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Infraestruturas feministas e atuação política de mulheres em redes autônomas e comunitárias   : criar novos possíveis diante da concentração de poder na internet  

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

LABORATÓRIO DE ESTUDOS AVANÇADOS EM JORNALISMO

DÉBORA PRADO DE OLIVEIRA

INFRAESTRUTURAS FEMINISTAS E ATUAÇÃO

POLÍTICA DE MULHERES EM REDES AUTÔNOMAS E

COMUNITÁRIAS: CRIAR NOVOS POSSÍVEIS DIANTE

DA CONCENTRAÇÃO DE PODER NA INTERNET

CAMPINAS,

2019

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DÉBORA PRADO DE OLIVEIRA

Infraestruturas feministas e atuação política de mulheres em

redes autônomas e comunitárias: criar novos possíveis diante

da concentração de poder na internet

Dissertação apresentada ao Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo, do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas e como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra em Divulgação Científica e Cultural, na área de Divulgação Científica e Cultural.

Orientadora: Profa. Dra. Marta Mourão Kanashiro

Co-orientador: Prof. Dr. Diego Jair Vicentin

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE

À VERSÃO FINAL DA

DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA DÉBORA PRADO DE OLIVEIRA, E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. MARTA MOURÃO

KANASHIRO, COM

CO-ORIENTAÇÃO DO PROF. DIEGO JAIR VICENTIN.

CAMPINAS,

2019

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Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem

Leandro dos Santos Nascimento - CRB 8/8343

Oliveira, Débora Prado de,

OL4i OliInfraestruturas feministas e atuação política de mulheres em redes

autônomas e comunitárias : criar novos possíveis diante da concentração de poder na internet / Débora Prado de Oliveira. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.

OliOrientador: Marta Mourão Kanashiro. OliCoorientador: Diego Jair Vicentin.

OliDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem.

Oli1. Internet. 2. Redes de computadores. 3. Tecnologia. 4. Feminismo. I. Mourão Kanashiro, Marta. II. Jair Vicentin, Diego. III. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. IV. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Feminist infrastructures and political action of women in

autonomous and community networks

Palavras-chave em inglês:

Internet

Computer networks Technology

Feminism

Área de concentração: Divulgação Científica e Cultural Titulação: Mestra em Divulgação Científica e Cultural Banca examinadora:

Marta Mourão Kanashiro [Orientador] Daniela Tonelli Manica

Leonor Graciela Natansohn

Data de defesa: 28-08-2019

Programa de Pós-Graduação: Divulgação Científica e Cultural Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)

- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0003-1301-0868 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/2119121680146756

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BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Marta Mourão Kanashiro – Presidente

Universidade Estadual de Campinas (Labjor Unicamp)

Profa. Dra. Daniela Tonelli Manica

Universidade Estadual de Campinas (Labjor Unicamp)

Profa. Dra. Leonor Graciela Natansohn

Universidade Federal da Bahia (UFBA)

IEL/UNICAMP

2019

Ata da defesa, assinada pelos membros da Comissão

Examinadora, consta no SIGA/Sistema de Fluxo de

Dissertação/Tese e na Secretaria de Pós Graduação do IEL.

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À memória de Marielle Franco;

Às mulheres, grupos e corpos que insistem em existir e resistir;

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O apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes (número de processo 1686030, código de financiamento 001), que concedeu um bolsa de 18 meses, foi essencial para que eu completasse a pesquisa de mestrado. Aos afetos que atravessaram mais essa jornada comigo; Família, amigos e uma parceira que compreenderam as ausências que a pesquisa trouxe sem nunca deixar de incentivar; Colegas de trabalho que também trouxeram suporte e estímulo; Às feministas que pude conhecer no e por meio do Instituto Patrícia Galvão; Aos afetos que esta pesquisa me trouxe e aos lugares onde ela me levou; Às pessoas que deram sentido à Unicamp – orientadores e amigos do programa de mestrado, do ICTs, do EDICC, da Lavits, dos ‘ Rigos’, da equipe do Labjor; Às novas amigas feministas que ressignificaram tecnologias e conhecimentos, desestabilizaram certezas e mantém viva a esperança em alianças; A todas essas vozes que em muitos diálogos se dispuseram a construir saberes comigo; E, em especial, àquelas que não posso deixar de nomear: Marta, Diego, Cris, Gabriel, Camila, Léo, Dani, Eli, Bruna, Nanda, Carl, Fer, Geisa, Daiane, Nic, Sandra e Elisa, E, por fim, à existência da universidade pública, do investimento em pesquisa, de

movimentos sociais e feminismos diversos: Muito obrigada.

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A expectativa de autonomia, descentralização e horizontalidade que marcou o início do debate sobre a internet numa perspectiva comunicacional vem sendo confrontada por processos crescentes de concentração de poder e controle destinados a promover, prioritariamente, novas formas de monetização para a acumulação privada por grandes empresas e a vigilância por empresas e Estados. Essa expectativa foi confrontada ainda pela denúncia das desigualdades – em especial de gênero, raça e classe – que os legados feministas ajudam a colocar em primeiro plano ao revelar os padrões discriminatórios que atravessam as redes e tecnologias digitais, apontando que os processos de controle e concentração de poder não impactarão todas as pessoas da mesma forma. Os trabalhos que analisam criticamente esses processos, porém, não buscam construir uma narrativa de determinismo tecnológico, nem de relativismo, mas compreender a emergência de novas formas de poder e apontar que serão necessárias também novas formas de análise e de ação política para resistência. Nesse contexto, baseadas em paradigmas de abertura do design e de gestão coletiva para promover a conexão compartilhada à internet ou constituir uma rede digital local, as redes autônomas e comunitárias vêm sendo compreendidas como uma alternativa de resistência, de interação social com infraestruturas nos territórios e de busca por autonomia comunicacional e tecnológica. A partir de referências e metodologias de pesquisa feministas, este trabalho busca refletir sobre os sentidos mobilizados, as formulações e propostas que emergem de articulações tecnopolíticas de coletivos e ativistas feministas em torno do debate sobre infraestruturas de redes que viabilizam o tráfego de dados digitais. Também sobre as resistências a processos hegemônicos e as alternativas que emergem dessas articulações – em especial, a proposta de constituição de redes autônomas e comunitárias a partir de infraestruturas feministas. Os resultados alcançados foram sistematizados em reflexões que surgiram a partir das questões que cruzaram o percurso de pesquisa: como podem ser compreendidas infraestruturas feministas?; que impactos podem ter no debate sobre redes autônomas e comunitárias?; o que pode mudar quando uma rede é pensada na perspectiva de romper o legado colonial, androcêntrico e a orientação capitalista?; como as infraestruturas feministas e as redes autônomas e comunitárias podem dialogar com os questionamentos às disputas de poder na internet? Esta pesquisa recebeu financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) por 18 meses.

