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O dever constitucional de pactuar o desempenho para a boa administração pública

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Academic year: 2021

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

MESTRADO NA ÁREA DE CONCENTRAÇÃO DIREITO PÚBLICO

O DEVER CONSTITUCIONAL DE PACTUAR O

DESEMPENHO PARA A BOA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

.

NADJARA LIMA RÉGIS

SALVADOR-BA 2017

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O DEVER CONSTITUCIONAL DE PACTUAR O

DESEMPENHO PARA A BOA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

.

Dissertação apresentada no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito, na Universidade Federal da Bahia - UFBA, para obtenção do título de Mestre em Direito Público.

Orientador: Professor Doutor Celso Luiz Braga de Castro.

SALVADOR-BA 2017

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PARA A BOA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.

Dissertação apresentada à Universidade Federal da Bahia - UFBA, no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito, como requisito para obtenção do título de Mestre em Direito Público.

_________________________________ Nadjara Lima Régis

Dissertação aprovada em 10/03/2017

Orientador: _________________________________________________________________________________ Professor Celso Luiz Braga de Castro – Doutor

COMISSÃO EXAMINADORA

1º EXAMINADOR: _______________________________________________________ Professor Fábio Lins de Lessa Carvalho - Doutor

2º EXAMINADOR: ______________________________________________________ Professor Celso Luiz Braga de Castro - Doutor

3º EXAMINADOR:______________________________________________________ Professor Heron José de Santana Gordilho - Pós Doutor e Coordenador do PPGD

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A meu pai, por sua vontade de justiça; A minha mãe, por sua temperança; Aos meus filhos, fonte de esperança.

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Minha gratidão ao Prof. Dr. Celso Luiz Braga de Castro, pela credibilidade até a conclusão deste estudo e por seus diálogos e sugestões. Sua orientação de estilo minimalista deu-me liberdade para me perder e me reencontrar. Devo-lhe o contato, em especial, com o pensamento do lusitano Antônio Francisco de Souza.

Agradeço aos professores doutores Manoel Jorge e Silva Neto, Paulo Pimenta, Rodolfo Pamplona Filho, Nelson Cerqueira, Maria Auxiliadora Minahim, pelas obras e debates no ministério de seus cursos, e à Kaline Davi Ferreira, com quem tive a satisfação de realizar o tirocínio docente. Meu agradecimento ao Prof. Dr. Heron Santana Gordilho, coordenador do Programa de Pós-Graduação e ao Prof. Dr. Júlio César Sá da Rocha, pela compreensão necessária quando diante percalços. Da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, agradeço ao Prof. Dr. Carlos Alberto Pereira Silva, que me aproximou da obra de Lipovetsky.

Meus agradecimentos ao Prof. Dr. Penildon Silva Filho, pró-reitor de Ensino de Graduação da UFBA, ao Prof. Dr. Urbano Félix Pugliese, da Universidade Estadual da Bahia (UNEB) e ao Prof. Dr. Idney Cavalcanti, pelo estímulo em participar da seleção promovida pelo PPGD.

Meu especial agradecimento a Fábio Sena, por sua insistente contribuição, vez que são de seu acervo Os donos do Poder, de Raimundo Faoro, A Formação das Almas, de José Murilo de Carvalho, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, História Sincera da República, de Leôncio Basbaum e O Brasil Republicano, de Fernando Henrique Cardoso e outros. Além da especial solidariedade no lar.

Sou grata aos parentes e amigos que zelaram por meus filhos de tenra idade durante meus deslocamentos de Vitória da Conquista a Salvador. À família Sena que me acolheu em Brasília. A Dernival Araújo, pela prestimosa atenção nas oportunidades em que meus filhos tiveram ausentes seus pais.

Agradeço, também, aos servidores da Faculdade de Direito da UFBA, em especial Luiza Luz de Castro e Mércia Mendonça, ágeis nas informações e encaminhamentos. Aos servidores das bibliotecas do STF e do Senado e da biblioteca da Faculdade Baiana de Direito.

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Este é o esmaga sonhos, ele me protege de ter metas não realistas.

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1. INTRODUÇÃO ...09

2. O MODELO GERENCIAL DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ...23

3. DA SOCIEDADE MODERNA À PÓS-MODERNA ...24

4. BREVES NOÇÕES: DO ESTADO MODERNO AO CONTEMPORÂNEO... 35

5. O SURGIMENTO DO DIREITO ADMINISTRATIVO ... 48

6. FUNDAMENTOS DO DIREITO ADMINISTRATIVO CONTEMPORÂNEO E O NEOCONSTITUCIONALISMO ... 60

6.1 OS POSTULADOS DA RAZOABILIDADE, PROPORCIONALIDADE E EFICIÊNCIA. ... 67

6.1.1 DA RAZOABILIDADE ... 70

6.1.2 DA PROPORCIONALIDADE ... 72

6.1.3 DA EFICIÊNCIA ... 77

6.2 OS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: LEGALIDADE IMPESSOALIDADE, MORALIDADE E PUBLICIDADE... 83

6.2.1 DA IMPESSOALIDADE ...83

6.2.3 DA MORALIDADE... 86

6.2.4 DA PUBLICIDADE... 87

6.2.5 DA LEGALIDADE (JURIDICIDADE)... 90

7. A CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS... 93

7.1. O DIREITO FUNDAMENTAL À BOA ADMINISTRAÇÃO... 96

8. O DEVER DE PACTUAR O DESEMPENHO DA GESTÃO PUBLICA À LUZ DA INTERPRETAÇÂO TRADICIONAL... 100

8.1 INTERPRETAÇÃO GRAMATICAL ...100

8.2 INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA... 109

8.3 INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA...110

8.4 INTERPRETAÇÂO TELEOLÓGICA...113

9. O DEVER DE PACTUAR O DESEMPENHO DA GESTÃO PUBLICA À LUZ DA NOVA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL...113

10. A RESPONSABILIDADE POLÍTICA E PESSOAL NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA... 122

11. CONCLUSÃO...128

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O dever de pactuar a demonstração de desempenho da Administração Pública é extraído diretamente da interpretação que busca máxima efetividade da autoaplicabilidade dos princípios constitucionais da Administração Pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Já da interpretação tradicional da regra constitucional que prevê o pacto de gestão é possível concluir que o dever de desempenho é incondicionado à escolha política de ampliar a autonomia administrativa, orçamentária e financeira de um órgão ou entidade pública. A doutrina e a jurisprudência, entretanto, não vislumbram, ainda que vinte anos após a introdução da Emenda Constitucional nº 19, de 1988, que a demonstração de desempenho da gestão tem natureza jurídica de dever que vincula a todos que ocupam cargo público da alta administração ou cargo de chefia ou direção, independentemente da escolha pelo modelo de administração gerencial no Estado brasileiro. O dever de pactuar a demonstração de desempenho da gestão pública decorre de interpretação constitucional pela máxima efetividade dos princípios constitucionais da Administração Pública, e que tem por fim ampliar a proteção ao Direito Fundamental da Boa Administração Pública.

Palavras-chave: Princípio da Eficiência. Contrato de gestão. Desempenho da Administração Pública Dever Constitucional. Direito Fundamental a Boa Administração Pública.

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The duty to agree on the performance of the Public Administration is extracted directly from the interpretation that seeks maximum effectiveness of the self-application of the constitutional principles of Public Administration: legality, impersonality, morality, publicity and efficiency. From the traditional interpretation of the constitutional rule that provides for the management pact it is possible to conclude that the duty of performance is unconditioned to the political choice to extend the administrative, budgetary and financial autonomy of a public body or entity. However, 20 years after the introduction of Constitutional Amendment no. 19 of 1988, doctrine and jurisprudence do not envisage that the demonstration of management performance is a legal obligation that binds all those holding public office of top management Or managerial or managerial position, regardless of the choice by the managerial management model in the Brazilian State. The duty to agree on the performance of public management results from a constitutional interpretation for the maximum effectiveness of the constitutional principles of the Public Administration, and whose purpose is to extend the protection of the Fundamental Law of Good Public Administration.

