “sociológica e estrutural”, inspirada por Radcliffe-Brown. À segunda ele chamou de eidos (ura estilo cognitivo e intelectual da cultura) e à terceira de ethos (de Benedict). Ele achou muito difícil conciliar, para não dizer sintetizar, esses três enfoques, e acabou desistindo da tarefa. Como foi publicado originalmente em 1936,

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Naven se constitui assim num enigma não solucionado. Só em 1958 apareceu uma segunda edição do livro, com um longo apêndice em que Bateson procurou amarrar as várias pontas soltas.

A monografia de Bateson foi uma obra ambígua, com pouca influência sobre a antropologia da época. Seus contemporâneos ingleses não sabiam o que fazer com ela (Kuper 1996), mas seu prestígio foi aumentando à medida que se tomava claro que ela antecipava várias mudanças que ocorreram na disciplina a partir da década de 1950. Assim, Bateson critica a idéia de “função” que, do ponto de vista dele, é teleo- lógica (ela implica que o efeito precede a causa). As explicações funcionalistas de­ vem ser sempre examinadas com todo rigor, para verificar se elas de fato especificam todos os encadeamentos pelos quais os “propósitos” e “necessidades” do todo são comunicados ao ator individual. Esse exame nos levará a concentrar-nos no processo e na comunicação, e não na função e na estrutura.

Bateson foi um intelectual excepcional que ainda inspira comentários de admira­ ção, alguns deles com as dimensões de um livro (como Harries-Jones 1995). Depois da guerra, seu interesse pela comunicação e pelo processo o aproximaria de estudio­ sos brilhantes em muitos campos: psiquiatras, psicólogos, etólogos, matemáticos, ecólogos, biólogos, etc. Ele logo se tornou uma figura interdisciplinar que fez contri­ buições importantes para campos como o da psicologia e da teoria das comunicações (ver Bateson 1972) e foi pioneiro no uso de modelos cibernéticos na explanação an­ tropológica. Mesmo antes da II Guerra Mundial, seu “trabalho de campo fotográfi­ co” com Mead sobre Bali mostrou sua disposição de explorar os limites da antropo­ logia. Durante a guerra Bateson contribuiu com os estudos de Mead sobre o “caráter nacional” e trabalhou numa teoria da comunicação que influenciou muitos estudio­ sos, antropólogos ou não (capítulo 6).

Parece apropriado terminar este capítulo com o início da carreira de Bateson. Con­ siderado como iconoclasta e excêntrico durante toda sua vida, a primeira tentativa de Bateson de realizar uma síntese teórica consistiu em preencher a lacuna entre a antro­ pologia americana e inglesa do período entre as duas grandes guerras, Ele próprio a considerou um fracasso. Isso deve lembrar-nos de que o abismo entre as duas tradições era bem real. Enquanto americanos mergulhados na antropologia cultural boasiana es­ tudavam o significado simbólico, “padrões culturais” e a relação entre língua e socie­ dade, os bretões concentravam-se em questões como vida social, relações de status, sistemas de parentesco e, cada vez mais, política. Tendências dominantes na antropo­ logia francesa seguiram um terceiro caminho, ao qual retomaremos no capítulo 6. Embora todo historiador da antropologia que se respeite sustente que a antropologia era, afinal de contas, uma disciplina única, o Atlântico, e mesmo o Canal Inglês, eram

linhas de demarcação reais em 1945. Além disso, embora seja simplista pretender que essas fronteiras permanecessem intactas durante a segunda metade do século vinte, se­ ria ingênuo pensar que elas simplesmente haviam desaparecido. As três tradições na­ cionais continuam a caracterizar a antropologia até os dias de hoje.

A estrutura cronológica básica deste livro ficará temporariamente alterada nos próximos dois capítulos. Esses capítulos abrangem os 20 e poucos anos entre o fim da II Guerra Mundial e os novos movimentos radicais que se tomaram populares na parte final da década de 1960. O capítulo 5 apresenta a crítica cada vez maior dirigida ao estrutural-funcionalismo e algumas novas alternativas; o capítulo 6 m ostra como antropólogos em ambos os lados do Atlântico compreenderam o poder dos símbolos e dos rituais, muitas vezes fechando antigas lacunas e, no processo, abrindo novas.

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