Palavras-chave: Internet; Redes digitais; Redes comunitárias; Infraestruturas

Feministas; Tecnologia; Feminismos.

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The expectation of autonomy, decentralization and horizontality that marked the beginning of the debate on internet from a communication perspective has been confronted by increasing processes of concentration of power and control aimed at promoting, as a priority, new forms of monetization for private accumulation by large companies and surveillance by companies and states. This expectation was also confronted by the denunciation of the inequalities – especially of gender, race and class – that feminist legacies helped to bring to foreground by revealing the discriminatory patterns that cross digital networks and technologies, pointing out that the processes of control and concentration will not impact all people in the same way. However, the literature that critically analyzes these processes does not seek to construct a narrative of technological determinism or relativism, but rather to understand the emergence of new forms of power and to point out that new form of analysis and political action for resistance will also be necessary. In this context, based on paradigms of openness of design and collective management to promote shared access to the internet or to constitute a local digital network, autonomous and community networks have been seen as an alternative of resistance, of social interaction with infrastructures and of search for communication and technological autonomy by communities. Based on literature and feminist research methodologies, this study aims to reflect on the formulations and proposals that emerge from the technopolitical articulations of feminist collectives and activists around the debate about network infrastructures that enable the traffic of digital data. It also explores the resistances to hegemonic processes and the alternatives that emerge from these articulations – in particular, the proposal of constitution of autonomous and community networks with feminist infrastructures. The results were systematized in reflections that emerged from the questions that crossed the research route: how could feminist infrastructures be understood?; what are their impacts on the debate on autonomous and community networks?; what may change when a network is thought through the perspective of breaking the colonial, androcentric, and capitalist legacy?; how would feminist infrastructures and autonomous and community networks dialogue with the questioning of power disputes on the internet? This research received funding from the Coordination of Superior Level Staff Improvement (Capes) for 18 months.

Keywords: Internet; Digital networks; Community networks; Feminist Infrastructures;

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APRESENTAÇÃO...10

CAPÍTULO 1 – Situando a pesquisa, a pesquisadora e os percursos...13

1.1. Introdução...13

1.2. Rotas teórico-metodológicas, procedimentos, escolhas e vontades...18

1.3. Uma visão de sobrevoo do percurso de pesquisa...26

1.4. Quem matou Marielle e Anderson?...31

CAPÍTULO 2 – Internet, redes digitais, infraestrutura e disputas de poder...35

2.2. Tecnologias digitais e novas assimetrias de poder...35

2.3. A internet foi colonizada?...41

2.4. Uma proposta anticapitalista...46

2.5. Contribuições de uma perspectiva não binária e universal...49

CAPÍTULO 3 – Conectando redes autônomas e comunitárias com infraestruturas feministas: quebra de regimes de invisibilidade, desestabilizações de percepções universais...56

3.1. Redes Autônomas e Comunitárias...56

3.2. Infraestruturas feministas...64

3.2. Quais os impactos desta aproximação? Algumas universalizações em perspectiva...68

CAPÍTULO 4 – O que pode mudar quando uma rede sociotécnica é pensada na perspectiva de romper o legado colonial, capitalista e androcêntrico?...76

4.1. A representatividade importa, mas não basta: o desenho da tecnologia, a organização do tempo, do espaço e das prioridades a partir múltiplas condições...76

4.3. Segurança e cuidado: não mexe comigo que eu não ando só...85

4.4. Linguagem: Cara ou Carol Bandida?...88

4.6. Criar novos possCveis: descolonização do imaginário e autonomia...91

Considerações finais...96 Referências...100 ANEXO 1 – Entrevistas...106 Entrevista 1 – Brunz...106 Entrevista 2 – Carl...116 Entrevista 3 – Geisa...126 Entrevista 4 – Nanda...139

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APRESENTAÇÃO

Já somos servidoras. Não precisamos apenas de novos hardwares, coisas feitas de puro aço. Não é que não sejam importantes. A materialidade eletrônica pode ser um portal para o aprendizado e para a transgressão. Incorporamos identidades diversas (femininas, negras, trans, não-binarias) de luta, com uma carga histórica na latinoamérica, de sermos servidoras. Compreendemos nisso a possibilidade de estabelecer resistências e equidades sociais e econômicas que antes não nos foram dadas. Possibilidades de cruzar fronteiras e criar novas alianças e, como servidoras no contexto mais tecnocrático, sermos mestras em tecnologias e conhecimentos forjados por nós mesmas, e não meros reflexos do que observamos (Manifesto do Aço à pele, 20171).

Quando eu comecei essa pesquisa, em fevereiro de 2017, eu não sabia o que eram topologias de rede, protocolos, backbone, servidoras e redes autônomas, entre outras palavras que muitas vezes afastam. Não pensava que rede não era sinônimo de internet, nem usava alternativas de comunicação digital autônomas para além das comerciais que dominam nosso imaginário, como o WhatsApp, Gmail e Facebook. Não refletia sobre a existência de uma rede de cabos submarinos que estruturam a internet globalmente, nem de instalações gigantescas, chamadas de fazenda, de servidores para armazenar os dados que, no dia a dia, dizemos estar na “nuvem”. Eu não cobria a câmera do meu computador ou celular e não me preocupava com senhas seguras – embora já tivesse testemunhado ataques virtuais machistas e as denúncias de vigilância em massa feitas por Edward Snowden nos Estados Unidos já tivessem percorrido o mundo e até virado filme de Hollywood.

Tudo isso faz sentido para muita gente que está mais diretamente envolvida com temas como segurança digital, privacidade, cultura hacker, softwares livres, criptografia e outros. É um mundo distante para muitas outras pessoas, mesmo que uma boa parte delas tenha múltiplas tecnologias digitais atravessando o seu cotidiano. A falta de transparência no funcionamento de infraestruturas e uma noção distante de saber técnico foi, na minha experiência, uma força de afastamento. Eu não me sentia segura para falar nos primeiros eventos de tecnologia que frequentei. Na perspectiva acadêmica, numa lógica semelhante, pensava também que sem filiar minha pesquisa a uma metodologia consagrada por uma grande escola teórica, ela não teria legitimidade.

Isso mudou em dois anos. Dei a sorte de encontrar um grupo de pesquisa, orientadora e co-orientador comprometidos em não engessar a academia, nem limitar a produção de conhecimento à reprodução de fórmulas epistêmicas. Pude estabelecer trocas com feministas diversas nas atividades de campo, que me fizeram expandir a compreensão de tecnologia e entender a importância de não hierarquizar nossos próprios conhecimentos ou limitar nossas noções a reflexos de outros interlocutores. Frequentei espaços pensados por mulheres e pessoas trans para e com mulheres e

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pessoas trans, em que romper hierarquias e promover um processo de aprendizado conjunto, acolhedor e seguro para múltiplos grupos sociais e corpos eram desafios permanentes.