Keywords: Principle of Efficiency. Management agreement. Performance of the Public Administration Constitutional Duty. Fundamental Right to Good Public Administration .

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1. INTRODUÇÃO

Na realidade brasileira, adotar no cotidiano das relações sociais o direito como força viva – percepção de Rudolf von Ihering1 – é fazer uma luta pelo direito e contra as raízes do Brasil2. É, pois, de modo consciente ou não, imbuir-se em um movimento contracultura.

Quinto maior país no mundo em área territorial, o Brasil tem sua população distribuída em seus 5.570 municípios ainda submetida à parca infraestrutura urbana, com o progresso da modernidade (transporte, saneamento, moradia, emprego formal, universidades, tecnologias de informação, enfim, a urbanização) atingindo de modo muito indireto e desigual as grandes parcelas populacionais. Ao explicar o que seriam na obra de Buarque as raízes do Brasil, o sociólogo Antônio Cândido destaca, o que ele entende ser a tese sugerida pelo historiador, de que é o predomínio da cultura das cidades que tem como consequência o “aniquilamento das raízes ibéricas de nossa cultura para a inauguração de um estilo novo”, talvez mais próximo da cultura americana, e, ainda, de que “sendo nosso passado um obstáculo, a liquidação das ‘raízes’ era um imperativo do desenvolvimento histórico”3.

Uma dessas raízes ibéricas é o mais extremo personalismo e a tendência ao arbítrio, que encontra no ambiente político e na administração pública terreno fértil para engendrar as contradições de sua convivência com o Estado de direito. Em verdade, a luta pela efetividade dos princípios constitucionais da administração pública, previstos no frontispício do artigo 37, da Constituição Federal, é também uma luta pelo aniquilamento do homem cordial – expressão tomada ao magistrado Ribeiro Couto e convertida em metáfora por Buarque de Holanda – que está sintetizada no seguinte trecho:

O “homem cordial” é visceralmente inadequado às relações impessoais que decorrem da posição e da função do indivíduo, e não da sua marca pessoal e familiar, das afinidades nascidas na intimidade dos grupos primários.

[...]

Ao que se pode chamar “mentalidade cordial” estão ligados vários traços importantes, como a sociabilidade apenas aparente, que na verdade não se impõe ao indivíduo e não exerce efeito positivo na estruturação de uma ordem coletiva. Decorre deste fato o individualismo, que aparece aqui focalizado de outro ângulo e se manifesta como relutância em face da lei que o contrarie. Ligada a ele, a falta de capacidade para aplicar-se a um objetivo exterior4.

Ao relacionar o homem cordial e o caput do artigo 37, da Constituição Federal,

1 IHERING, Rudolf von. A Luta pelo Direito. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

2 DE HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 3 Ibidem, p. 18 et seq.

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comparamos que a luta pelo princípio constitucional da legalidade é, também, uma luta contra a relutância em face da lei que o contrarie; que a luta pelo princípio constitucional da impessoalidade é também uma luta para inibir o padrão pessoal e afetivo/ familiar e passional a que se busca reduzir as relações sociais; e a luta pela eficiência na administração pública é, ao cabo, uma luta para erradicar uma individualidade precária, transfigurada na falta de capacidade para aplicar-se a um objetivo exterior.

Esta noção de homem cordial, de Buarque de Holanda, encontra correspondência em Gilberto Freyre, na metáfora que adotou de que o povo brasileiro busca resolver seus problemas na casa invés de na rua. O antropólogo DaMatta5 elabora que a casa e a família funcionam como um “código de interpretação” dos fatos, “avesso à mudança e à história, à economia, ao individualismo e ao progresso”. Segundo ele, referimo-nos à casa como local de trabalho, ou até mesmo ao país como um todo e “se o local de trabalho é uma casa, é sinal que patrões são pais [...] e seus empregados são seus filhos (ou suas mulheres)”.

O coronelismo é a melhor expressão política das raízes ibéricas para o Brasil republicano. Bem o definiu o jurista e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Victor Nunes Leal6 como um sistema que resulta “da superposição de formas desenvolvidas do regime

representativo a uma estrutura econômica e social inadequada”; desenvolve-se como “uma adaptação em virtude da qual os resíduos do nosso antigo (refere-se ao período colonial – grifo nosso) e exorbitante poder privado têm (sic) conseguido coexistir com um regime político de extensa base representativa”. Manifesta-se como um compromisso entre o poder estatal que necessita de votos e o poder econômico privado, para o que o Executivo local embrenha-se no mandonismo, filhotismo e na desorganização dos serviços públicos locais. O filhotismo é um regime de favores aos amigos (família, partidários e agregados políticos); o mandonismo se dá com o tratamento hostil aos adversários, que inclui a perseguição política. Há a influência do chefe local para as nomeações em cargos de outras esferas governamentais; e os cargos do município são nomeados e exonerados exclusivamente em razão da confiança política.

A situação de profunda desigualdade na distribuição de renda e de falta de efetividade dos direitos e garantias de amplas parcelas populacionais, comenta Barbosa Sobrinho, “concorre para a continuação do ‘coronel’, arvorado em protetor ou defensor natural de um

5 DAMATTA, Roberto. Casa, Rua & Outro Mundo: reflexões sobre o espaço e a sociedade. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 19, 1984. p. 9 et seq.

6 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 7ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 43 et seq.

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homem sem direitos”7, ainda que, conforme observa De Queiroz8, o coronel dono de terras

tenha desaparecido cedendo a novas lideranças políticas oriundas da camada de profissionais liberais, que melhor exercem o – segundo expressão cunhada pela autora – “paternalismo diplomático e de etiquetas refinadas”.

A luta pelo direito no Brasil ainda é a luta pela consolidação da percepção jurídica do Estado, em uma sociedade que em vasto território permanece submetida a baixíssimos níveis de desenvolvimento urbanístico, convivendo com os fatores materiais que sustentam variados resquícios do coronelismo no cotidiano das administrações públicas municipais e estaduais, principalmente. A distribuição de cargos públicos estaduais e federais nos municípios ainda se faz, como descrito em Victor Nunes, entre os amigos políticos, e em razão destes, sem simbolizar compromisso algum com metas ou marcos da gestão pública, em que pese o marco constitucional da administração pública eficiente. E persiste, também, a relutância em face da lei que contraria o chefe político, a dizer das leis que determinam a seleção pública para contratação temporária de excepcional interesse público e da que coíbe o nepotismo, de modo que muitos municípios brasileiros se enquadram na seguinte descrição, nas palavras de Euclides Neto9:

O desgaste se inicia na indicação dos cargos. Chega-se a um ponto em que os deputados é que formam o quadro administrativo do governo que se instala [...]. Daí o acordo pelo qual os políticos de todos os naipes indicam os presidentes, diretores, gerentes, até o porteiro do primeiro, segundo, terceiro escalão e haja soldado raso para saciar a voracidade dos correligionários – velhos, novos e de ocasião. Aí vale tudo, do cabo eleitoral incompetente e corrupto que pretende cargos técnicos, até o nepotismo deslavado. [...] o presidente do partido já falava em ruptura com o governador, porque até aquele momento não nomeara os seus indicados [...].

