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O direito administrativo nasce com o Estado de direito, como afirmação da subordinação do Estado ao direito, para regular a ação dos governantes nas relações com os cidadãos, antes, súditos, e, na modernidade, administrados, estabelecendo “justamente a disciplina do Poder, sua contenção e a inauguração dos direitos das pessoas na relação com o Estado, em sua função administrativa”. Antes dessa relação, descreve Bandeira de Mello108:

[...] nas relações entre o Poder, encarnado na pessoa do soberano, e os membros da sociedade, então súditos – e não cidadãos –, vigoravam ideias que bem se sintetizam em certas máximas clássicas, de todos conhecidas, quais as de que quod principi placuit leges habet vigorem: “o que agrada ao príncipe tem vigor de lei”. Ou, ainda: “o próprio da soberania é impor-se a todos sem compensação”; ou, mesmo: “o rei não pode errar”. O advento do Estado de Direito promoveu profunda subversão nestas idéias (sic) políticas, que eram juridicamente aceitas.

No século XVIII, registra Giannini109, em função da teoria da divisão dos poderes, de Maquiavel, a produção teórica da época se ocupou de algumas das atividades administrativas públicas do Estado, não havendo produção acerca da administração como organização. A falta de registro decorreu de que, no Estado absolutista, a administração pública não aparecia, pois o que existia era o aparato da coroa. Mas, no Estado britânico, a administração pública se apresentava como o conjunto “coroa-governo”, do Poder Executivo, o que deu origem à nova teoria que considerava a administração pública inserida no Poder.

Até a metade do século XIX, período pelo qual, no velho ocidente, a sociedade consolida o princípio da divisão dos três Poderes, a Administração Pública é percebida como Poder

108 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 27ª ed., rev. e atual., São Paulo: Malheiros Editores, 2010. p. 47.

109 GIANNINI, Massimo Severo. Diritto Amministrativo. Vol. 1, Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 1970. p. 33 et seq.

Executivo, com o direito administrativo surgindo como seu regime jurídico especial110 Isto se deve à Teoria da Tripartição dos Poderes ter-se edificado “segundo um critério racional- orgânico”, que estabelecia rígida separação entre as funções estatais correspondentes aos respectivos Poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário 111. A administração pública como administração estatal define-se, nesse período, como o agir do governante no limite do que era permitido, ou não era proibido pela lei, tendo como papel assegurar a ordem pública.

O reconhecimento do Estado como pessoa jurídica, deflagrado na sociedade alemã inspirada no pandectismo jusprivatista, é, para García de Enterría, o marco histórico de surgimento do direito administrativo como uma área autônoma de conhecimento e para a distinção da administração pública como função do Estado, como bem reafirma reportando-se a Albrecht, Gerber, Laband e Jellinek:

O Estado seria, antes de tudo, uma pessoa jurídica, e esta constatação básica permite iniciar, justificar e sustentar a magna construção do seu comportamento perante o Direito. A personificação jurídica do Estado tornar-se (sic) assim – diz Geber – a pedra fundamental de toda a construção jurídica do Direito Público. [...]

[...] o fato de se considerar que a personalidade jurídica corresponde ao Estado em sua integralidade e não a cada um dos seus três Poderes faz com que estes percam sua substantividade própria e se tornem simples expressões orgânicas daquele. A Administração Pública, até aqui identificada como um dos poderes orgânicos e individualizados do Estado, o Poder Executivo, passa a ser considerada então como uma função do Estado-pessoa.112

A partir do Estado como pessoa jurídica é que surge o problema teórico de saber o que é administração dentre as funções gerais do Estado; problema teórico porque edificaria o objeto formal do Direito Administrativo como uma disciplina de conhecimento. A definição mais simples e tradicional do Direito Administrativo considera-o como Direito da Administração Pública, ou seja, o Direito Administrativo como Direito dessa realidade do mundo político que é a Administração Pública, sendo esta referência mais tradicional uma forma de a ciência do direito logo distinguir-se com relação à ciência da administração, a qual não confere em seus estudos distinção entre o público e o privado, mantendo a administração sob um prisma unitário113.

