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Apesar da amplitude da pesquisa americana, não é esse o aspecto que de modo geral mais se associa à antropologia das décadas de 1930 e 1940. Lembramos, em vez disso, que os grandes estmtural-funcionalistas ingleses e suas monografias clás­ sicas, que não somente se fixaram nos “verdadeiros primitivos”, mas ainda descreve­ ram os princípios estruturais subjacentes à vida desses primitivos de um modo que, em sua elegância formal, era eminentemente “civilizada” . Os autores desses estudos

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eram principalmente ex-alunos de Malinowski, alguns deles mais próximos de Rad- cliffe-Brown do que outros. Até a década de 1950 alguns dentre os homens mais pro­ eminentes (nenhuma mulher) desse grupo foram indicados para posições importan­ tes em universidades britânicas de prestígio. A maioria, constituída principalmente pelos alunos leais a Firth e Malinowski, teve de esperar até a década seguinte.

Um dos alunos mais destacados de Malinowski, que mais tarde se tomaria o prin­ cipal defensor do estrutural-funcionalismo de Radcliffe-Brown, foi Meyer Fortes (1906-1983), um judeu sul-africano, psicólogo por formação. O rompimento de For­ tes com Malinowski nos anos 1930 foi dramático, e motivado não exclusivamente por diferenças acadêmicas. Por exemplo, ao que tudo indica, em 1934 Malinowski pediu a Fortes que fizesse uma declaração por escrito em que con Firmasse que havia emprestado todas as suas idéias do próprio M alinowski (Goody 1995: 37). Enquanto Firth, o neozelandês pacato e pacífico, reagia às explosões de Malinowski com estoi­ cismo e ceticismo, Fortes as tomava pessoalmente. De qualquer modo, à época da publicação do seminal African Political Systems (Fortes e Evans-Pritchard 1940), já não havia mais dúvida de que os interesses de Fortes estavam muito mais próximos dos de Radcliffe-Brown do que dos de Malinowski. Sua especialidade era o paren­ tesco, um tema sobre o qual Malinowski nunca escreveu em detalhe, embora prome­ tesse durante anos um livro sobre o parentesco entre os trobriandeses. Em 1932 For­ tes começou seu primeiro grande trabalho de campo na Costa do Ouro (hoje Gana), e nas décadas de 1940 e 1950 ele publicaria extensamente sobre dois dos maiores e so­ cialmente mais complexos povos desse país, os axântis e os tallensi. O seu The Dyna­ mics o f Clanship among the Tallensi (1945) é considerado um dos pontos altos do es­ trutural-funcionalismo. Foi em grande parte devido aos esforços de Fortes que a an­ tropologia britânica do período era muitas vezes qualificada pejorativamente como “ciência do parentesco”. Muitos, principalmente entre os americanos, achavam que toda a atenção dedicada ao parentesco traía as ambições hoiísticas da disciplina.

O ponto alto do estrutural-funcionalismo pode ser situado nos anos 1947-1949, quando Radcliffe-Brown, Fortes, Gluckman e Evans-Pritchard estavam em Oxford. Radcliffe-Brown havia considerado o parentesco como o motor que movia a socie­ dade primitiva, a cola que a mantinha unida e o universo moral em que ela vivia. Essa visão foi confirmada e fortalecida através dos estudos de Fortes, os quais - embora baseados solidamente na etnografia - concentravam-sè em “mecanismos” e em prin­ cípios estruturais. Seu aliado profissional próximo e amigo, Evans-Pritchard, acom­ panhou a dedicação de Fortes aos estudos estrutural-funcionalistas do parentesco na prim eira metade de sua carreira, mas seguiu um a direção diferente durante a déca­ da de 1950 (capítulos 5-6). Como a maioria dos antropólogos ingleses de sua geração,

Evans-Pritchard havia estudado com Malínowski na LSE, mas entre seus professores estavam também Marett, da Expedição a Torres e, ainda mais importante, Charles Seligman, especialista em Sudão. Foi sob a supervisão de Seligman que Evans-Prit- chard realizou seus estudos de campo no Sudão durante os anos 1930, principalmen­ te entre os azandes e os nueres. Evans-Pritchard e Malinowski nunca foram próxi­ mos. M alinowski deliciava-se com descrições poéticas, detalhadas e evocativas da vida dos trobriandeses, ao passo que Evans-Pritchard tinha paixão pela teoria soeiafe preferia uma análise intelectual arguta, elegante e logicamente coerente. Além disso, Evans-Pritchard era uma exceção à regra segundo a qual os primeiros antropólogos eram “forasteiros”. Esse “inglês verdadeiramente inglês, apesar do nome galês”, como Leach (1984) o descreve, parecia realmente personificar as classes altas britâ­ nicas, das quais Malinowski, como forasteiro, jam ais faria parte.

