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O estudo da interação social, que sempre fora o principal sustentáculo da antro­ pologia britânica, e que, com os novos individualistas metodológicos, se tomara ain­ da mais proeminente, nunca havia alcançado a mesma posição nos Estados Unidos, onde o lugar de honra era ocupado pela cultura. Como observamos anteriormente, porém, havia exceções importantes. Vêm-nos à mente a atuação da Escola de Chica­ go, os antropólogos econômicos formalistas e as contribuições de Ralph Linton, de orientação psicológica (capítulo 4). Foi Linton quem introduziu a distinção mais tar­ de habitual entre status e papel (Linton 1937), que (no nivel do indivíduo) correspon­ de muito proximamente à distinção posterior de Fi,rth entre estrutura social e organi­ zação social (no nivel da sociedade). N a term inologia de Linton, o status é definido por normas morais, pelas expectativas de outros indivíduos e por uma posição formal da pessoa num sistema de relações. Papel, por outro lado, é a expressão do status no comportamento concreto. Enquanto o status é estático, um fato dado, muito à seme­ lhança do roteiro de um a peça teatral, o papel é dinâmico. O papel se baseia no status, como o desempenho do ator se baseia no manuscrito do dramaturgo, mas não se re­ duz a ele. A representação do papel exige e possibilita interpretação ativa e distancia­ mentos criativos com relação ao roteiro.

Linton foi também o primeiro a escrever sistematicamente sobre a diferença en­ tre status adquiridos e atribuídos e sobre o conflito de papéis. Não obstante, o teórico social mais conhecido por sua teoria dos papéis é o microssociólogo de Chicago Erving Goffman, que realizou estudos minuciosos sobre interação e comunicação em cenários de escala diminuta na sociedade moderna e desenvolveu um aparato conceituai sutil para descrever os rituais e rotinas da vida cotidiana. Em contraste com Parsons - o teórico sociológico dominante nos Estados Unidos na época —, Goffman se concentrava sistematicamente no ator, nas suas motivações, estratégias e decisões. Em The Presentation o f S elfin Everyday Life (1959), ele introduziu sua perspectiva dramatúrgica na vida social, levando a metáfora do ator num palco mui­ to além de Linton. Acrescentando ao vocabulário das ciências sociais termos como distância do papel, estigma, subcomunicação e sobrecomunicação, enquadramentos e ritual de interação, Goffman m ostrou como cada ator dispunha de espaço de mano­ bra amplo dentro das limitações estabelecidas pelo status. Suas perspicazes observa­ ções de pessoas interagindo em situações cotidianas, observando, interpretando e co-

municando suas intenções e reações (espontâneas, autoconscientes ou dissimuladas) a si mesmas e umas às outras - elevaram a novas alturas nossa compreensão da inten­ sa reflexividade que caracteriza a vida social humana (ver Goffman 1967).

Diferentemente de grande parte do trabalho empreendido por antropólogos ame­ ricanos nas décadas de 1950 e 1960, os escritos originais, lúcidos e muitas vezes pro­ vocativos de Goffman cruzaram o Atlântico rapidamente, onde foram prazerosa­ mente utilizados na guerra contra o estrutural-funcionalismo, embora o próprio Goffman fosse de fato muito influenciado por Durkheim. Nos Estados Unidos, po­ rém, sua influência ficou, inicialmente e em grande parte, limitada à sociologia.

Outra inovação dos primeiros anos do pós-guerra teve um destino um tanto se­ melhante. A cibernética, a teoria dos sistemas complexos, auto-reguladores (os com­ putadores são um exemplo perfeito), foi desenvolvida pelos fins dos anos 1940 por um grupo interdisciplinar liderado pelo matemático Norbert W iener (1948), alcan­ çando imediatamente importância prática na configuração de computadores. Ecolo­ gistas, biólogos, psicólogos da percepção, economistas e especialistas em inúmeras outras ciências também passaram a aplicar rapidamente a nova teoria. A cibernética entrou na antropologia num estágio inicial graças a Gregory Bateson, que estava li­ gado ao grupo de Wiener. A cibernética, uma disciplina complexa e técnica, concen­ tra-se nas relações de causação circular ou realimentação (feedback), onde “causa” e “efeito” se influenciam mutuamente. Além disso, ela estuda o fluxo da informação nesses circuitos. Conectando circuito a circuito por meio de comutadores lógicos (que dirigem o fluxo por caminhos específicos através do sistema), forma-se uma vasta rede interconectada que transporta impulsos significativos. O ecossistema e o corpo são exemplos de redes assim e, como percebeu Bateson, não há motivo para não descrever a sociedade da mesma forma. O resultado é uma espécie de funciona­ lismo, e, de fato, pode-se dizer que a cibernética torna obsoleta pelo menos parte da critica contra a tautologia, absolvendo o funcionalismo, pelo menos potencialmente, do seu pecado mais evidente. A antropologia de inspiração cibernética difere do fun­ cionalismo, porém no sentido de que todas as conexões internas do sistema devem ser especificadas explicitamente.

