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6. FUNDAMENTOS DO DIREITO ADMINISTRATIVO CONTEMPORÂNEO E

6.2 OS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: LEGALIDADE

6.2.1 DA IMPESSOALIDADE

A data de aniversário da impessoalidade, como direito de toda pessoa perante o Estado, remete ao século XVIII, precisamente em 26 de agosto de 1789, quando foi publicada a Declaração de Direitos dos Homens e dos Cidadãos, de 1789, em cujo artigo 15 está enunciado: A sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração234.

Um direito fundamental se estabelece no ordenamento jurídico ou como regra ou como princípio jurídico. O princípio é uma norma que ordena que algo seja realizado em uma medida tão ampla quanto possível relativamente a possibilidades fáticas ou jurídicas, sendo, pois, mandamentos de otimização, a serem preenchidos em graus distintos a partir da metodologia da ponderação, a qual se aplica nas oportunidades de colisão entre direitos fundamentais que se expressam como princípios normativos235.

No século XX, a impessoalidade passa a integrar o ordenamento jurídico brasileiro como um direito, a não ser violado pelos atos da administração pública. Na Constituição brasileira, fica expressamente enunciado como princípio da administração pública, no artigo 37, caput, da Constituição de 1988.

Em sua dissertação, dedicada a este princípio constitucional-administrativo, Zago236 (2001) analisa o conteúdo jurídico da impessoalidade, a partir de diferentes pontos de vista. Sob os aspectos da ética ou moral, e da política, a impessoalidade encontra guarida nas disposições preambulares e nos objetivos fundamentais, enunciados no artigo 3°, da Constituição de 1988.

O preâmbulo declara a motivação da Assembleia Nacional Constituinte ao promulgar a Constituição para que o Estado brasileiro assegure o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias.

O enunciado do artigo 3º estabelece como objetivos fundamentais da república brasileira: (i) construir uma sociedade livre, justa e solidária; (ii) garantir o desenvolvimento nacional; (iii) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e

234 Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, documento em versão eletrônica, disponível em <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0- cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos- do-homem-e-do-cidadao-1789.html>. Acesso em 28 de Mai 2016.

235 ALEXY, Robert. Colisão de direitos fundamentais e realização de direitos fundamentais no Estado democrático de direito. In: Revista de direito administrativo, v. 1, n° 217. Rio de Janeiro: Renovar/FGV, 1999. p. 74 et seq.

regionais e (iv) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

A exigência ética é de que os atos da administração sejam objetivamente motivados, despersonalizando não apenas a titularidade do poder como também do exercício do poder. Zago ilustra que o bom ditador, por exemplo, pode exercer seu poder motivado pela persecução do bem-comum; e o desvio de finalidade pública pode ocorrer em governos cuja titularidade é impessoal237.

A impessoalidade quer que qualquer ato da administração pública, mesmo aqueles atos discricionários cuja motivação resida no senso de oportunidade e de conveniência, devam atender à objetividade e à finalidade por meio de motivações devidamente justificadas e fundamentadas em sua juridicidade. Este dever de motivação está expressamente estipulado no enunciado do artigo 93, inciso IX, da Constituição brasileira de 1988. A falta ou insuficiência de motivação pode inquinar de nulidade o ato configurado inconstitucional.

É o princípio da impessoalidade que prevê a busca pela neutralização, ao máximo possível, dos interesses político-partidários que integram um governo na administração pública. Administração moderna é a história de sua institucionalização238.

Primeiro, a política se sobrepôs à administração pública, o que confirma as práticas do clientelismo e do filhotismo; em seguida, com a formação da burocracia busca-se a autonomização da administração pública em face do governo, com o controle de procedimentos e a formação de quadro permanente de servidores públicos incorporados por meio do mérito.

Atualmente, no campo da administração, há tendência à descentralização da execução de programas e serviços públicos, enquanto no campo do governo há a maior intensidade e diversificação da incidência dos interesses corporativos sobre os rumos das decisões de governo. A busca da neutralidade tem-se sustentado na valorização da Constituição do país, como a instituição mais relevante do Estado de direito, e que condiciona todos os atos e as decisões da administração pública e de seu governo.

Os postulados, princípios e regras constitucionais vinculam os atos da Administração Pública de modo que não configuram simples retórica constitucional, sendo a própria essência da realidade política239. Seguindo este ponto de vista, Celso Castro240, com inspiração na Teoria Egológica do Direito, desenvolvida pelo jusfilósofo Carlos Cóssio, conclui que a Administração

237 Ibidem, p. 134. 238 Ibidem.

239 ZAGO, op. cit., p. 144. A autora faz referencia ao pensamento de Garcia de Enterría.

240 Entrevista com Celso Luiz Braga de Castro, doutor em Direito Público, mestre em Direito Econômico, professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, diretor da Faculdade (2016).

Pública tem como único direito o de inordinação, ou seja, o de cumprir com seus próprios deveres.

Tal entendimento termina por reduzir, drasticamente, o hiato entre governo e administração, pois se o primeiro tem “o poder de” e o segundo “o dever de”, a sujeição de ambos à Constituição faz com que o poder seja, necessariamente, “o poder-dever de”.

A busca pela neutralidade, portanto, desemboca na irrefutável sujeição ao controle judicial da materialidade dos atos da administração pública e das escolhas do governo. Enfim, o princípio da impessoalidade se constitui em verdadeira limitação ao exercício do poder discricionário, proibindo o desvio de finalidade ou excesso de poder.

No que respeita à aplicabilidade do princípio da impessoalidade, Celso Castro leciona que há duas condições, sem as quais não se consubstancia a impessoalidade nas situações em que se estipulam critérios para as escolhas da Administração Pública: critério prévio e critério sustentável. Ou seja, a impessoalidade sugere que as escolhas sejam feitas com base em critérios, os quais devem ser determinados previamente e com sustentabilidade (ou seja, razoabilidade).

Finalmente, concluo que o princípio da impessoalidade dirige-se para a responsabilização do agente público no cumprimento de suas funções, na medida em que o exercício de suas atividades deve concretizar planos, ações, projetos, programações e procedimentos, enfim, metas cujo objetivo é a persecução das finalidades do Estado. Essa responsabilização vincula a todos os agentes públicos.