110 GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo e FERNANDÉZ, Thomas-Ramón. Curso de Direito Administrativo. 1ª ed. trad. da 16ª ed. espanhola, tradução de José Alberto Fróes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 46. 111 SANTOS, Aricê Moacyr Amaral. Função administrativa. In: BDA – Boletim de Direito Administrativo: doutrina, pareceres e atualidades. São Paulo: Editora NDJ, Abril/92, pp. 227-246. p. 227.

112 GARCIA DE ENTERRÍA; FERNANDÉZ, op. cit. p. 46.

A elaboração do conceito de administração pública a partir de uma referência negativa – ou seja, do que não é administração pública –, como bem diz Enterría, denuncia o fracasso das tentativas de conceituá-la 114. Cretella Junior115 chega a mencionar que os negativistas desconsideram que para a teoria da definição definir é dizer o que a coisa é.

Merkl116, que dedica “A Hans Kelsen, amistosamente” sua obra Teoria Geral do Direito Administrativo, desenvolve seu conceito negativo. Primeiramente, destaca o sentido amplo da conceituação, pelo qual a administração é toda actividad humana planificada para alcanzar

determinados fines humanos, sendo neste sentido amplo que se puede decir de um individuo que ‘administra’ bien o mal su ‘funcion’ o su ‘oficio’. Em sentido amplíssimo, trata-se de

administração econômica ou do patrimônio: administración abarca toda actividad económica

e incluso rebasa la esfera de la economía. No sentido estrito, se sobre entiende generalmente la actividad total del Estado para alcanzar sus fines”. Finalmente, o jurista elabora seu

conceito, ainda mais estrito e de caráter negativo:

Así, mediante la separación de funciones aisladas en el campo total de la actividad estatal, mediante la reducción del concepto de administración a una parte determinada de esa actividad, y de ésta a otra más restringida, arribamos finalmente al concepto dominante de administración, el más estrecho de todos.

[..] el concepto dominante de administración que hemos expuesto arriba, y que en su forma más sencilla podría rezar así: la administratión es aquella actividad del Estado que no es legislación ni justicia.

Na atualidade, Dirley Cunha Júnior, por exemplo, coaduna com a corrente negativista, salientando que com o crescimento das finalidades do Estado, por vezes revela-se difícil identificar as funções ou atividades administrativas, de modo que, por essa razão, talvez seja melhor conceituar a administração pública sob o ângulo funcional117. Deu-se, pois, na doutrina, as tentativas de conceituar a administração pública como função administrativa. Aricê Moacyr Amaral Santos, às primeiras páginas de primoroso artigo jurídico, observa que constitucionalistas e administrativistas, justamente a partir da análise das Constituições de diversos Estados, sustentam que a rigidez do sistema de tripartição das funções estatais concebida por Montesquieu foi superada, vez que o sistema constitucional-positivo atribui a cada órgão do Poder uma função preponderante (típica) e uma função secundária (atípica),

114 Ibidem, loc. cit.

115 CRETELLA JUNIOR, José. Tratado de Direito Administrativo. Vol.1 – Teoria do Direito Administrativo. Rio – São Paulo: Forense, 1974. p. 23.

116 MERKL, Adolf. Teoría General del Derecho Administrativo. México: Editora Nacional, 1975.p. 8 et seq. 117 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Administrativo. 11ª ed., rev., ampl. e atual. Salvador: Editora JusPodium, 2012. p. 30.

própria dos outros órgãos, de modo tal a nenhuma das funções estatais, legislativa, executiva e jurisdicional ter, como monopólio exclusivo, determinada função118.

Assim, para o autor, a melhor doutrina recomenda que a extração do âmbito de cada uma delas se faça segundo os critérios indicadores de suas tipicidades:

Assim, entre esses critérios, o subjetivo ou orgânico é aquele que procura explicar a função segundo o órgão ou agente do qual promana o ato.

Pelo critério objetivo material, também denominado objetivo substancial, identifica- se a função por seu conteúdo intrínseco.

Valem-se os juristas, ainda, do critério objetivo formal. Este critério, em oposição aos outros, nenhuma consideração confere ao órgão ou mesmo à atividade propriamente dita. A função administrativa, assim, é explicada à luz das características extrínsecas do ato, ou seja, por sua eficácia perante a ordem normativa.

