• Nenhum resultado encontrado

7. A CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

7.1. O DIREITO FUNDAMENTAL À BOA ADMINISTRAÇÃO

A doutrina passa a desenvolver o conceito de direito fundamental à boa administração a partir da Carta dos Direitos Fundamentais de Nice, que reza em seu artigo 41:

...ipsis... Art. 41 Direito a uma boa administração

1. Todas as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas instituições e órgãos da União de forma imparcial, equitativa e num prazo razoável.

2. Este direito compreende, nomeadamente:

– o direito de qualquer pessoa a ser ouvida antes de a seu respeito ser tomada qualquer medida individual que a afete desfavoravelmente;

– o direito de qualquer pessoa a ter acesso aos processos que se lhe refiram, no respeito dos legítimos interesses da confidencialidade e do segredo profissional e comercial; – a obrigação, por parte da administração, de fundamentar as suas decisões.

3. Todas as pessoas tem direito à reparação, por parte da Comunidade, dos danos causados pelas suas instituições ou pelos seus agentes no exercício das respectivas funções, de acordo com os princípios gerais comuns às legislações dos Estados- Membros.

4. Todas as pessoas tem a possibilidade de se dirigir às instituições da União numa das línguas oficiais dos Tratados, devendo obter uma resposta na mesma língua.

Disponível em: https://escola.mpu.mp.br/linha-editorial/outras-

publicacoes/Constitucionalismo%20Tardio_WEB.pdf. p. 19. 272 Silva Neto, op. cit., p. 19.

Juarez Freitas inicia sua obra enfatizando que o Estado Constitucional pode ser traduzido como o Estado das escolhas administrativas legítimas. A escolha é legítima se a discricionariedade é exercida sem excessos de ação ou de omissão, atendendo à normatividade substancial. Para isto, diz, impõe-se controlar (ou, ao menos, mitigar) os contumazes vícios forjados pelo excesso degradante, pelos desvios ímprobos ou pela omissão desidiosa274.

A fundamentação das decisões é o dever de o agente público apresentar a justificação, com os pressupostos de fato e de direito, mesmo quando protegido pela cláusula da conveniência ou oportunidade.

Assim é que toda discricionariedade é exercida legitimamente se vinculada aos princípios constitucionais. Freitas conclui que quando o administrador público age de modo inteiramente livre, já deixou de sê-lo, porque se tornou arbitrário; quer dizer, a liberdade apenas se legitima ao fazer aquilo que os princípios constitucionais, entrelaçadamente, determinam275.

A livre nomeação para ocupação de cargos públicos de provimento comissionado, p. e., vem sendo mantida como uma liberdade quase que absoluta do nomeante, vez que se atém tão- somente aos limites formais de o nomeado atender à capacidade civil, às condições de cidadania, entre outros requisitos formais estabelecidos na Constituição.

Tal grau de liberdade, segundo Juarez Freitas276, ocorre por dois equívocos assaz comuns: (a) crença na discricionariedade ilimitada ou na existência de zona juridicamente irrelevante, interditada à sindicabilidade ou (b) crença de que em dadas circunstâncias, normativamente estabelecidas, o agente público operaria como um singelo vassalo da lei, cuja suposta inevitabilidade o liberaria de qualquer responsabilidade ético-jurídica. Ou seja, trata-se de um ato motivado em justificativa de confiança subjetiva, pois nada mais se tem para justificar a liberdade responsável do agente público277 de modo a configurar a confiança objetiva, que melhor realiza os interesses da sociedade em ver realizar o direito a boa administração pública. A aceitação de uma zona juridicamente irrelevante opera como uma permissividade em prol da prevalência de uma esfera exclusivamente política no contexto constitucional, ou seja, que atos políticos sejam aceitos sem que suas motivações sejam submetidas a algum grau de controle. Essa permissividade absoluta não é aceitável, pois uma decisão administrativa não pode ser exclusivamente política no sentido de a motivação ficar fora do controle judicial, ainda

274 FREITAS, op. cit. 275 FREITAS, op. cit., p. 10. 276 Ibidem, p. 13 et seq.

que se saiba que o controle não pode determinar o conteúdo das escolhas278.

Quanto ao princípio da legalidade, atualmente exige-se não apenas a vinculação estrita à lei, como, também, à teia de princípios constitucionais e do direito administrativo que regem as relações jurídico-administrativas, pelo que a doutrina contemporânea passa se referir à juridicidade invés de à legalidade.

O controle da discricionariedade vinculado aos princípios constitucionais impõe o dever de escolher bem, expectativa que demanda uma reestruturação das estratégias de governança, fazendo-as mais criativas, transparentes e concatenadas, para não sucumbir às ciladas da disputa personalista, e que é propiciada por um ambiente institucional favorável a parceiros produtivos, com redução dos entraves oriundos da quebra reiterada de confiança279.