Em inúmeros artigos, que mais tarde foram reunidos em Steps to an Ecology o f Mind (1972), Bateson esboçou uma teoria da comunicação humana que ele aplicava (criativamente e, às vezes, fantasiosamente) a áreas tão diferentes como estética, fle­ xibilidade ecológica, comunicação animal, esquizofrenia e constituição do s e lf Uma contribuição importante foi seu conceito de metacomunicação, o qual denota mensa­ gens embutidas na comunicação normal que informam o receptor que ele está rece­ bendo informações de um tipo específico. Compondo mensagens desse modo somos

5. FORMAS D E MUDANÇA 117

capazes de definir uns para os outros o contexto a que elas pertencem (isso é amor; isso é jogo; isso é politica).

Nesse aspecto do seu pensamento, Bateson se parece a Goffman e, como Goffman, ele foi ignorado pela maioria dos antropólogos americanos de sua época. Entretanto, novamente como Goffman, ele exerceria influência considerável, embora não sistemá­ tica, sobre os antropólogos em quase todos os paises no restante do século vinte.

Um mundo em mudança exige teorias talhadas para estudar a mudança. Esse foi o desafio básico enfrentado pelos antropólogos, tanto na Inglaterra como nos Esta­ dos Unidos. Em ambos os casos também, esse desafio surgiu sobre o pano de fundo de teorias sociais hegemônicas que descreviam uma imagem intensamente idealiza­ da da sociedade (estrutura social) ou da cultura (ethos). Assim, ambos os grupos de inovadores reagiram cora um enfoque voltado para o lado prático da vida. Entretan­ to, se esses grupos, por um lado, tinham em comum um interesse pelos processos práticos, materiais, da mudança, por outro eles divergiam profundamente quanto ao modo como esses processos deviam ser estudados. Nos Estados Unidos a redesco- berta de Marx e Morgan implicou um foco sobre instituições, análises estruturais de desigualdade, condições de desenvolvimento e subdesenvolvimento e outros aspec­ tos da mudança em larga escala. No que se refere à antropologia individualista e psi­ cológica de Benedict, os antropólogos Stewart, W hite e seus alunos passaram dos processos individuais para os processos históricos de grande escala. N a Inglaterra ocorreu o contrário: a atenção deslocou-se do coletivo para o individual. A ortodoxia dominante, o estrutural-funcionalismo, foi coletivista em sua orientação e era ataca­ da não somente por oferecer uma imagem estática, congelada, do mundo, mas tam­ bém por não deixar espaço de manobra para o indivíduo. Se, nas análises americanas, a mudança era resultado de processos impessoais, históricos, o agente típico da mu­ dança na Inglaterra era um estrategista calculista ou um empreendedor inovador. Além disso, enquanto os evolucionistas americanos viam o poder (com Marx) como resultado da dinâmica econômica global, os interacionistas ingleses (com Weber) o viam como um recurso político sujeito à competição individual. Assim, o movimen­ to cm direção à “mudança” seguiu caminhos diferentes.

Outras mudanças importantes também ocorreram na antropologia durante as dé­ cadas de 1950 e 1960. Este capítulo mostrou como a economia e a política foram re- conceitualizadas; o próximo mostrará como novas teorias de significado simbólico transformaram a disciplina. Aqui também o cenário nos Estados Unidos e na Ingla­ terra foi distinto, apesar da semelhança dos problemas levantados. No entanto, o úni­ co teórico mais importante era francês.

N o s anos 1950 os antropólogos estavam descobrindo a mudança, seja como mo­ vimento evolucionário (nos Estados Unidos) seja como inovação individual (na In­ glaterra). Mas estavam também descobrindo o significado. Especulações a respeito do significado dos símbolos não eram coisa nova. De fato, nos Estados Unidos, a “descoberta” não foi nada subversiva. Os mais importantes antropólogos simbólicos americanos jovens, Clifford Geertz e David Schneider, consideravam-se herdeiros diretos da tradição boasiana. Na Inglaterra a situação era diferente. Aqui, o estudo do significado ainda estava associado a Frazer, que havia especulado extensamente so­ bre as funções da magia em The Golden Bough. Durltheim havia estudado a religião, mas em seu aspecto ritual, não como um universo de significado. Seu interesse volta­ va-se mais para a prática organizacional da religião do que para seu conteúdo, A so­ ciologia interpretativa de Weber não era bem conhecida. Assim, no contexto britâni­ co, o estudo do significado estava contaminado de evolucionismo e era evitado. A grande exceção à regra, aqui, foi Evans-Pritchard, que corajosamente seguira a linha de Frazer ao estudar a feitiçaria azande, antes de se tomar um dos principais promo­ tores do estrutural-funcionalismo. Agora ele se tomaria um apóstata e conduziria a antropologia britânica a esse novo reino. Na França o caminho tomado foi totalmente diferente. O estiuturalismo de Lévi-Strauss cra em grande parte visto como o coroa- mento da tradição derivada de Durkheim e Mauss. Mas era isso mesmo? Intelectuais franceses posteriores passariam muitos anos debatendo essa questão.

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