Ressalte-se, contudo, que administrativistas da maior nomeada, ao cuidarem da função administrativa, sustentam a insuficiência de critérios isolados para explicá- la.119.

O critério objetivo – objetivo porque se propõe a enfocar um objeto, no caso, uma dada atividade e não um sujeito120 é de relevância na atualidade, na medida em que o Estado

brasileiro tem permitido com que a prestação de serviços públicos, inclusive essenciais, possa ser submetida a um mais variado leque de modelos ou regimes jurídicos (Parceria público- privada, Fundação pública de direito privado, Termo de parceria, empresa pública, dentre outros), e isto em um contexto de novos paradigmas voltados à desburocratização e à horizontalidade no exercício dos poderes, e, especialmente, à redução do universo de situações de intervenção estatal121.

Assim é que a legislação pátria, ao admitir seja impetrado mandado de segurança em face de pessoa jurídica privada nas relações em que esteja no exercício de atribuições do poder público, reconhece que o dirigente assume a condição de agente público e que a organização privada exercita função administrativa, compreensão que revela sua sustentação teórica no critério formal – e, nas palavras de Aricê Santos, porquanto não se preordena à identificação desta pela natureza ou por características intrínsecas dela, mas pela posição que tem no sistema normativo 122.

É importante, aqui, destacarmos a conclusão de que o critério objetivo e formal é o mais eficiente no que respeita à Teoria Pura do Direito, formulada por Hans Kelsen, a afirmar o

118 SANTOS, op. cit., p. 228. 119 Ibidem, p. 241 et seq.

120 Aricê Santos utilizando-se de expressão ofertada por Celso Antônio Bandeira de Mello. 121 Ibidem, p. 245.

positivismo jurídico. Certo é que prevalece na doutrina pátria o entendimento objetivo da função administrativa, ora exclusivamente formal ou material, ora misto.

Sob o ponto de vista formal merece destaque o conceito elaborado por Aricê Moacyr Amaral Santos, em aprimoramento ao de Celso Antônio Bandeira de Mello:

[...] função administrativa é a atividade pública cometida pelo Estado, ou em seu nome praticada, no exercício de suas prerrogativas de autoridade, como parte numa relação jurídica, preponderantemente debaixo da lei, mas também sob a Constituição, para cumprir as finalidades estabelecidas no ordenamento jurídico.

Outro ponto de vista a ser destacado é do jurista Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, o qual compreende o legislativo e o executivo como poderes políticos por excelência dinâmicos, tomados como órgãos autônomos na dimensão constitucional e formal, mas que, pelo desempenho de suas atividades e, principalmente, por seus atributos, pertencem a um mesmo poder, que é o político; e, portanto, fundando-se no Poder Político, a atividade administrativa compreende toda a atividade legislativa e executiva. Então restaria o Judiciário como eminentemente contemplativo, visando unicamente a assegurar a ordem jurídica ameaçada ou violentada, através da prestação jurisdicional. Observa, ainda, que a atividade administrativa caracteriza-se como um todo, numa unidade lógica indissociável, cujo objeto primordial é a criação do direito segundo o bem comum123.

A função administrativa, para Aranha Bandeira de Mello, compreende uma atividade política que tem por marco inicial a lei elaborada pelo Legislativo e que se ultima e se aperfeiçoa com a necessária implementação que lhe dá concreção, por obra do Executivo, sendo, por isso, uma atividade verticalizada e, também por isso, para ele, as leis jurisdicionais lato sensu, bem como as leis de efeito imediato, caracterizam-se também como atos administrativos. Ao dizer que a função administrativa se expressa através do poder político normativo de estabelecimento da regra jurídica objetiva e do poder político executivo de sua efetivação124, o jurista segue o critério objetivo e material.

Embora prefira à conceituação objetiva e material de função administrativa como sendo aquelas predispostas à gestão dos interesses da coletividade, através de comandos infralegais ou infraconstitucionais, Cunha Júnior125 distingue as funções políticas ou de governo das

123 Ibidem, p. 234. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello também é referenciado neste primoroso artigo jurídico de Aricê Moacyr Amaral Santos.