Assim, o percurso de pesquisa foi também um processo de desconstrução e desnaturalização do imaginário e de alguns conceitos. Sintetizar este percurso neste trabalho foi um enorme desafio, especialmente porque a escrita exige reorganizar, em formatos e divisões próprias do campo acadêmico, processos e experiências que são múltiplos, vivos e se cruzam o tempo todo. Ao mesmo tempo, era um dever – tão grande quanto o privilégio de realizar uma pós-graduação pública no Brasil – compartilhar as trocas que pude estabelecer com futuras pesquisas. Sobretudo, com aquelas interessadas em fortalecer epistemologias não hegemônicas e em romper dicotomias tradicionais (como pesquisador/objeto) e toda hierarquização que elas carregam2.

Considerando que a produção de conhecimento acadêmico não pode estar descolada da realidade em que se insere e dos compromissos éticos e das relações, inclusive de afetos3,

estabelecidas durante a pesquisa, esse sentido de dever me acompanhou na expectativa de poder compartilhar e problematizar os resultados desta reflexão com as múltiplas vozes que a construCram comigo, e também no movimento de estabelecer novos diálogos.

Por fim, este trabalho é uma forma de registrar que iniciar essa pesquisa com tantos desconhecimentos, como os citados nesta apresentação, não me invalida como interlocutora, nem

2 A proposta de superar uma noção dicotômica e vertical entre ciência e sociedade, pesquisadores e objetos aparece em diversas referências que mobilizamos no decorrer deste trabalho. Numa arena de tensões e posicionamentos plurais, distintas epistemologias feministas – como os feminismos interseccional, pós-coloniais e descoloniais, negro, latino, teóricas queer, entre outros – convergem ao apontar a não neutralidade da Ciência e se dedicam a desmontar os processos pelos quais a pesquisa, por vezes, reproduz e legitima assimetrias de poder. Rago (1998) aponta que a Ciência possui caráter particularista, ideológico, racista e sexista, denunciando que o saber se processa a partir de um conceito universal de homem ‘branco-heterossexual-civilizado-do-primeiro-mundo’ – pretensa universalidade que compromete a suposta neutralidade do conhecimento. Além das teóricas feministas, outro campo teórico que indica a importância de superar esquemas que colocam a pesquisa acadêmica como o lado ‘neutro’ ou ‘objetivo’ é o da pesquisa-ação. Nesse caso, o olhar se volta para o não apagamento da capacidade de agência e produção de conhecimentos do ‘outro lado’ - os ‘objetos’ de estudo. Nesse sentido, Peruzzo (2016) define: “a pesquisa participante e a investigação-ação também contribuem para a mudança da relação sujeito-objeto para sujeito-sujeito, o que não implica a aceitação da interferência deliberada do subjetivismo e de conceitos pré-concebidos. Ou seja, se reconhecem os atores investigados como sujeitos (coletivos ou individuais) e a potencialidade de construção de conhecimento cientCfico na relação com os mesmos na condição de participantes ativos, como co-protagonistas – e não meros informantes ou colaboradores – na elaboração de planos, interpretações e no empoderamento dos resultados”.

3 A palavra afeto é bastante utilizada no campo feminista. A pesquisadora Adriana Piscitelli (2009) assinala que na concepção do patriarcado, que separa os espaços público e privado, a mulher está restrita ao “mundo privado e doméstico, espaço dos 'afetos', que fariam oposição a racionalidade pública dos homens, O termo também foi mobilizado por movimentos LGBTQ+ para visibilizar homoafetividades que desafiam o padrão heteronormativo. A concepção de afeto tem sido discutida em diferentes campos do conhecimento, como a filosofia, a psicologia e a educação. O filósofo francês Gilles Deleuze ao dialogar com a noção de afeto de Espinosa, aponta que a “a afecção remete a um estado do corpo afetado e implica a presença do corpo afetante, ao passo que o afeto remete à transição de um estado a outro, tendo em conta variação correlativa dos corpos afetantes” (DELEUZE, 2002, p.56). Esse sentido discutido na filosofia francesa é pertinente aqui na medida que localiza o afeto na relação, na capacidade de afetar e ser afetado. Nesta pesquisa, pensar em afetos nos ajuda a resgatar a importância de subjetividades e trocas para a formação de redes de solidariedade e de relações entre corpos distintos capazes de estabelecer alianças polCticas e epistemológicas.

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como produtora de conhecimentos e tecnologias. Isso é importante se pensarmos que, como eu, muitas pessoas são afastadas em diferentes nCveis de debates sobre cibercultura, tecnologias digitais, redes e infraestruturas e que esse afastamento é agravado numa perspectiva interseccional, quando consideramos desigualdades estruturais e históricas como as de gênero, raça, etnia e classe, como a própria pesquisa mostraria. Não se trata de uma questão apenas individual, mas do afastamento de grupos sociais de lugares de poder.

A monotonia de interlocutores, além de perpetuar essas desigualdades, pode ainda ser um perigoso limite para o próprio campo de estudo, empobrecido ao ecoar poucas vozes e reverberar o legado colonialista que contamina nossos saberes e práticas mesmo na América Latina. Glória Anzaldúa, autora lésbica norte-americana que viveu na fronteira com o México, ao escrever para mulheres não brancas fazendo um contundente chamado para que produzam suas próprias teorias, frisa: “mesmo se estivermos famintas, não somos pobres de experiências” (ANZALDÚA, 2000, p.235).

Este trabalho tenta voltar o olhar para experiências mais múltiplas e alcançar articulações tecnopolCticas de ativistas e coletivos de mulheres e pessoas trans e não binárias em torno do debate sobre as disputas na internet e, para além da internet, na constituição de suas próprias tecnologias e redes, transbordando categorias e conceitos acumulados nos muitos feminismos para o debate sobre infraestruturas e tecnologias e vice-versa.

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CAPÍTULO 1 – Situando a pesquisa, a pesquisadora e os percursos

Esta primeira parte do trabalho apresenta o tema, as perguntas exploratórias e objetivos que guiaram a pesquisa, reúne informações que contextualizam sua realização, trazem uma visão de sobrevoo do percurso de pesquisa e apontam as rotas teórico-metodológicas traçadas, identificando escolhas e vontades.

1.1. Introdução

A possibilidade de difundir informação a custos mCnimos, o funcionamento colaborativo em rede associado à inteligência coletiva, tudo isso favoreceria – pelo menos em teoria – um ambiente comunicacional mais favorável ao desenvolvimento da igualdade de direitos e oportunidades entre todos e todas. Porém, o desenvolvimento das tecnologias não escapa às relações de poder que produzem desigualdades e contradições nas dinâmicas de acesso, uso, desenho e produção das TIC’s entre homens mulheres, brancos, negros, pobres e ricos (NATANSOHN, 2013, p.1).