De volta em 1931, Evans-Pritchard havia ficado impressionado com Radclif- fe-Brown, que se deteve brevemente na Inglaterra en route de Sydney para Chicago. Entretanto, ele nunca foi um simples aluno do mestre durkheimiano. Quando Rad- cliffe-Brown voltou a Oxford em 1937, Evans-Pritchard já exercia suas funções ali e não só passara anos realizando trabalhos de campo no Sudão, mas tam bém havia tra­ balhado durante três anos como professor de Sociologia no Cairo. Seu primeiro livro, Witchcraft, Oracles and Magic among the Azande (1937), foi publicado no ano do retorno de Radcliffe-Brown, sendo imediatamente reconhecido como uma obra-pri­ ma. A monografia aborda as crenças de feitiçaria de um povo agrícola no sul do Su­ dão, e o cerne de sua análise, uma das mais celebradas e muito debatida em antropo­ logia, segue duas direções: por um lado, ela entende a feitiçaria como uma “válvula de segurança” que redireciona os conflitos sociais para canais inofensivos, um m eca­ nismo de integração na melhor tradição durkheimiana; por outro, ela é uma tentativa corajosa de compreender um mundo de pensamento estranho e desconhecido, apre­ sentado em seus próprios termos. Notável é o modo como a análise une essas duas abordagens num todo inteiriço. O sistema de crenças não somente estabiliza e har­ moniza a ordem social existente, mas é racional e coerente, dados os pressupostos ló­ gicos do pensamento zande. Evans-Pritchard enfatiza o lado prosaico, auto-evidente e prático dessas crenças. Pensamento e fé não são processos abstratos, fora dos even­ tos concretos da vida de cada dia, mas um a parte inseparável desses eventos. Alguns comentadores (especialmente Winch 1958) ressaltaram a dimensão estrutural-funcio- nalista do trabalho de Evans-Pritchard, afirmando que ele reduz as crenças de feiti­ çaria às suas “funções sociais” . Outros (como Douglas 1980, mas também Feyera- bend 1975) enfatizaram exatamente o contrário, que Evans-Pritchard demonstra que conhecimento ou crença são produtos sociais em toda parte.

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A segunda obra importante de Evans-Pritchard apareceu em 1940, o mesmo ano da publicação do volume sobre os sistemas políticos africanos que ele editou com Fortes. The Nuer, um estudo da organização política de um povo pastoril patrilinear que vivia logo ao norte dos azandes, é escrito mais no espírito de Radcliffe-Brown. O livro se propõe a tratar de um problema central na antropologia de povos acephalous (“sem Estado”), especificamente, como pode ocorrer mobilização política de larga escala na ausência de uma liderança centralizada. O livro, que evoca vividamente o mundo dos nueres, é também um tour de force de “ciência do parentesco” . Os confli­ tos são organizados em tomo do parentesco. O princípio da organização segmentei- ria - “cu contra meu irmão, eu e meu irmão contra nossos primos, irmãos e primos contra primos em terceiro grau”, e assim por diante - predominou nessa análise, que também demonstrou a influência inibidora de conflitos exercida por relações (como casamentos) que se estabelecem no sistema patrilinear - um aspecto que depois foi desenvolvido mais explicitamente por Gluckman (1956). No último capítulo Evans- Pritchard elabora sua visão de estrutura social, definida aproximadamente na mesma linha de Radcliffe-Brown, como um sistema abstrato de relações sociais que conti­ nua a existir inalterado apesar das mudanças de pessoas. A continuidade a partir da monografia sobre os azandes também é notória. Evans-Pritchard considerava o pa­ rentesco e a feitiçaria como dois exemplos de “modos de pensamento” e em ambos os casos ele está interessado em mostrar como o pensamento tem relação com o que Pierre Bourdieu (1990) chamaria mais tarde de “lógica da prática”.

As monografias de Fortes e de Evans-Pritchard sobre os tallensi, os axântis, os azandes e os nueres foram, depois da obra pioneira de Seligman, essenciais na transfe­ rência do foco regional da antropologia social britânica do Pacífico para a África, mas é preciso lembrar que outros antropólogos importantes também trabalhavam na África na época - Richards entre os bembas, Schapera entre os tswanas, Gluckman entre os zulus e Forde entee os yakõs. Sistemas Políticos Africanos, que incluíam contribuições de cerca de uma dúzia de antropólogos ingleses, foram uma demonstração extraordi­ nária dessa nova ênfase regional. Na introdução, recheada de citações, os editores dis­ tinguiram três tipos de sociedades africanas: sociedades igualitárias, ou de pequena es­ cala (em sua maioria formadas por caçadores e coletores), sociedades estatais (como o reino de Buganda) e a interessante sociedade segmentária, do tipo intermediário, base­ ada na linhagem, da qual os nueres se tomaram o modelo; é uma sociedade descentrali­ zada, mas capaz de formar grupos grandes, colaborando uns com os outros para objeti­ vos específicos (para a guerra, por exemplo). Como veremos, a sociedade segmentária preocupou os antropólogos durante décadas, não só na Inglaterra (ver, por exemplo, Sahlins 1968). Durante os grandes debates sobre o parentesco nas décadas de 1950 e

1960, o modelo apresentado em African Political Systems recebeu críticas de várias di­ reções. Alguns achavam que ele era simplesmente enxuto demais para acomodar as complexidades da vida real. Outros o desmereceram rotulando-o de evolucionismo disfarçado. Outros ainda (mais especialmente Lévi-Strauss) rejeitaram seu foco exclu­ sivo na descendência como principio de parentesco.

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