Na disputa eleitoral prevalece ampla margem de atuação do prefeito municipal como chefe político, cujo compromisso com o seu partido político ou com a situação é conquistar a base eleitoral para o governador e o presidente da República, e para isso, enfatiza o voto como troca de uma prestação pública (projeto ou programa de governo e, mesmo, política pública) recebida ou a receber; de modo que o que foi registrado em 1957 continua explicando dias atuais: o chefe político continua a assegurar a proteção [...], mas esta proteção, com o desenvolvimento da consciência nacional, perde, mais e mais, seu caráter político para tomar

7 Ibidem, p. 41.

8 DE QUEIROZ, Maria Isaura Pereira. O Coronelismo numa interpretação sociológica. In: CARDOSO, Fernando Henrique et al. O Brasil republicano: estrutura de poder e economia (1889-1930), 8.ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. 163.

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aspecto administrativo10.

Os agentes políticos auxiliares (secretários municipais, secretários estaduais e ministros de Estado) ingressam na administração pública exclusivamente em razão da vontade pessoal do chefe político, que pode fazê-lo por razões de apreciação da competência ou exclusivamente por foro íntimo (pessoa amiga ou indicada por amigo) ou considerando questões relativas à arrumação da base partidária de apoio ao governo ou para atender algum pedido de político aliado. A nomeação ou a exoneração de agentes públicos em cargos de provimento comissionado e de funções de confiança tem passado longe de se justificar, ainda que a posterior, em planos de cumprimento do programa de gestão.

Parodiando a lição de Faoro11 ao tratar de aspectos da monarquia romana, o que prevalece é o antiquado vislumbre patrimonialista do séquito de auxiliares “do príncipe”, que se toma como proprietário virtual das pessoas. No rodízio que costuma existir de agentes públicos em cargos de livre nomeação e exoneração, a população não conhece como foi recebido nem como foi deixado o estado de coisas do órgão que o nomeado ou exonerado do cargo assumiu como responsabilidade de gestão.

Não há plano de gestão, compromissos firmados com metas e a demonstração de resultados, nem na chegada e nem na saída; isto considerando que, administrativamente, bem afirma García-Pelayo12, o superior hierárquico detenha, de fato, a palavra última nas decisões político-administrativas do órgão. É de se considerar que, com a complexidade da estrutura do Estado, não foi renovada a percepção jurídica da livre nomeação de agentes públicos.

Na estrutura da administração pública do Executivo Federal, segundo matéria do Jornal impresso O Globo13, é superior a 13% do total de servidores federais a ocupação de cargos de livre nomeação e exoneração. Em outra matéria, esta veiculada pela agência de notícias BBC Brasil14, demonstra-se que, entre 2011 e 2016, a presidente da República trocou 86 vezes seus ministros de Estado de 38 ministérios mantidos, sem incluir na conta as nomeações de ministros interinos.

Em âmbito de administração municipal, a Secretaria de Educação da Prefeitura

10 DE QUEIROZ, op. cit. p. 161.

11 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Rio de Janeiro: Globo, 1989. p. 11.

12 GARCÍA-PELAYO, Manuel. As transformações do estado contemporâneo. Tradução de Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2009.

13 DE SOUZA, André et al. O espólio petista: caso assuma a Presidência, Temer terá 10 mil cargos ocupados por petistas para oferecer a aliados. Jornal O Globo, 08/05/ 2016, Rio de Janeiro. p. 3.

14 FELLET, João. Dilma trocou ministros 86 vezes desde que assumiu. BBC BRASIL, 22 abr 2016. Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/04/160419_dilma_ministros_jf_lk> Acesso: 22/07/2016.

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Municipal de Vitória da Conquista, cidade com mais de 340 mil habitantes no Estado da Bahia, contando com rede pública de ensino com mais de quarenta mil alunos matriculados, experimentou, em menos de quatro anos, a gestão de quatro secretários municipais; assim também a Secretaria de Administração, que responsável pela política de recursos humanos de quase oito mil servidores públicos municipais, foi ocupada em um mesmo governo por três secretários municipais.

Neste bojo, permanece válida para a realidade de nosso país, no primeiro quartel do século XXI, a afirmação de que tudo ou quase tudo no município gira em torno do prefeito e muito menos que administrador, o prefeito tem sido, entre nós, acima de tudo, chefe político15. Tanto mais prevalece para a contemporaneidade uma de suas considerações finais referentes à realidade brasileira da primeira metade do século XX:

Tivéssemos maior dose de espírito público e as coisas certamente se passariam de outra forma. Por isso, todas as medidas de moralização da vida pública nacional são indiscutivelmente úteis e merecem o aplauso de quantos anseiam pela elevação do nível político do Brasil. Mas não tenhamos demasiadas ilusões. A pobreza do povo [...] o seu atraso cívico e intelectual constituirão sério obstáculo às intenções mais nobres16.

Esses aspectos de natureza sociológica e cultural, que continuam explicando a sociedade brasileira ao demonstrar profundas contradições com relação às percepções mais contemporâneas do Estado Democrático de Direito, impõem como desafio perene a formação das almas por uma percepção jurídico-constitucional das relações travadas na vida pública; e convocam os intérpretes do direito a adequar permanentemente a teoria e a práxis do direito no sentido da busca da máxima efetividade do sistema jurídico e constitucional.

A elaboração de um imaginário social é parte integrante da legitimação de qualquer regime político, sendo a democracia que rege a sociedade brasileira desde que se fez constituir o Estado Democrático de Direito com a promulgação da Constituição de 1988. O imaginário social, conforme compreensão ofertada pelo historiador e cientista político José Murilo de Carvalho17, “é constituído e se expressa por ideologias e utopias” e “por símbolos, alegorias, rituais, mitos” que funcionam para “atingir as aspirações, os medos e as esperanças de um

15 LEAL, op. cit., 135. 16 Ibidem, p. 240.

17 CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 10 et seq.

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povo”, de modo que é no imaginário “que as sociedades definem suas identidades e objetivos”. E mais: os “símbolos e mitos podem plasmar visões de mundo e modelar condutas” na medida em que tenham êxito em atingir o imaginário.

O tema desenvolvido nesta dissertação aborda os acordos de gestão, os quais simbolizam a reforma de Estado ocorrida nos meados da década de 90, que introduziu a expectativa de metas e resultados na administração pública brasileira como resposta da classe política ao momento histórico em que a burocracia, enaltecida no período entre 1930 e 1970, começava a compor negativamente o imaginário social. A reforma gerencial, assim conhecida porque promovia a descentralização – busca de autonomia funcional, administrativa e financeira na estrutura orgânica da administração pública – recebeu status constitucional, tendo como marco a Emenda Constitucional nº 19, de 1998.

Podemos afirmar, porém, que enquanto a reforma burocrática do Estado fez da burocracia e do burocrata seus mitos, a reforma gerencial do Estado não fez mito algum, e, após quase duas décadas, simplesmente não compõe o imaginário social. Isto se compreende na medida em que a burocracia, no mais das vezes, não serviu como empecilho aos resquícios de patrimonialismo operante na administração pública. Como explica Faoro18, “dominante o

patrimonialismo”, tomará relevo “uma ordem burocrática com o soberano sobreposto ao cidadão na qualidade de chefe para funcionário”.

Contrariamente, o símbolo a ser sustentado na administração gerencial é o pacto ou acordo de gestão, fundado na definição pública de metas e demonstração de resultados. Essa relação contratual, portanto, opera aniquilando aspectos de nossas raízes ibéricas, ao ditar limites ao agente político eletivo e ao agente público em condição de mando, e, no outro lado, ao assegurar “o direito de resistência, se ultrapassadas as fronteiras do comando”19.