O inCcio do debate sobre a internet e as então novas tecnologias de informação e comunicação (doravante TICs) foi marcado, em parte, por uma expectativa de maior autonomia, descentralização e horizontalidade, que se refletiu em um certo entusiasmo no campo teórico e mesmo em movimentos sociais em relação a essa rede4, como pontua a pesquisadora Graciela

Natansohn (2013). Quando contraposta a outras tecnologias de comunicação, como as televisões e os jornais – que se estruturavam como esquemas de mCdia proprietários, altamente concentrados e no modelo de broadcast que permitiam pouca ou nenhuma interação direta entre a audiência – a internet foi compreendida como uma estrutura de comunicação distribuCda que seria propCcia para promover maior autonomia comunicacional.

As perspectivas mais voltadas ao potencial descentralizador da internet foram, entretanto, questionadas por diferentes autores e interrogadas, inclusive, pela orientação militar que influenciou seu desenvolvimento nos Estados Unidos no contexto da Guerra Fria. O pesquisador norte-americano Alexander Galloway (2004), ao avaliar os protocolos desta rede – e as escolhas que eles

4 Autores consagrados, como Manuel Castells (2003), apontaram a internet como espaço privilegiado para a promoção de alianças entre movimentos culturais, já que propiciaria um espraiamento de ideias em espaço ampliado, em que local e global se conectam pelas TICs, considerando, neste contexto, a internet e os meios de comunicação como uma das principais vias que estes movimentos encontram para chegar àqueles que podem partilhar seus valores e, assim, atuar na consciência da sociedade. No Brasil, o ambiente virtual tem sido lugar de práticas e apostas de grupos e movimentos que buscam conferir visibilidade a suas agendas e valores – cenário no qual o feminismo tem chamado atenção, por exemplo, em sucessivas mobilizações em diferentes plataformas, como sites, blogs, fóruns e redes sociais. Esse aspecto também é trabalhado em diversas pesquisas recentes. Ao mapear mobilizações via hashtags no Twitter, pesquisadoras do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic) da Universidade Federal do Espirito Santo concluem, por exemplo, que a internet, especialmente as redes sociais, se converteram em “um terreno fértil para organização coletiva e um instrumento de luta polCtica, principalmente para o movimento feminista contemporâneo” (BORTOLON; PERDIGÃO, 2016).

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carregam, se contrapõe a ideia de que a internet seria uma forma de eliminar a hierarquia, a regulação e o controle, apontando essas concepções como um tipo de “ilusão ideológica”. Recentemente, diversos trabalhos vêm se debruçando sobre os processos de vigilância e de concentração de poder que atravessam a internet – orientados a promover, prioritariamente, novas formas de acumulação privada por poucas e grandes empresas e também novas formas de controle por empresas e Estados – e seus impactos na contemporaneidade (GREENHALGH, 2014; HARAWAY, 1995; SANTOS, 2003; VICENTIN, 2016; STERLING, 2012; ZUBOFF, 2015). A história da internet é, assim, marcada por tensões entre centralização e descentralização5.

Aquela expectativa de horizontalidade tem sido confrontada ainda pela afirmação da não neutralidade das TICs. Diferentes vertentes teóricas problematizaram a distinção entre ciência, tecnologia e polCtica na sociedade – rejeitando concepções como a de que tecnologia seria a aplicação da ciência e esquemas que separavam a ação humana (polCtica) das descobertas cientCficas, artefatos e técnicas, que seriam apolCticos ou neutros (FEENBERG, 2010; SANTOS, 2003; WINNER, 1986). Nesse campo, os Estudos Feministas em Ciência e Tecnologia (EFCT) ajudaram a colocar em primeiro plano a não neutralidade da tecnologia em muitas camadas, incluindo uma preocupação em afirmar que seus impactos não atingirão as pessoas e grupos sociais da mesma forma (HARDING, 1998; MAFFÍA, 2005; NATANSOHN, 2013; SARDENBERG, 2002).

É importante pontuar que os trabalhos que mobilizamos nesta pesquisa, ao analisar criticamente a Ciência e Tecnologia e, mais especificamente, as tecnologias digitais, não buscam construir uma narrativa de determinismo tecnológico ou de relativismo, como veremos mais adiante, mas compreender a emergência de novas dinâmicas de poder (HARAWAY, 1995). Apontam ainda que os processos de concentração de poder e as desigualdades não acontecem de modo fixo ou universal, sendo permeados por processos de resistência e protagonismos diversos que são gestados em contextos especCficos. As múltiplas perspectivas feministas oferecem, assim, uma lente para analisar as TICs como um campo suscetCvel a contradições, em que normas hegemônicas são tanto reiteradas e construCdas, quanto contestadas e que existe ainda uma multiplicidade de narrativas e experiências que escapam a essas normas.

Considerando esse rápido resgate de um contexto mais amplo com o qual esta pesquisa busca dialogar, vale lembrar que a universalização aparece na literatura feminista mobilizada como

5 Nossa intenção neste trabalho, porém, não é resgatar esse histórico, nem nos debruçar sobre teorias que buscam definir se, por origem, a internet favoreceria o fluxo livre ou a concentração. Como veremos mais adiante, as referências bibliográficas que mobilizamos na pesquisa voltam a análise para pensar as disputas que acontecem e como elas são atravessadas por novas formas de concentração de poder e, simultaneamente, por resistências que se atualizam e por contradições.

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um mecanismo problemático – do qual buscaremos, portanto, escapar – na medida em que operou historicamente a ocultação e naturalização de desigualdades, contribuindo, inclusive, para a perpetuação de práticas colonialistas ocidentais nos campos da Ciência e Tecnologia (HARAWAY, 1995; RIBEIRO, 2017).

Assim, colocando os pés no contexto especCfico, este trabalho busca refletir sobre os sentidos mobilizados, as formulações e propostas que emergem de articulações tecnopolCticas de coletivos e ativistas feministas em torno do debate sobre infraestruturas de redes que viabilizam o tráfego de dados digitais. Também sobre as resistências a processos hegemônicos e as alternativas que emergem dessas articulações – em especial, a proposta de constituição de redes autônomas e

comunitárias a partir de infraestruturas feministas.

Para criar uma base comum desde o inCcio, faço aqui uma apresentação rápida desses campos, que será expandida nos próximos capCtulos: ao falar em redes estamos pensando em formas de conexão, em relações não baseadas numa separação humano-máquina, e, especificamente neste trabalho, em redes humanas com conexões digitais. A internet é uma dessas redes, provavelmente a mais conhecida, mas não a única. Emprestamos aqui a definição do site Redes Autônomas e

Feministas6, referência que conheci na pesquisa documental, para estabelecer ainda que “chamamos

de tecnologia autônoma aquela que não depende de serviços proprietários e do mercado para ser implementada e se sustentar”. Quando essas redes são implementadas e geridas por membros de uma determinada comunidade, de forma compartilhada, elas podem ser consideradas comunitárias.