Após a Emenda Constitucional nº 19, de 1998, é irrefutável a vontade do legislador pelo estabelecimento pactuado de metas e resultados na Administração Pública, a orientar a reparação no ambiente institucional de atos imediatistas e as ações e despesas de alcance duvidoso, de modo a corroborar com o dever de planejamento econômico, previsto expressamente na ordem constitucional brasileira. Neste sentido argumenta Juarez Freitas:

[...] afigura-se, por isso, crucial pregar o fim da discricionariedade sem controle, rumo à emancipação em face dos caprichos partidaristas.

[...]

Trata-se, então, de assumir, com todas as forças, a defesa do direito administrativo mais de Estado regulador e prestacional redistributivo de oportunidades que “de governo” vocacionado ao efêmero particularista [...].

Neste sentido, o Estado-Administração da discricionariedade legítima requer (ao mesmo tempo, suscita) o protagonismo da sociedade amadurecida e do agente público que promove o “bem de todos” (CF, art. 3º, IV).

[...]

É que o estado da discricionariedade legítima, na perspectiva adotada, consagra e concretiza o direito fundamental à boa administração pública [...]280.

O direito fundamental à boa administração realiza-se com o acesso à administração pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas. É correspondente ao direito fundamental à boa administração o dever de a administração pública observar, nas relações administrativas, a cogência da totalidade dos princípios constitucionais que a regem.

A demonstração de desempenho da gestão pública, portanto, é um dos conteúdos

278 Juarez Freitas, em alusão às lições de Roberto Bin e Giovanni Pitruzella. 279 FREITAS, op. cit., p. 15 et seq.

exigíveis para a realização do direito fundamental à boa administração. Na Constituição brasileira de 1988, com a introdução da Emenda Constitucional nº 19, de 1998, ficou expressamente positivado como dever de conduta da Administração Pública a demonstração de desempenho, por meio de definição de metas:

Art. 37 ...omissis... §8º A autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e entidades da administração direta e indireta poderá ser ampliada mediante contrato, a ser firmado entre seus administradores e o poder público, que tenha por objeto a fixação de metas de desempenho para o órgão ou entidade, cabendo à lei dispor sobre:

...omissis...

Entretanto, a conduta de demonstrar o desempenho de um órgão, centralizado ou descentralizado, da Administração Pública, em que pese estar positivado em sede de ordem constitucional, tem recebido tratamento não de dever, mas, sim, de conduta livre281.

Somente na condição de o Estado descentralizar um órgão com o fim de ampliar a autonomia gerencial, orçamentária e financeira é que a doutrina e a jurisprudência tomam como dever a definição de metas de desempenho, a ser concretizada na forma de contrato de gestão. Essa tendência desconsidera que:

[...] a boa administração tem como parâmetros gerais os conceitos de eficiência e de resultado de gestão: a eficiência, como a otimização da aplicação dos meios administrativos disponíveis, e o resultado, como a idoneidade do fruto da gestão realizada para atender satisfatoriamente aos interesses públicos visados [...]282.

Como admitir o dever de pactuar metas de desempenho apenas em situação de ampliação de autonomia? Não seria esta uma orientação ideológica não vencida pela

281 ROSS, Alf. Direito e Justiça. Trad. Edson Bini. 2ª ed. Bauru, SP: EDIPRO, 2007. p. 191 et seq. Utilizo os termos dever e conduta livre como elaborados na teoria de Alf Ross. Segundo o teórico, a função ideológica tradicional do dever é atuar como um motivo para o comportamento lícito, não por temor das sanções, mas em virtude de uma atitude desinteressada de respeito ao direito. Essa função ideológica, geradora de motivos, concede ao direito sua sacralidade ou validade e sem isso não é possível criar uma ordem social. Em proveito dessa tradição linguística, é que Ross desenvolve seu conceito de dever partindo da restrição do emprego do termo àqueles casos em que a reação é experimentada como uma reprovação social, e a sentença, portanto, como um estímulo para o cumprimento do dever. É da teoria de Ross que advém a assertiva de que “afirmar que um ato está prescrito quer dizer que há o dever de realizá-lo; afirmar que está proibido quer dizer que há o dever de não realizá-lo”. E de que a conduta que não é nem proibida, nem prescrita, é chamada de livre.

282 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo, 16ª ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 118.

interpretação do texto constitucional, e decorrente de uma resistência política a um novo modelo de administração para o Estado, a qual terminou por contaminar as possibilidades jurídicas advindas diretamente dos princípios da administração pública e, especialmente, de uma prescrição constitucional explícita, a independer da adoção do modelo gerencial de administração do Estado?

8. O DEVER DE PACTUAR O DESEMPENHO DA GESTÃO PUBLICA À LUZ