No que respeita à evolução da administração burocrática, a implantação de estruturas centralizadas de administração pública deu-se, tanto no continente europeu como no Brasil, tendo como principal influência o modelo de administração pública, e seu respectivo direito administrativo, francês:

A França apresentou-se como modelo de administração pública, racional, objetiva e tal paradigma espalhou-se por toda a Europa, sobretudo continental. Em verdade, o século XVIII, as novas idéias (sic), a queda do velho regime, foram marcantes para o surgimento de um Estado de Direito, embora ainda embrionário, e o consequente (sic) surgimento do direito administrativo. Essa é também a lição de Thomas WURTENBERGER, ao destacar que as constituições, a democracia, o estado de

18 FAORO, op.cit., p.18. 19 Ibidem, loc. cit.

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direito, a separação de poderes e a salvaguarda de direitos fundamentais seriam as idéias diretrizes que caracterizam a evolução das constituições na França e Alemanha depois do fim do século dezoito. O pensamento jurídico brasileiro em sede de direito administrativo, tomando como ponto de partida a independência do país, caracterizou-se, seguindo o padrão da época, pela forte influencia francesa20.

No século XIX, surgem os ministérios conduzidos por um ministro de Estado21. O

princípio da hierarquia e a dependência funcional impedem a individualização da responsabilização do servidor. O progresso na carreira é determinado pelo tempo e pelas relações de cordialidade. Há uma preocupação com as rotinas, a padronização de condutas administrativas, com a interpretação literal das normas e com a delimitação rigorosa das competências e funções. Não há preocupação com os objetivos e finalidades da administração pública, que se detém, exclusivamente, no bom funcionamento de cada repartição. Medauar lembra a expressão “administração por documento”, cunhada para assinalar que o mais relevante era cumprir as formalidades em detrimento do compromisso com a resposta ou os resultados.

Em todo o século XIX, há a uma ausência de relação comunicativa entre o Estado e a sociedade. A pessoa é submetida à decisão do Estado, que tem por prática não justificar seus atos e decisões, negar explicações, recusar a entrega de documentos, manter sigilo sobre seus atos e processos, sendo este o resultado prático da burocracia weberiana na maioria dos países que a desenvolveram. Até Kelsen22formulou sua crítica sutil à burocracia, ao falar que a ética do serviço público exige dos funcionários a “execução de suas tarefas não apenas de modo correto, mas também de acordo com o espírito do público, como seu amigo”.

É no século XX que o Estado brasileiro passa a funcionar como Estado administrativo, ou seja, realizando uma reforma de Estado que conformou a administração burocrática. Segundo Gouvêa23, entre 1930 e 1964, foram criados agências e órgãos governamentais – a

citar, como exemplos, o Ministério da Fazenda (1934), o Departamento de Administração do Serviço Público – DASP (1937), o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico - BNDES (1952) e a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE (1959) – “que serviram de base privilegiada para a formação de pelo menos duas gerações de burocratas que

20 CAVALCANTI, Francisco de Queiroz Bezerra. Contexto histórico do direito administrativo brasileiro e os atos administrativos. In: Revista Acadêmica: Faculdade de Direito do Recife, Recife, v. 84, n. 1, p. 339-394, 2012. p. 341 et seq.

21 MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. 2ª ed., rev., atual. e ampliada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 124.

22 Ibidem, p. 69.

23 GOUVÊA, Gilda Figueiredo Portugal. Burocracia e elites burocráticas no Brasil. São Paulo: Paulicéia, 1994, p. 86.

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passaram a ter presença obrigatória na formulação e execução da política econômica” de diversos governos e na gestão das finanças públicas.

Houve uma verdadeira formação de altos funcionários da administração pública federal que, devido ao acúmulo de conhecimento técnico e teórico, terminaram por influenciar a tomada de decisões políticas, mais especialmente na área econômica. Tecnoburocracia “que influiu nos dois Governos de Vargas, no governo Café Filho, no Governo Juscelino Kubistchek, no Governo Jânio Quadros, no Governo João Goulart e na primeira fase do governo militar”, embora alguns tenham se mantido após 64.

O aperfeiçoamento da institucionalização do poder no Estado brasileiro torna-o uma organização complexa, que centraliza o poder, multiplica e articula funções, diferencia órgãos e serviços, diversifica as prestações, faculdades e imposições, exerce coercibilidade ao monopolizar a aplicação da força física contra as pessoas, promove a integração, a direção e a proteção da sociedade, estabelece a autonomia para instituições políticas e especializadas e mantém processos burocráticos como modo de controle do poder24.

Como descreve Garcìa-Pelayo25, o aumento e a diversificação de órgãos, poderes e

atores estatais se intensificam e expandem com o Estado de bem-estar social, ou Welfare, que, além das funções clássicas submetidas a um processo de diversificação, assume as funções “da procura existencial, ou seja, a satisfação das necessidades da existência que nem o indivíduo nem os grupos podem assegurar por si mesmos, e a função de estabilidade e desenvolvimento da sociedade industrial e pós-industrial, incapaz de autorregulação”.

As funções do Estado passam a abranger, segundo expressões do autor, a “direção e regulação da economia nacional”, o “apoio logístico do crescimento econômico”, a “intervenção estrutural e conjuntural na produção e no mercado”; a “geração e administração de prestações sociais”; a “promoção da investigação e desenvolvimento”; a “ampla e diversificada difusão da cultura por todos os níveis da sociedade”, “tarefas que envolvem cada uma delas uma ampla gama de complexidade”.

O Estado Social de intensa produção legislativa e com suas promessas de proteção do desenvolvimento humano aumenta na população a sensação de que seus direitos não são observados, isto porque as condições materiais produtivas não acompanham a produção cultural (de que se extraem os direitos). A sociedade culpa o Estado, pois que é percebido como o maior responsável pela melhoria da qualidade de vida das pessoas. A insatisfação mais profusa reivindica que o Estado apresente resultados positivos na prestação dos serviços públicos e em

24 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 6. 25 GARCÍA-PELAYO, op. cit., p. 157.

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suas políticas públicas, sobrelevando no imaginário social a percepção mais vulgar da burocracia, ou seja, sinônimo de ineficiência.

Esse fenômeno social não é local; advém da excessiva expansão do Estado social e burocrático: social porque assume o papel de garantir os direitos sociais e o pleno emprego; burocrático, porque o faz a partir da contratação direta de burocratas26, com o controle de procedimentos e o direito administrativo moderno correspondendo negativamente à velocidade das demandas de necessidade existenciais.

A partir de meados de 1980, fortalece, no mundo ocidental, o ponto de vista de teóricos que defendem a desregulamentação dos mercados, privatização do setor público, redução e reforma administrativa do Estado27.

O desdobramento é de que, para uns, há a defesa do Estado mínimo e o retorno da autorregulamentação do mercado com baixo nível de intervenção social do Estado (neoliberalismo); para outros, a defesa do Estado regulador, que mantém sua tarefa de intervenção social, entretanto, rompendo com o paradigma do público-estatal e moderando o caráter protecionista ao contrapor a eficiência na administração pública, que busca equilibrar a relação políticas públicas e programas governamentais versus despesas e gastos públicos.

Assim é que, onde houve o colapso do Estado de bem-estar social, passou-se à atuação de entidades extraestatais (empresas, sindicatos, organizações públicas não estatais etc.) em parceria com o Estado, fenômeno que nos Estados Unidos ficou denominado como formação do complexo privado, e que, no Brasil, ficou generalizado como parcerias público-privadas.

Trata-se de um processo de gradual desaparecimento de limites precisos entre o Estado e a sociedade, entre o público e o privado, entre os interesses gerais e os interesses particularizados, uma invasão do Estado pelos grupos sociais organizados, com a tendência de unidades estatais construírem o interesse público a partir do acordo com as entidades sociais invés com outras unidades estatais. Na prática estadudinense, é possível, por exemplo, transferir funções públicas a empresas privadas, conhecido como government by contract 28.