Para introduzir a ideia de infraestruturas feministas, compartilho também a definição das pesquisadoras Sophie Toupin e Alexandra Hache:

Um dos principais elementos constitutivos das infraestruturas feministas autônomas está no conceito de auto-organização já praticado por muitos movimentos sociais que entendem a questão da autonomia como um desejo por liberdade, auto-valorização e ajuda mútua. Além disso, entendemos o termo infraestrutura tecnológica de forma expansiva, englobando hardware, software e aplicativos, mas também design participativo, espaços seguros e solidariedades sociais (TOUPIN; HACHE, 2015, p. 23).

As reflexões que surgiram a partir das questões que cruzaram o percurso de pesquisa – como: como podem ser compreendidas infraestruturas feministas?; que impactos podem ter no debate sobre redes autônomas e comunitárias?; o que pode mudar quando uma rede é pensada na perspectiva de romper o legado colonial, androcêntrico e assume uma postura anticapitalista?; como as infraestruturas feministas e as redes autônomas e comunitárias podem dialogar com os

6 O site é fruto de uma parceria entre Kefir, Periféricas e Vedetas (coletivos que se organizam no México e Brasil), que, a partir de um projeto conjunto, se debruçou sobre redes autônomas e comunitárias feministas, como apresentaremos mais adiante neste trabalho. DisponCvel em: <http://redeautonomafeminista.org>. Acesso em: 28 ago. 2018.

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questionamentos às disputas de poder na internet? – foram sintetizadas e organizadas neste trabalho em quatro capCtulos. Antes de apresentá-los, vale destacar que o objetivo dos capCtulos é refletir sobre questões como essas a partir de experiências que são localizadas tanto no espaço, quanto no tempo, ou seja, reunimos neles reflexões exploratórias e compartilhamos possibilidades que atravessam as experiências acompanhadas, e não pretendemos alcançar respostas definitivas ou conceitos fechados – algo que seria contraditório com a própria literatura feminista mobilizada como orientação metodológica nesta pesquisa, como veremos mais adiante.

O primeiro capítulo, assim, reúne esta introdução, os referenciais teórico-metodológicos que orientaram os procedimentos adotados – a pesquisa bibliográfica e de campo – e que motivaram também algumas escolhas e compromissos que estiveram presentes no percurso. Aqui é apresentada uma visão de sobrevoo da pesquisa de campo, realizada em especial a partir de encontros que reuniram grupos latino-americanos que atuam com esse tema e de uma pesquisa documental em materiais produzidos nesse campo. Fugimos um pouco do protocolo acadêmico, para incluir ainda um registro que atravessa o momento desta pesquisa e, em especial, o campo aqui investigado. O assassinato de Marielle Franco, mulher, negra, lésbica, ativista feminista e vereadora carioca mancha a história recente do Brasil e muito tem a dizer sobre as violências estruturais e adiamentos que nos são impostos quanto pensamos resistências na América Latina.

O segundo capítulo traz o contexto mais amplo com o qual esta pesquisa dialoga, situando alguns dos processos hegemônicos que estiveram no radar ao voltarmos nosso olhar para resistências localizadas: a concentração de poder sobre a e na internet e as disputas que atravessam suas diferentes camadas; e a relação entre tecnologias digitais e as múltiplas desigualdades estruturais, como as de gênero, classe e raça, entre outras, considerando que os impactos dos processos de disputa de poder são agravados numa perspectiva interseccional. As contribuições de uma perspectiva não binária e de um chamado pela descolonização e por um posicionamento anticapitalista, diante desses cenários, são brevemente discutidas para situar não só resistências e contraposições a processos normativos, mas também os escapes que incluem a experimentação e a ativação do imaginário a partir de outras experiências e perspectivas.

No terceiro capítulo, há uma discussão sobre redes autônomas e comunitárias, reunindo princCpios e conceitos associados a esse campo, cuja emergência em diferentes paCses tem sido apontada como uma forma de atualização de resistência, de reapropriação tecnológica e de busca por autonomia, ainda que relativa, sobre os meios de comunicação e informação. Aqui, essas perspectivas são pensadas em uma outra camada a partir do encontro entre redes autônomas e comunitárias e infraestruturas feministas. Vale destacar que o tema das infraestruturas feministas

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não fazia parte inicialmente desta pesquisa. O projeto inicial passou por reformulações7 na medida

que se manteve aberto ao fluxo de ideias e noções que atravessaram o percurso de pesquisa, os diálogos e as orientações.

A partir dessas reformulações e de uma compreensão de que, muito mais que novas formas de comunicação, as TICs traziam novas dinâmicas de poder e reconfiguravam vários aspectos da organização econômica e social na contemporaneidade, a primeira ideia era pensar como as questões de gênero atravessavam as experiências de redes autônomas e comunitárias que conseguisse conhecer e acompanhar. Ao começar a pesquisa de campo, porém, ficou claro que, mais do que atravessar, já existia muito acúmulo ativista e teórico nessa frente, boa parte dele consolidado na discussão sobre as infraestruturas feministas. É também neste capCtulo do trabalho que apresento esse campo, reunindo algumas formulações do que seriam infraestruturas feministas, e trago uma primeira reflexão sobre seu encontro com as redes autônomas e comunitárias.

O capítulo 4 fecha o trabalho olhando mais especificamente para as diferenciações que emergem quando as perspectivas feministas são mobilizadas a partir do universo alcançado no percurso de pesquisa. Buscamos, assim, refletir sobre o que pode mudar quando as tecnologias, infraestruturas e redes são pensadas desde um compromisso de desnaturalizar e romper legados coloniais, androcêntricos e capitalistas. Aqui nos perguntamos, considerando que há uma vontade expressa em desmontar esses legados, que mudanças são propostas. O objetivo principal com esta indagação é olhar as tensões e diferenciações que emergem ‘para fora’ – ou seja, mobilizar mais reflexões sobre os impactos das perspectivas feministas no campo das infraestruturas e redes autônomas e comunitárias do que analisar dinâmicas internas de coletivos ou experiências especCficas. Isso implica que no decorrer da pesquisa nosso objetivo não foi captar as contradições e dinâmicas internas de grupos que atuam com infraestruturas feministas. Também é importante expressar desde o inCcio que o fato deste trabalho não voltar seu olhar para essas dinâmicas não quer dizer que elas não existam, nem significa olhar esses grupos com expectativa de pureza ou de forma romantizada, como retomaremos mais adiante.