124 MELLO. Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de direito administrativo, vol. 2. Rio de Janeiro: Forense, 1969.

funções administrativas, a dizer que é desta última que se ocupa o direito administrativo. Contrariamente, é a posição de Cretella Júnior, para quem “pretender distinguir administração, poder executivo e govêrno (sic), é criar sutilezas, sem acento sólido na doutrina” vez que a administração, em seu sentido geral, é sinônima de governo ou gestão de negócios de alguém. Assim é que, para ele, a administração pública tanto pode ser compreendida de modo orgânico, a partir da pessoa de direito público ou o órgão político normalmente competente para exercitar atividade administrativa dentro do Estado, como também de modo funcional, referida pela própria atividade administrativa, como podemos apreender do conceito que desenvolveu:

Administração é não só govêrno (sic), poder executivo, como também a complexa máquina administrativa, o pessoal que a movimenta, a atividade desenvolvida por este indispensável aparelhamento que possibilita ao Estado o preenchimento de seus fins. Pelo que, administração é a atividade que o Estado desenvolve, através de atos concretos e executórios, para a consecução direta, ininterrupta e imediata dos interesses públicos.126

Para o administrativista, o direito administrativo tem como objeto de estudo a administração pública. Ao desenvolver seu conceito de administração pública, faz breve resumo da etimologia da palavra, assinalando que, embora a divergência entre duas correntes de posicionamento, “há sempre a ideia geral de relação hierárquica, de subordinante-subordinado”. Realça, ainda, que “da palavra administração emerge evidente sentido dinâmico, a que se associa, sempre, a idéia (sic) de vontade organizada, orientada para um fim, de caráter econômico ou não, de natureza privada ou pública”, e como “a atividade humana com sentido finalístico é inseparável do agrupamento humano”, ainda que se interrompam as funções legislativa e jurisdicional, a administração é ininterruptamente exercida127 .

Hely Lopes Meirelles realça a função administrativa como atividades de conversão da lei em ato individual e concreto 128, por isso mesmo precipuamente desempenhada pelo Poder Executivo. Ao distinguir governo e administração, o renomado administrativista cita o pensamento de alguns doutrinadores:

Governo é a soberania posta em ação (Eismein); governo é a direção suprema dos negócios públicos (Bethérlemy e Duez); Governo é toda atividade exercida pelos representantes do Poder (Aderson de Menezes); Administração é a atividade concreta do Estado dirigida a satisfazer as necessidades coletivas em forma direta e imediata

126 CRETELLA JUNIOR, op. cit., p. 27. 127 Ibidem, p. 21.

128 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2011. p. 61.

(D’Alessio); Administração é a atividade pela qual as autoridades satisfazem necessidades de interesse público utilizando prerrogativas de poder (Rivero); Administração é a atividade funcional concreta do Estado que satisfaz as necessidades coletivas em forma direta, contínua e permanente, e com sujeição ao ordenamento jurídico vigente (Duez)129.

Ao elaborar seus conceitos de governo e de administração pública, considera-os sob os critérios formal, material e operacional. Assim, no aspecto formal, enquanto governo, é o conjunto de Poderes e órgãos constitucionais; administração pública é o conjunto de órgãos instituídos para consecução dos objetivos do governo; no aspecto material, enquanto governo é o complexo de funções estatais básicas, a administração pública é o conjunto das funções necessárias aos serviços públicos em geral; e, no aspecto operacional, enquanto o governo é a condução política dos negócios públicos, a administração pública é o desempenho perene e sistemático, legal e técnico, dos serviços próprios do Estado ou por ele assumidos em benefício da coletividade130.

Conclui o autor, que a administração não pratica atos de governo; pratica, tão-somente, atos de execução, com maior ou menor autonomia funcional, segundo a competência do órgão e seus agentes, sendo atividade neutra, normalmente vinculada à lei ou à norma técnica, que inversamente à atividade de governo, executa sem responsabilidade constitucional ou política, mas com responsabilidade técnica e legal pela execução131.

Carvalho Filho também se filia ao conceito de administração pública como função do Estado, afirmando que os critérios - subjetivo e objetivo - devem se combinar para suscitar o preciso contorno da função administrativa, embora, atualmente, o critério objetivo e material obtenha maior inclinação dos doutrinadores. Diferencia a função administrativa da função política, vez que esta última não tem subordinação jurídica direta, ao contrário daquela, que está sujeita às regras jurídicas superiores132.