Antes mesmo de expandir sua função protecionista – o que se deu nas duas últimas décadas –, o Estado brasileiro se lançou na reforma gerencial da administração pública, marcando-a na Constituição Federal. Isto se deveu à influência de uma vanguarda que uniu

26 PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. A reforma do estado nos anos 90: lógica e mecanismos de controle. Brasília: Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, 1997.

27 GOUVÊA, op. cit., p. 167.

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tecnoburocratas e agentes políticos atentos às experiências externas, capitaneada por Bresser Pereira, que assumiu, ao tempo, o Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado.

A qualidade gerencial implica em o Estado atuar de modo regulador e facilitador ou financiador do desenvolvimento econômico e social. Bresser Pereira29 apresenta as principais características para uma administração pública gerencial:

(i) Orientação da ação do Estado para o cidadão;

(ii) Controle dos resultados através de contratos de gestão, em lugar do controle procedimental que define a administração burocrática;

(iii) Valorização da técnica e política da tecnoburocracia estatal na gestão e formulação de políticas públicas;

(iv) Na administração direta, as unidades competentes pela formulação de políticas públicas, e na administração indireta ou descentralizada, as unidade responsáveis pela execução;

(v) Transferência para o poder público não-estatal dos serviço sociais e científicos; (vi) Para controlar a execução, adoção do controle social direto; contrato de gestão

com indicadores definidos e resultados medidos; competição administrada, e (vii) Terceirização de atividades auxiliares.

Marco constitucional da reforma gerencial do Estado brasileiro, a Emenda Constitucional nº 19, de 1998, introduz, dentre outras disposições: (i) o dever de eficiência nos atos da administração pública e nas prestações de serviço público (princípio da eficiência, previsto no artigo 37, caput); (ii) a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública (artigo 37, parágrafo 3º, inciso III); e (iii) que mediante contrato de gestão com estipulação de metas de desempenho se possa ampliar a autonomia gerencial, orçamentária e financeira para órgãos e entidades da administração pública, direta ou indireta (artigo 37, parágrafo 8º).

Na ordem infraconstitucional, as principais leis introduzidas da ordem jurídica como modo de fomentar a descentralização administrativa são: (i) Lei nº 9.637, de 1998, que dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais, a criação do Programa Nacional de Publicização, a extinção dos órgãos e entidades que menciona e a absorção de suas atividades por organizações sociais; (ii) Lei nº 9.790, de 1999, que dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, institui e disciplina o Termo de Parceria com o Estado; (iii) Lei nº 13.019, de

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2014, estabelece o regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação; (iv) Lei nº 11.079, de 2004, que institui normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da administração pública; e (v) Lei nº 12.550, de 2011, que autoriza o Poder Executivo a criar a empresa pública denominada Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares – EBSERH (observe-se que a Lei nº 5.604, de 1970, autorizou o Poder Executivo a criar a empresa pública Hospital de Clínicas de Porto Alegre, considerada um modelo de sucesso).

Para a gestão de unidades hospitalares, foi ressuscitada a fundação pública de direito privado, prevista pelo Decreto nº 200, de 1967, como sendo a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, criada em virtude de autorização legislativa, para o desenvolvimento de atividades que não exijam execução por órgãos ou entidades de direito público, com autonomia administrativa, patrimônio próprio gerido pelos respectivos órgãos de direção, e funcionamento custeado por recursos da União e de outras fontes.

Embora o acervo de legislação destinada a regular a relação da sociedade civil com o Estado, e a proliferação de tais parcerias na administração pública, no âmbito do Poder Executivo, nos níveis municipal, estadual e federal – confirmando a opção da ordem jurídico-constitucional pela qualidade gerencial da administração pública e a correspondente necessidade do modelo gerencial no dia a dia das administrações –, consta que parte significativa de experiências é objeto de lide judicial devido a questões que envolvem o caráter rígido de adoção do regime jurídico único de pessoal, e do regime de contratação de bens no direito positivo brasileiro e na jurisprudência. Tais iniciativas administrativas, então, se sustentam em um terreno movediço de inseguranças jurídicas.

Ademais, na realidade dos milhares de municípios até duzentos mil habitantes, mesmo após duas décadas em que a captação de recursos para projetos passou a ser estabelecida na relação direta dos governos municipais com o governo federal, é notória a ausência de formação de tecnoburocracia para a elaboração ou condução de políticas públicas; quiçá a busca de cumprimento de metas e resultados, além de a execução dos projetos e programas de governo e as políticas públicas estarem predominantemente na administração direta. Não apenas as dificuldades de atrair quadros profissionais mais qualificados justificam esta realidade, não apenas a ausência de sociedade civil organizada para além de sindicatos e associações de bairro, como, fundamentalmente, a comodidade de administrar sem contratualidades e, pois, sem

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maiores limitações ao exercício do poder.

A superação do Estado social e burocrático, entretanto, mantem-se na pauta de disputa de concepções de Estado travada pelos partidos políticos e na pauta dos diálogos de governança. O Tribunal de Contas dos Municípios do Estado da Bahia, por exemplo, lançou em 2016 o Projeto Índice de Efetividade da Gestão Municipal – IEGM, pelo qual os gestores municipais devem preencher um relatório que servirá para análises comparativas destinadas a auxiliar no processo de planejamento, definição de prioridades e avaliação da qualidade dos serviços prestados pelas gestões municipais. No Senado, foi criada e funciona até dezembro de 2016, a Comissão Especial da Desburocratização, composta de vinte juristas, com o objetivo de ajudar a desburocratizar a administração pública, melhorar a relação com as empresas, o trato com os cidadãos e promover a revisão do processo administrativo e judicial de execução fiscal.

Finalmente, pode-se perceber que esta introdução – menos breve, como normalmente orienta a técnica de redação em pesquisa – demonstra minhas primeiras investigações de cunho não jurídico, buscando explicação para o fato de a demonstração de desempenho não ter alçado status de um conteúdo de direito exigível pela sociedade, o que seria, certamente, a superação da predominância da qualidade burocrática sobre a finalística na Administração Pública.Várias indagações, então, passaram a afirmar-me a relevância e atualidade do tema:

(a) Melhor realizaria a democracia substantiva, a transparência, a moralidade e a eficiência da Administração Pública se os agentes políticos, como secretários municipais e estaduais e Ministros de Estado, e todos aqueles que ocupam cargos de provimento comissionado, ou funções de confiança em situação de chefia ou direção, firmassem com o seu superior hierárquico o compromisso público de alcançar algumas metas, ou seja, a demonstração do desempenho ao longo do exercício de suas funções? Isto permitiria que uma vez exonerados dos cargos pudessem prestar contas de sua gestão à sociedade?

(b) É aceitável que a livre nomeação de agente público se dê como um exercício de discricionariedade absoluta, uma decisão exclusivamente política inalcançada pelo controle judicial, baseada na confiança exclusivamente subjetiva da relação nomeante/nomeado? Ou seria juridicamente razoável exigir-se o aspecto da confiança objetiva, incluindo-se a sociedade na configuração da confiança (nomeante-nomeado-sociedade), com a adoção do instrumento do pacto ou acordo de desempenho da gestão?

(c) Teria a sociedade legitimidade para pleitear a realização dos pactos de gestão de desempenho, fundada no direito fundamental à boa administração pública?

Tais indagações conduzem a construção da seguinte afirmativa:

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desempenho na Administração Pública direta (independentemente da adoção do modelo gerencial de administração), como interpretação que oferta máxima efetividade aos princípios constitucionais da Administração Pública e concretiza o direito fundamental a boa Administração Pública.