Para encerrar, as considerações finais apontam alguns pontos importantes de reflexões que esta pesquisa alcançou ao indagar como esse encontro dialoga com questionamentos às disputas de poder que atravessam e são atravessadas por tecnologias digitais. Vale pontuar que essas

7 A proposta de pesquisa quando me inscrevi no Programa de Mestrado em Divulgação CientCfica e Cultural, em fevereiro de 2017, era estudar a comunicação digital de alguns grupos feministas no Brasil, considerando que boa parte dela acontecia em plataformas empresariais, como o Facebook e o Twitter. O recorte em redes autônomas e comunitárias só se tornou estrutural na pesquisa após o ingresso no programa e as primeiras orientações, quando tomei contato com uma literatura crCtica que indicou a necessidade de voltarmos nosso olhar para as infraestruturas e para as relações tecnopolCticas que se estabelecem não só na camada lógica, como também na camada fCsica das redes.

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considerações não são conclusões, nem encerram os processos com os quais a pesquisa dialogou, buscando deixar, assim, aberturas para futuros trabalhos e reflexões. Ou seja, mais do que produzir respostas fixas às inquietações que acompanharam o percurso de pesquisa, a intenção ao longo do trabalho foi a de olhar para desestabilizações que vem acontecendo e que podem auxiliar a atualizar formas de resistência, promover alianças e repensar nossas tecnologias e conexões a partir de contextos diversos e com um compromisso de justiça social.

Por fim, estão listadas ainda as referências desta pesquisa, incluindo as importantes produções não-hegemônicas acadêmicas e do campo ativista que pude conhecer e reunir neste percurso. Considero que talvez essa reunião seja uma contribuição deste trabalho para futuras pesquisas que não queiram recorrer aos mesmos autores e instituições majoritariamente citados, que acabam sendo percebidos como os interlocutores privilegiados para a produção de conhecimento (ainda em maioria masculinos, brancos, acadêmicos e do norte-ocidental) e contribuindo, ainda que não intencionalmente, para a invisibilidade de muitos outros saberes.

1.2. Rotas teórico-metodológicas, procedimentos, escolhas e vontades

As sCnteses e discussões abordadas ao longo deste trabalho surgem de dois procedimentos de pesquisa realizados em conjunto, mas que aqui apresento de forma separada para facilitar a sistematização: a pesquisa bibliográfica e a de campo.

Com a pesquisa bibliográfica busquei fazer um resgate teórico em dois grandes campos de estudos para relacioná-los ao tema das redes autônomas e comunitárias e às propostas do campo das infraestruturas feministas: os Estudos Feministas, mais especificamente os Estudos Feministas em Ciência e Tecnologia (EFCT) e os feminismos interseccional e negro, e os Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia (ESCT) de uma forma mais geral.

Os estudos feministas resgatados me permitiram mobilizar contribuições crCticas feministas que ajudam a visibilizar a combinação de múltiplas desigualdades e a compreender o legado de tradições androcêntricas e colonialistas que contaminam nossas narrativas, saberes, práticas e técnicas (ALONSO, 2007; CRENSHAW, 1989; COLLINS, 2007; HARAWAY, 1995; SARDENBERG, 2002; RIBEIRO, 2017; PISCITELLI, 2009). Já os ESCT oferecem fundamentos teóricos para pensar os movimentos de concentração da internet em diferentes camadas e processos hegemônicos em relação às redes digitais e suas infraestruturas na contemporaneidade (HARAWAY, 1995; SANTOS, 2003; STERLING, 2012; TOUPIN, 2015). A não neutralidade da ciência e tecnologia é um ponto comum entre os campos, assim como a afirmação da necessidade de resistências como um imperativo de não apagamento da heterogeneidade e da pluralidade de alternativas. Esse quadro de referências mais amplo foi complementado pela pesquisa bibliográfica

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também em bases de pesquisas brasileiras que reúnem produções acadêmicas recentes, buscando, assim, estabelecer um diálogo com pesquisadoras/es e com a produção atual de conhecimentos sobre os fenômenos que perpassam essa pesquisa (ARAUJO, 2018; NATANSOHN, 2013; PAZ, 2015; VICENTIN, 2016).

Quando aproximadas, as trajetórias epistêmicas mobilizadas contextualizam um cenário em que as TICs, e mais especificamente a internet, emergem: 1) como parte de um sistema androcêntrico e discriminatório; 2) que estão fortemente impactadas pela dinâmica de codificação do mundo para controle e acumulação privada em processos de reorganização capitalista; 3) que são permeadas por infraestruturas, protocolos e algoritmos que não são neutros nem transparentes; 4) que colocam novas dinâmicas de poder; 5) mas em que resistências, alternativas, contradições, rompimentos e continuidades coexistem. As sCnteses que elegemos da pesquisa bibliográfica para dialogar com o corpus desta pesquisa são retomadas de forma mais sistematizada no capCtulo 2 deste trabalho.

Vale registrar que, com a pesquisa bibliográfica, pude observar também que o estabelecimento de uma relação entre estes eixos teóricos ainda é incipiente nas pesquisas acadêmicas que se debruçam sobre as redes autônomas e comunitárias a partir dos anos 2000 – a discussão de gênero numa perspectiva interseccional começou a ganhar força nas referências cientCficas sobre redes autônomas e comunitárias mais recentemente e a partir, sobretudo, de produções feministas. A pesquisa de campo demonstra, por outro lado, que coletivos de mulheres e pessoas trans e não binárias historicamente têm se articulado para constituir redes analógicas e digitais de forma autônoma, independentemente de governos e de alternativas comerciais, e revelou valiosas fontes documentais nessa frente. Mais ainda, que seu envolvimento tem levado a tensões especCficas e a proposta de constituição de infraestruturas e tecnologias feministas como veremos nos capCtulos 3 e 4 deste trabalho. Ainda são poucas, porém, as sistematizações acadêmicas nessa frente, principalmente em lCngua portuguesa.

Antes de entrar na apresentação da pesquisa de campo, vale destacar que a perspectiva dos saberes localizados, formulada pela pesquisadora e bióloga estadunidense Donna Haraway, em diálogo com produções do feminismo negro e interseccional – nesta pesquisa sintetizados pelas contribuições da obra da filósofa brasileira Djamila Ribeiro (2017) e pela formulação do lugar de fala – foram, mais do que um marco teórico, um guia para os procedimentos de pesquisa. A preocupação aqui seria evitar a reprodução de práticas que avaliamos criticamente no conteúdo da pesquisa no próprio percurso de realizá-la, como a reprodução de esquemas hierarquizados ou universais que distorcessem a pluralidade que havia nas iniciativas que tive contato.