Enterría, entretanto, elabora seu conceito partindo da compreensão de que a administração pública não pode ser tomada pelo direito administrativo como uma função material ou função formal. Para ele, o conteúdo da administração é um conjunto de funções e atividades historicamente variadas e dependentes das demandas sociais apresentadas ao Estado em razão de um contexto socioeconômico, sequer se podendo determinar um modo técnico específico de o Estado administrar. Ele descarta o entendimento da administração pública como

129 Ibidem, p. 65. 130 Ibidem, p. 130 et seq. 131 Ibidem, p. 65 et seq.

132 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 19ª ed., rev., ampl. e atualizada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.4.

um complexo de órgãos e argumenta que o direito administrativo adote a percepção da personalização da administração pública, vez que se determina por um conjunto de relações jurídico-administrativas:

Todas as relações jurídico-administrativas explicam-se na medida em que a Administração Pública, como pessoa, é um sujeito de Direito que emite declarações de vontade, celebra contratos, é titular de um patrimônio, é responsável, está sujeita a ser processada etc. A personificação da Administração Pública é assim o dado primário e sine qua non do Direito Administrativo. [...]

[...] a afirmação acima está muito longe da teoria da Escola alemã de Direito Público, que sustentou [...] a personalidade jurídica do Estado, notadamente sobre os pressupostos do idealismo hegeliano. A personalidade do Estado em seu conjunto só é admissível no seio da comunidade dos Estados [...]. No entanto, a partir do ponto de vista do ordenamento jurídico interno, essa personalidade um tanto mística do Estado não aparece, mas apenas a personalidade propriamente jurídica de um dos seus elementos: a Administração Pública133 .

De Heller134, Enterría resgata que a construção do dogma da personalidade jurídica do Estado surgiu, na sociedade alemã do século XIX, para encobrir o problema político básico da titularidade da soberania, pelo que o Estado, como ente abstrato, exerceria a soberania do povo em seu nome, sendo os indivíduos equiparados a unidades funcionais. Adotando a formulação de que o Estado é uma cooperação institucionalizada dos cidadãos por meio de uma organização de órgãos e de funções, ele argumenta que os problemas que envolvem essa cooperação não podem ser substantivados por um ente abstrato (o Estado), e, então, argumentando que para Konrad Hesse não é compreensível representar o Estado como unidade substantiva, Enterría defende a derrocada da mística que envolve as representações do Estado como pessoa nas diversas relações produzidas no ordenamento jurídico interno, e propõe que seja a Administração Pública a ser tratada como pessoa jurídica.

Assim, para Enterría, a personificação da Administração Pública nas representações na ordem interna é suficiente para individualizá-la dos órgãos que atuam em outras funções públicas e para individualizá-la em todas as situações em que os órgãos atuem na função administrativa. Sua definição, portanto, toma a Administração Pública como organização dotada de personalidade jurídica, de caráter instrumental, que atua sempre perante o Direito como um sujeito do qual emanam atos, declarações, que se vincula por contratos, que responde com seu patrimônio pelos danos que venha a causar, que é totalmente passível de ser processado perante os Tribunais 135.

133 GARCIA DE ENTERRÍA; FERNANDÉZ, op. cit., p. 48.

134 HELLER, Hermann. Teoria do Estado. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1968. 135 GARCIA DE ENTERRÍA; FERNANDÉZ, op. cit., p. 52.

Andre del Negri, na mesma direção de Enterría, embora sob uma abordagem a partir da literatura de Michel Foucault, rechaça a personificação do Estado em sua dinâmica na ordem jurídica interna, que, em sua compreensão, constrói o mito ao psicologizar o Estado:

Portanto, o Estado não é um ser psicológico (o mito do Estado), e essa tentativa de psicologizar o Estado com expressões “o Estado quer”, “o Estado deseja”, não encontra guarida na contemporaneidade indexada ao pensar democrático construído a partir da quebra da tríade poder-tradição-autoridade136.

Conclui que na sociedade contemporânea, que preza pela quebra da tradição e da autoridade, a expressão poder, até então percebida como sinônima de supressão do diálogo, passa a ser entendida como dever, ou ainda como atividade ou função, fugindo de suas origens