Sob o ponto de vista metodológico, interessa-nos, aqui, o pensamento de Karl Popper, resumido na tese de doutorado do administrativista brasileiro Celso Luiz Braga de Castro30, sobre que “o falseamento consiste em admitir-se como científica uma afirmativa não que possa ser confirmada, mas que possa ser falseável”. Celso Castro lembra que para Popper pode ocorrer de o teórico reconstruir a hipótese de pesquisa ou modificar as suas condições de enunciação, com vistas a salvar o enunciado para fugir do teste de sua falsificabilidade.

Pode, então, ocorrer o que Popper designa como modificação ad hoc: aquela elaborada exclusivamente com o propósito de salvar a teoria, constituindo-se como um mero estratagema, pois, a teoria modificada não pode ser comprovada sem que o seja também a original. Isto não quer dizer que o teórico não possa alterar sua hipótese no percurso de seu trabalho, pois uma alteração não será ad hoc se admitir contrastabilidade independente, ao fazer a prova de falseamento em caráter autônomo em relação à proposta original.

Castro, em referência ao pensamento de Popper, destaca que a verificabilidade não é critério de cientificidade pelo simples motivo de que nenhuma teoria pode se dar por verificada ou confirmada pela ocorrência de um ou de múltiplos eventos singulares de modo que nada pode confirmar que uma teoria é correta, pois se percebe facilmente que postulados assentes tornam-se mutáveis ao longo do tempo. A conclusão é que uma teoria é posta a prova e quando resista aos fatos que lhe são submetidos vai sendo gradualmente confirmada, isto é, tomada mais fortemente como aceitável. É o que denomina de teoria corroborada, aquela que angaria consenso na comunidade científica até que outra não provoque o teste de sua falsificabilidade obtendo resultados positivos. Assim, o estado de teoria aceitável é temporário, mas jamais definitivo, conclui Castro.

Também, este estudo se desenvolve a partir do paradigma da hipermodernidade e do paradigma do neoconstitucionalismo. Segundo Kuhn31 (2011), a evolução científica se dá tanto de forma acumulativa, nos períodos de ciência normal, quanto aos saltos, quando ocorrem as revoluções científicas. A ciência normal se dá nos períodos de acumulação gradativa de

30 CASTRO, Celso Luiz Braga de. Obrigação tributária como obrigação de fazer: conversibilidade parcial da imposição pecuniária em deveres administrativos: uma revisão de paradigmas. 2006. 299 f. Tese (Doutorado em Direito Público), Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco, Pernambuco. p. 30 et seq.

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conhecimento pela comunidade científica, que pode sofrer interrupções ou ser intercalada por períodos que designa ciência extraordinária, quando os paradigmas científicos são questionados e revistos através das revoluções científicas.

Em conformidade com o pensamento de Karl Popper, o físico ilustra, com o que denomina de momentos decisivos essenciais do desenvolvimento científico associado aos nomes de Copérnico, Newton, Lavoisier e Einstein, os principais episódios que constituem todas as revoluções científicas, pois que, segundo ele, cada um deles forçou a comunidade a rejeitar a teoria científica anteriormente aceita em favor de uma outra incompatível com aquela. A adoção de novos paradigmas, em Kuhn, acontece na medida em que a comunidade científica adquire, por meio do novo consenso, um critério para a escolha de problemas que, enquanto o paradigma for aceito, podem ser considerados como dotados de uma solução possível 32.

Finalmente, utilizando-me da pesquisa por revisão bibliográfica, trabalho: a) no primeiro capítulo, a sociedade contemporânea, com o objetivo de situar a realidade social brasileira e do Estado Democrático de Direito brasileiro a partir de um paradigma que tem conduzido uma grande parcela de produções acadêmicas, que é a pós-modernidade ou a hipermodernidade (não ingressamos na distinção de ambos os termos, porque não altera os resultados do objeto de estudo); b) no segundo capítulo, há breve compreensão histórica e jurídica do Estado moderno ao contemporâneo; (c) no terceiro capítulo, noções sobre administração pública e o surgimento do direito administrativo; (d) no quarto capítulo, ingressamos no direito administrativo contemporâneo e na percepção contemporânea da Constituição, realçando alguns postulados e princípios; (e) no quinto capítulo, trato da interpretação dos enunciados normativo-constitucionais em vigor desde a introdução da Emenda Constitucional nº 19, de 1998, que introduziu o modelo gerencial de administração pública, que apresenta como principal instrumento do contrato de gestão; e, (c) o sexto capítulo dedico à conclusão.

É certo que o tema em estudo pertence a uma disciplina central do direito, e, seria mais provável, tender à conservação33. O presente estudo, porém, fustiga a comodidade das posições de um grupo que não quer perder o espaço herdado nas lutas anteriores - do patrimonialismo à burocracia – e que, para tanto, limita as possibilidades nas tomadas de novas posições, como, por exemplo, a ascensão de interpretações constitucionais que concretizem novos direitos, que

32 Ibidem. p. 25 et seq.

33 GORDILHO, Heron José de Santana. Por uma dogmática pós-moderna. Revista do Programa de Pós Graduação em Direito da UFBA. Vol. 16. p. 47-61. 2008. p. 57.

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ameacem o lugar conquistado34.

Neste sentido, acredito que este trabalho contribui para o debate de novos posicionamentos na área do direito constitucional administrativo.

2. O MODELO GERENCIAL DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.

O texto tem seu contexto; neste capítulo, pretendemos caracterizar a sociedade contemporânea (contexto social) a que se reporta o enunciado normativo do dispositivo do artigo 37, parágrafo 8º, da Constituição da República Federativa do Brasil, que reza:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

[...]

A autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e entidades da administração direta e indireta poderá ser ampliada mediante contrato, a ser firmado entre seus administradores e o poder público, que tenha por objeto a fixação de metas de desempenho para o órgão ou entidade, cabendo à lei dispor sobre:

I - o prazo de duração do contrato;

II - os controles e critérios de avaliação de desempenho, direitos, obrigações e responsabilidade dos dirigentes;

III - a remuneração do pessoal. [...]

O referido enunciado normativo foi introduzido na ordem constitucional por meio da Emenda Constitucional nº 19, de 1998 (EC19), alcunhada como “Emenda da Administração Pública” (Brasil, 1998). A proposta foi um dos resultados obtidos de um amplo debate sobre a reforma da administração pública, iniciado em 1995 pelo Executivo Federal, no governo do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), e que teve como articulador o Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE), personificado em seu ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira, o qual promoveu ampla literatura a respeito. O objetivo político era recuperar a “capacidade de formulação e avaliação de políticas nos núcleos centrais do aparelho de Estado” e resgatar a “agilidade de gestão, da eficiência e da qualidade da prestação de serviços pela administração descentralizada”35.

Com a EC 19, ganharam reforço, ou status constitucional, a eficiência, a autonomia

34 GORDILHO, op. cit., loc. cit.

35 Brasil. Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado. Os avanços da reforma na administração pública: 1995-1998. Brasília: MARE, 1998. p. 12.

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gerencial, a descentralização administrativa, a fixação de metas de desempenho, a responsabilidade dos dirigentes, o contrato entre o administrador e o Poder Público, de modo que o Estado brasileiro – com seu extenso território marcado por profunda desigualdade no desenvolvimento econômico e social entre suas cinco regiões geográficas – chegou ao final do século XX “iluminado” pela tendência de reforma do Estado em voga nas sociedades mais avançadas no capitalismo tardio, de constituir uma administração pública flexível, eficiente, descentralizada, menos burocrática e capaz de avaliar as políticas (governança), destinada a que o Estado satisfaça a cidadania36.