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Fazendo um rápido resgate de referências que voltarão a aparecer no decorrer do trabalho, a perspectiva dos saberes localizados propõe fugir do que a Haraway (1995, 2004) chamou de um “labirinto de dualismos”, que polariza e reduz a reflexão a categorias binárias preestabelecidas. A autora propõe olharmos para contextos especCficos, mantendo aberta a possibilidade “de redes de conexão, chamadas de solidariedade em polCtica e de conversas compartilhadas em epistemologia” (HARAWAY, 1995, p.23). Aponta ainda a necessidade de superarmos uma perspectiva que vê a ciência como um lugar de saber universal, em que pesquisadores observam ‘objetos’ para capturar verdades sobre eles e que, assim, são descritos, muitas vezes, como sem agência ou alijados da sua própria produção de conhecimento:

Saberes localizados requerem que o objeto do conhecimento seja visto como um ator e agente, não como uma tela, ou um terreno, ou um recurso, e, finalmente, nunca como um escravo do senhor que encerra a dialética apenas na sua agência e em sua autoridade de conhecimento "objetivo"(HARAWAY, 1995, p.36).

A perspectiva dos saberes localizados estabelece um diálogo crCtico com a filósofa feminista norte-americana Sandra Harding (2015) e com as teorias do ponto de vista feminista (Feminist Standpoint), que indagaram os limites das estruturas analCticas centrais de distintas teorias sociais. Ao propor que os grupos marginalizados são aqueles que melhor podem informar, a partir das experiências vividas, sobre as estruturas de dominação, as teorias do ponto de vista feminista trazem uma nova proposta sobre quais interlocutores podem produzir conhecimentos confiáveis. Nesse processo, realizam uma forte crCtica às ciências naturais e sociais, propondo a dissolução tanto da ideia de mulher universal e essencial, quanto do estatuto de verdade de análises que pressupõem que a natureza e a vida social podem ser capturadas como realmente são. A noção de categorias pré-concebidas que vão a campo para serem testadas, incluindo dicotomias como natureza/cultura e masculino/feminino, e as hierarquias em torno das quais a produção de conhecimento é organizada são, assim, questionadas por Harding (2015) e outras autoras desse campo, como Patricia Hill Collins (1990).

Essa perspectiva não só trouxe rupturas, como também estabeleceu um campo teórico em torno do qual foram estabelecidas crCticas e controvérsias. Entre essas, diferentes autoras apontaram o risco da teoria voltar-se para grupos e sujeitos vistos como ‘oprimidos’ com uma expectativa de pureza ou de colocar a responsabilidade de discutir as formas de dominação mais fortemente nos grupos marginalizados. Ao dialogar com esse legado, a ideia de localizar a produção de conhecimento e o interlocutor, reconhecendo que toda posição carrega privilégios e opressões, emerge como um caminho de pesquisa explorado por Haraway. Na chave dos saberes localizados,

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múltiplas perspectivas devem se complementar de forma não hierárquica e reconhecendo que não há uma posição privilegiada de acesso à verdade, nem mesmo há essa verdade única, no singular. A multiplicidade de conhecimentos e sua localização em diferentes contextos e o reconhecimento da parcialidade que toda perspectiva carrega, assim, são pontos de partida fundamentais.

Ao dialogar com o legado teórico de mulheres negras e trazer a perspectiva do lugar de fala, Djamila Ribeiro (2017) nos ajuda nesse percurso ao ressaltar a importância de localizarmos componentes que são compreendidos como a condição universal – por exemplo, e em especial, discutir raça e racismo a partir da branquitude, compreendendo que ser branco não é a condição universal. A autora resgata a contribuição de diversas teóricas do feminismo negro que há muito tempo denunciam como a imposição de uma aparência de universalidade, neutralidade e objetividade tem atuado como força de manutenção de discriminações, violações e hierarquias, forjando interlocutores que seriam mais legitimados socialmente a aferir verdades e produzir conhecimentos, por um lado, e criando lugares de silenciamento institucional para muitos outros:

Numa sociedade supremacista branca e patriarcal, mulheres brancas, mulheres negras, homens negros, pessoas transexuais, lésbicas, gays podem falar do mesmo modo que homens brancos cis heterossexuais? Existe o mesmo espaço e legitimidade? Quando existe algum espaço para falar, por exemplo, para uma travesti negra, é permitido que ela fale sobre Economia, AstrofCsica, ou só é permitido que fale sobre temas referentes ao fato de ser uma travesti negra? Saberes construCdos fora do espaço acadêmico são considerados saberes? (RIBEIRO, 2017, p. 79)

É importante pontuar algumas distinções que a filósofa traz para entender a diferença entre lugar de fala e representatividade, ou não compreender equivocadamente sua proposta na chave das visões identitárias ou como uma teoria pensada a partir do nCvel individual. Djamila Ribeiro resgata também a teoria do ponto de vista feminista, dialogando com a pesquisadora norte-americana PatrCcia Hill Collins, apontando que a intersecção entre gênero, raça, classe e sexualidade, de modo combinado e estrutural, impacta nas condições sociais, em que grupos compartilharão, de diferentes maneiras, experiências históricas e posições (desiguais) de acesso à cidadania:

Segundo Collins, a teoria do ponto de vista feminista precisa ser discutida a partir da localização dos grupos nas relações de poder. Seria preciso entender as categorias de raça, gênero, classe e sexualidade como elementos da estrutura social que emergem como dispositivos fundamentais que favorecem as desigualdades e criam grupos em vez de pensar essas categorias como descritivas da identidade aplicada aos indivCduos (RIBEIRO, 2017, p.63)

Ao propor localizar histórica e socialmente os grupos e as matrizes de desigualdades, o lugar de fala refuta, ao mesmo tempo, a existência de uma identidade e de perspectivas que se

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proponham universais ou que abordem as intersecções de forma dissociada. O lugar de fala localiza, assim, aquilo que não é universal – se diferenciando de reivindicações de representatividade. Ou seja, a representatividade é importante para romper as desigualdades de acesso e ter mais diversidade em espaços e lugares de poder – algo que aparece, por exemplo, nas iniciativas que orientam sua ação para que haja mais mulheres, mais pessoas negras ou reivindiquem mais vozes latino-americanas produzindo conhecimentos e tecnologias sobre redes e infraestruturas. Mas isso é diferente da proposta do lugar de fala, de romper com as generalizações e com a naturalização de uma condição como a mesma de todos os grupos e corpos – o que incita a tomada de consciência da não universalidade pelos grupos que ocupam os lugares de poder de modo privilegiado e desigual:

O fundamental é que indivCduos pertencentes ao grupo social privilegiado em termos de locus social consigam enxergar as hierarquias produzidas a partir desse lugar e como esse lugar impacta diretamente na constituição dos lugares de grupos subalternizados (RIBEIRO, 2017, p.88)