Não é por mera curiosidade sociológica que neste estudo destina-se um capítulo para conhecer as principais características das sociedades globalmente encadeadas pelo capitalismo tardio. O conhecimento mínimo do contexto social de um enunciado normativo importa porque são os valores éticos e superiores de uma sociedade que são os elevados à categoria de direito, e porque, afirma Bonavides, nas Constituições abertas, regidas pelo princípio da legitimidade, os tribunais constitucionais se inclinam mais aos valores da sociedade e às garantias de proteção dos direitos fundamentais37.

3. DA SOCIEDADE MODERNA À PÓS-MODERNA

Há amplo consenso científico de que a Idade moderna se delimita, mais ou menos, no período entre os séculos XV a XVIII, culminando na Revolução Francesa, em 1789, sendo a partir daí que se dá o declínio com a passagem para a Idade contemporânea. Divergindo desse ponto de vista, Fernand Braudel, Pierre Anderson e outros, trabalham com a ideia de história de longa duração, que delimita o medievalismo no período entre os séculos III e XVIII.

A par disto, fato notório é que para as sociedades estruturadas sob os valores liberais popularizados pela doutrina das luzes, a expressão modernidade passou a ser largamente utilizada no sentido de modernização da modernidade.

Assim, para tratar da contemporaneidade, convém conhecer minimamente as características gerais das sociedades que desenvolveram a educação de massa, a urbanização, a industrialização, a burocratização, os meios rápidos de comunicação e de transporte. Segundo Robert Ward e Samuel Huntington, as sociedades ingressam na modernidade ao apresentarem

36 BRASIL, op.cit.

37 BONAVIDES, Paulo. Jurisdição constitucional e legitimidade (algumas observações sobre o Brasil). In: Estudos Avançados. Reforma da Justiça. Vol. 18, nº 51, May. /Aug. São Paulo: USP, 2004, p. 127-150. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000200007. Acesso em 10/06/2016. p.140.

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o que denominam como “elementos de modernização econômica e política”:

[...] aplicação intensa da tecnologia científica e das fontes de energia inanimadas, mão-de-obra altamente especializada, interdependência de mercados impessoais, financiamento em larga escala, concentração da tomada de decisões no campo da economia e a elevação dos níveis de bem-estar social.

[...] três processos definem a modernização política: a substituição de uma grande variedade de autoridades tradicionais, religiosas, familiares, étnicas e políticas por uma única autoridade secular, nacional e política; o surgimento de novas funções políticas – legal, militar, administrativa e científica – que devem ser conduzidas por novas hierarquias administrativas, escolhidas com base nas realizações e não nas atribuições; uma participação crescente de todos os grupos sociais na política e grupos interessados em organizar essa participação.38

Pode-se, ainda, delinear o arquétipo da pessoa “que se torna moderna”. Na década de 70 do século XX, o psicólogo social Alex Inkeles e o sociólogo David Horton realizaram uma pesquisa tópica em seis dos países da comunidade europeia com o objetivo de apresentar um perfil psicossocial da “pessoa moderna” e, com isso, romper com a tradição sociológica de definir o “homem moderno” por meio de dicotomias como “burguês ou operário” e “popular ou urbano”. As conclusões apontam que a pessoa “que se torna moderna” é uma cidadã informada e participante, com acentuado sentido de eficácia pessoal, altamente independente e autônoma em seu relacionamento social, com a mente relativamente aberta e flexibilidade cognitiva, permitindo-se a novas experiências e ideias.

Inkeles e Smith39 constataram a eficiência como um traço do caráter das pessoas socialmente inseridas no modo de vida moderno, o que nos faz inferir que a eficiência é um valor relevante à tradição da modernidade. Segundo os autores concluem, o valor de eficiência da pessoa moderna se reflete na sua “crença de que, sozinho ou em conjunto com outros, pode tomar medidas que possam afetar o curso de sua vida e de sua comunidade”, em “seus esforços ativos para melhorar sua própria situação e a de sua família” e “na sua rejeição da passividade, resignação e fatalismo para com o curso dos acontecimentos da vida”. Além disso, há uma “ênfase relativa sobre meios novos e mais eficazes de fazer as coisas como ponto central do processo de modernização, onde as mudanças no relacionamento com as outras pessoas surgem, sobretudo, como efeito colateral”.

O sentido de emancipação pessoal é percebido, no espaço público, na tendência das pessoas de preferir a orientação de autoridades públicas ou líderes sindicais em detrimento da

38 WARD; HUNTINGTON apud INKELES, Alex; SMITH, David Horton. Tornando-se Moderno: as transformações individuais ocorridas em seis países em desenvolvimento. Trad. de Regina Heloísa Ribeiro Perez e Vera Maria Moyna na versão original de 1974. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981.p.16. 39 Ibidem, p. 288 et seq.

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orientação de padres ou pessoas mais velhas e, na vida privada, na escolha espontânea do trabalho e da noiva, por exemplo, afastando o poder dos familiares de decidirem sobre esses aspectos da vida pessoal.

Finalmente, a flexibilidade e a abertura da pessoa moderna às novas experiências se reflete no interesse pelas inovações técnicas, na disposição em conhecer estranhos e em permitir que as mulheres aproveitem oportunidades que se apresentam fora dos limites do lar40, sendo, também, da tradição da modernidade o interesse por assuntos públicos, sejam eles nacionais, internacionais ou locais, com a participação em organizações e por meio do processo político, especialmente pelo voto.

Outro elemento a considerar, determinante para a percepção da contemporaneidade, é o fracasso da ideologia moderna de otimismo no progresso da humanidade como uma marcha em direção à liberdade41, a dar-se com a livre iniciativa e a mínima intervenção do Estado na vida privada e social. A introdução da máquina, a evolução dos meios de comunicação, o aperfeiçoamento da divisão do trabalho, as descobertas científicas, a absoluta abstenção do Estado na vida privada e social também trouxeram a frustração do desemprego em massa, do aprofundamento da concentração de renda e de propriedade por uma pequena parcela da população, da compartimentalização do homem total idealizado em Da Vinci, da primeira e segunda guerras mundiais e, assim, no século XIX e XX, o “balanço da dialética do progresso é amplamente negativo” diante “um sofrimento real que não diminui na proporção do aumento dos meios desenvolvidos para suprimi-lo”. O progresso torna-se uma promessa de progresso, uma potencialidade42 e tal fracasso é resultado da perda de utopias em uma sociedade que se fixa no passado invés de substituir as utopias fracassadas por novas utopias em busca de impulsos em favor de um futuro melhor43.

Veremos, agora, que as sociedades contemporâneas mantêm aspectos que foram – para usar uma palavra cunhada pelo sociólogo francês Michael Maffesoli44 – sedimentados com o tempo –, especialmente, na modernidade. Maffesoli, entretanto, designa a atualidade como um tempo pós-moderno, pois enxerga o retorno a valores pré-modernos que desafiam os intelectuais a “pensar a espiral” enquanto que, para o filósofo francês Gilles Lipovetsky45, o

40 INKELES; SMITH, op. cit.

41 LÖWY, Michael; VARIKAS, Eleni. A crítica do progresso em Adorno. Tradução de Régis Castro Andrade. In: Lua Nova: Revista de Cultura e Política. Novas democracias e velho progresso, nº 27, dez. São Paulo: 1992. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451992000300010>. 42 Ibidem.

43 BAUMAN, Zygmunt. Tempos Líquidos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2007. 44 MAFESSOLI, Michel. O tempo retorna: formas elementares da pós-modernidade. Trad. de Teresa Dias Carneiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.

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que se vê é a radicalização dos valores cunhados na modernidade, deflagrando-se um tempo hipermoderno regido pela ideologia do hiperconsumismo a serviço da autorrealização pessoal, inclusive, no plano afetivo.

É do pensamento de ambos que identificaremos os aspectos que caracterizam as sociedades contemporâneas tendo em mente que sendo o direito tanto como a administração pública fatos sociais46, a compreensão da realidade social joga para que o pensamento a ser desenvolvido, como diz Bobbio47, forneça uma imagem o mais próximo da realidade presente, em uma tentativa de evitar que decorra apenas de uma aproximação ou distanciamento com relação a alguns outros autores.

Advertimos que a abordagem da contemporaneidade é generalizante, enquanto nosso objeto de estudo parte da realidade brasileira. Por isso, importa compreender que as qualidades que definem uma determinada sociedade em uma época específica pertencem a um fenômeno hegemônico irradiado pela parcela da população mundial e a partir dos territórios que experimentam o momento mais atualizado de um determinado modo de produção. Na contemporaneidade, bem descreve Mandel48, vivemos sob o capitalismo tardio, marcado pela

desindustrialização decorrente da automação, pelo endividamento externo e interno dos países, pela insustentabilidade da intensificação do consumo em decorrência da escassez dos recursos naturais ou mesmo a insustentabilidade da reprodução ampliada do trabalho assalariado e da mercadorização da produção, a sugerir o esgotamento do próprio capitalismo.

Se de um lado há sociedades que hegemonizam o capitalismo tardio, de outro, tem-se as sociedades que, embora submetidas à superestrutura econômica global determinada pelo capitalismo tardio, convivem, ainda, com realidades sociais próprias aos períodos de capitalismo extensivo (desafio de avançar o trabalho assalariado, o emprego formal, a fabricação de mercadorias, por exemplo) e do capitalismo intensivo (busca de intensificação da produtividade e aumento do consumo), a exemplo da sociedade brasileira.

Assim, alguns aspectos apontados como característicos dos tempos atuais, p. ex., a tendência à androgenia, não serão observados em um município brasileiro de baixíssima renda per capita e onde 95% da população obtêm a renda no trabalho rural braçal. Isto porque a família, a religião, o sindicato dos trabalhadores rurais e a polícia em um lugar onde as forças produtivas modernizantes não atuaram estarão exercendo seus controles sociais de manutenção

46 DURKHEIM, David Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Editora Abril, 1978.

47 BOBBIO, Norberto. O Conceito de Sociedade Civil, 1ª edição, 3ª reimpressão. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1982.

48 MANDEL, Ernest. O Capitalismo tardio. Trad. Carlos Eduardo Silveira Matos, Regis de Castro Andrade e Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Nova Cultural, 1985.

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da tradição de absoluta diferenciação entre o masculino e feminino na sociedade e pode ser que o acesso às tecnologias da informação, como a televisão, o computador e o acesso à Internet – difusores que são da estética contemporânea – influenciem e façam com que algum jovem adote o estereótipo andrógeno, mas veremos, neste caso, uma pessoa sem pertencimento comunitário, sem sua tribo, a ser predominantemente percebida pela comunidade local como um equívoco da natureza.

A noção de eficiência também não se fará presente na mentalidade da comunidade de um território dominado pela economia rural arcaica, pois ali encontraremos o fatalismo em lugar da percepção do futuro como resultado das programações que se faz no presente. Na administração pública, teremos o predomínio do patrimonialismo a ignorar diariamente o direito administrativo posto no Estado de direito e democrático do século XXI. Entretanto, em São Paulo, megalópole brasileira, facilmente será obtida a confirmação do paradigma da pós-modernidade, ou da hipermodernidade. Assim, em paráfrase a Inkeles e Smith49: da mesma

maneira como aconteceu com o feudalismo, também a pós ou hipermodernidade terá formas diferentes de acordo com as condições locais, a história de uma determinada cultura e o período em que foi introduzida.

A arte e a arquitetura evidenciaram as primeiras impressões da saturação da modernidade por volta da segunda metade do século XX. Mário Pedrosa50, crítico de arte e literatura, aponta o Brasil como um precursor da arte antiarte, que trazia com a Pop Art um novo ciclo, que não é mais puramente artístico, mas cultural. Mafessoli51 cita que os arquitetos substituíram o minimalismo estético, que traduzia o utilitarismo e a maquinização das sociedades modernas, pela ambiguidade e complexidade, surgindo o estilo kitsch para afirmar a busca da harmonia conflituosa em que o todo se perfaz de referências em estilos diversos.

Essa harmonia conflituosa, posta na arte e na arquitetura, equivale à afirmação do pluralismo que passou a caracterizar as relações sociais da contemporaneidade relativizando a tendência a tendência totalizante dos valores universais cunhados pela modernidade.

A busca da harmonia conflituosa explica, por exemplo, que, no Brasil, o Rock in Rio, desde a sua primeira edição, em 1985, tenha na sua programação, além das bandas de rock and

roll, os cantores da música popular brasileira, posteriormente incluindo-se a música

orquestrada, percussiva e o estilo axé music, e contemplando atrações oriundas das regiões

49 INKELES; SMITH, op. cit.

50 PEDROSA, Mário. Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo: Perspectiva, 1981.

51 MAFESSOLI, Michel. O tempo retorna: formas elementares da pós-modernidade, tradução de Teresa Dias Carneiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.

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sul/sudeste e norte/nordeste do país, que confirma outra característica contemporânea de integração das diferenças regionais, identificada por Mafessoli pelo termo localismo. A tensão presente diante a busca pela intensificação da flexibilidade pode ser ilustrada na hostilidade do público, que vaiou o cantor de MPB Ney Matogrosso, na edição de 1985, e o multi-instrumentista Carlinhos Brown, do gênero axé music, em 2001, e até mesmo Lobão, por tentar se apresentar com seu rock nacional no “dia do metal”, na edição do Rock in Rio de 1991.

O hedonismo como movimento estético-visual que encontra expressão na arquitetura de decoração de ambientes interiores é outra qualidade que emerge com a saturação da modernidade: não basta ser funcional, é preciso dar prazer. A estética da busca do prazer está presente, p. ex., no anseio pela substituição da eficiência formal, baseada nos procedimentos, pela eficiência substantiva percebida como aquela em que fica demonstrado que os meios utilizados serviram para um resultado adequado (portanto, ao prazer) das partes envolvidas. É o aspecto de hedonismo que também está imbuído na percepção de que cada pessoa tem sua parte de responsabilidade no mundo:

Cada qual faz sua parte está, portanto, para a derrocada do heroísmo do indivíduo moderno, heroísmo que se fazia na corrida pelas utopias individuais e coletivas, pela qual o indivíduo se tomava como capaz de mudar o mundo. O indivíduo moderno tem um Deus dentro de si, é um entusiasmado; o indivíduo pós-moderno, como fora o pré-moderno, está com Deus, é, apenas, sua imagem e semelhança52.

A contemporaneidade, segundo este pensador, é identificada por qualidades que, se não rompem, superam os valores da modernidade: (i) relações interpessoais rompem com a separação razão e emoção para formar vínculos a partir de emoções compartilhadas; (ii) a produção de conhecimento reabilita as tradições culturais, as experiências coletivas e as produções coletivas não verticalizadas; (iii) desvaloriza-se a transmissão vertical em favor da horizontalidade, enfraquecendo a perspectiva providencial (Estado providência, p. ex.); (iv) tendência a superação da solidariedade mecânica (do contrato-social e do Estado providência) em favor da solidariedade orgânica, com sentimento de pertencimento, valorização do lugar de convívio (presenteísmo) e depreciação do poder estatal sobre a existência das pessoas; (v) desvalorização do contrato social em favor da formação do pacto comunitário, de aspecto gregário, interrelacional e emocional; (vii) projeção da sociedade como espaço vital e autonomizado na relação com o Estado, uma autonomia específica que se realizaria por meio de grupos imediatos e zonas de autonomia temporária; (viii) perda de referência no fluxo

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