A pensadora indiana pós-colonial Gayatri C. Spivak (apud Ribeiro, 2017), ao apontar as dinâmicas de silenciamento impostas em territórios colonizados, traz para o primeiro plano as relações de poder em que algumas vozes terão muito mais dificuldade de serem ouvidas, realizando uma crCtica a intelectuais franceses que se debruçaram sobre essas dinâmicas, mas não desmontaram a ‘universalidade’ da sua própria condição. Para a pensadora indiana, as mulheres do seu paCs, por exemplo, estavam num lugar muito difCcil de subalternização. Ao mesmo tempo em que Djamila Ribeiro resgata essas contribuições, a autora contrapõe as crCticas formuladas pela pesquisadora e intelectual negra norte-americana Patricia Hill Collins e pela artista e pensadora portuguesa Grada Kilomba:

Tanto Patricia Hill Collins quanto Grada Kilomba consideram problemática essa afirmação de Spivak do silêncio do subalterno se esta for vista como uma declaração absoluta. Para as duas pensadoras, pensar esse lugar como impossCvel de transcender é legitimar a norma colonizadora, pois atribuiria poder absoluto ao discurso dominante branco e masculino. (RIBEIRO, 2017, p.76)

A colonização aparece, assim, como um projeto que, por um lado, autorizou certos sujeitos e narrativas – que, ao serem hegemônicos, se compreendem universais, naturalizam desigualdades, usufruem de privilégios, incluindo o acesso privilegiado a lugares de poder, e não exercitam a escuta. Por outro, estruturou uma lógica que prevê represálias – incluindo a violações e violências – para tentar calar e impor limites a quem discorda do discurso hegemônico, visibiliza privilégios e desigualdades e escapa às normas. A própria produção que Djamila Ribeiro reúne nessa obra mostra, porém, que o silenciamento total é impossCvel. O que nos falta quando ocupamos lugares

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hegemônicos, como o da branquitude, portanto, além da tomada de responsabilidade e da reflexão, é escuta.

A filósofa aponta a necessidade de não só reconhecermos a multiplicidade de conhecimentos e experiências, como a importância de “romper com um postulado de silêncio”. Destaca também que, mais do que discursos de resistência ou contra hegemônicos, as vozes silenciadas trazem outras possibilidades de existência, que muitas vezes são ignoradas nas narrativas que cedem a tentação de universalidade:

Ser contra hegemônica ainda é ter como norte aquilo que me impõe. Sim, esses discursos trazidos por essas autoras são contra hegemônicos no sentido de que visam desestabilizar a norma, mas igualmente são discursos potentes e construCdos a partir de outros referenciais e geografias; visam pensar outras possibilidades de existências para além das impostas pelo regime discursivo dominante. (RIBEIRO, 2017, p.92)

Nesse sentido, o lugar de fala frisa que discutir as discriminações estruturais não é algo a ser feito apenas pelos grupos discriminados – ou seja, pessoas brancas devem sim falar sobre racismo, mas não falar por, com ou sobre a experiência de mulheres negras, mas a partir da sua própria: discutir a branquitude e o seu lugar no racismo estrutural.

Levando essa reflexão para o campo acadêmico, vale resgatar a contribuição de Haraway ao também frisar a importância de modificarmos práticas epistêmicas e de pesquisa que estão atravessadas por estruturas de pensamentos tCpicas do colonialismo ocidental. A autora aponta, em especial, as generalizações estruturadas a partir de pares de oposição, como natureza/cultura, sexo/gênero, humano/máquina, que atravessaram distintas teorias sociais, incluindo uma parte significativa dos estudos de gênero e feministas:

A versão da distinção natureza/cultura no paradigma da identidade de gênero era parte de uma vasta reformulação liberal das ciências da vida e das ciências sociais no desmentido do pós-guerra, feito pelas elites governamentais e profissionais do ocidente, das exibições de racismo biológico de antes da Segunda Guerra. Essas reformulações deixaram de interrogar a história sócio-polCtica de categorias binárias tais como natureza/cultura, e também sexo/gênero, no discurso colonialista ocidental (HARAWAY, 2004, p.217).

Este trecho é particularmente importante para situar que neste trabalho compartilhamos esta perspectiva proposta por Donna Haraway e aquelas propostas por Djamila Ribeiro ao nos referirmos ao colonialismo – mobilizado aqui para visibilizar estruturas eurocêntricas que cruzaram distintas teorias sociais – numa lógica que reforça a invisibilização de múltiplas narrativas e a conivência com lugares de privilégio e desigualdades estruturais a partir da reivindicação do universal, do neutro ou da definição de pares de oposição descolados de contextos especCficos.

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Donna Haraway, por exemplo, faz sua reflexão como uma mulher que questiona teorias sociais hegemônicas, mas que é branca e está inserida em instituições acadêmicas do norte global, enquanto Djamila Ribeiro produz seus conhecimentos como uma intelectual negra num paCs marcado por uma história escravocrata e pelo racismo estrutural. Os lugares de fala que atravessam suas obras são muito distintos e, certamente, muito mais amplos e complexos do que essa exemplificação. Ao aproximar as duas obras, porém, as autoras apontam, a partir de diferentes lugares de fala, múltiplas armadilhas que as concepções universais de saberes, não localizados nem concretos, nos colocam, demonstrando que, muitas vezes, operam a incorporação e perpetuação de valores patriarcais, coloniais, racistas, sexistas e androcêntricos na Ciência e Tecnologia.

Considerando esse contexto, nesta pesquisa nossa rota de fuga dessa ‘tentação de universalidade’ foi guiada, assim, por crCticas formuladas por teóricas e ativistas de diferentes vertentes dos feminismos que, numa arena de tensões e posicionamentos plurais, ressaltam a necessidade de visibilizar as diferenças que a categoria “mulher”, no singular, apagava, ao mesmo tempo que ajudam a colocar em primeiro plano a combinação de múltiplas desigualdades estruturais que atravessam os corpos simultaneamente – como as de gênero, sexualidade, raça, classe e nacionalidade (COLLINS, 2017; CRENSHAW, 2002; PISCITELLI, 2009; RIBEIRO, 2017).

Assim, amparada nas diversas mulheres que abriram esses caminhos, procurei realizar esta pesquisa sem buscar categorias binárias e pares de oposição pré-estabelecidos, e livre também de uma pretensão de “imparcialidade”, de “neutralidade” da ciência ou da produção de verdades definitivas que permitisse: 1) a escuta e o diálogo com os saberes e práticas locais; 2) a abertura do olhar para situações múltiplas em que se estabelecem tensões, continuidades, resistências e negociações que escapam a generalizações; 3) o distanciamento de uma visão hierárquica entre academia-pesquisadores e sociedade-objeto; 4) a manutenção da pesquisa (e a escrita) aberta ao fluxo de eventos e ideias, e fugindo de verdades que não possam ser renegociadas; e 5) o exercCcio da reflexão sobre minha posição e práticas de modo recorrente.

Os impactos dessa busca se expressam também em algumas escolhas e esforços, nem sempre plenamente alcançados, mas que em alguma medida estão presentes neste trabalho. Buscando romper com a ideia de interlocutores privilegiados, os procedimentos de pesquisa adotados – a bibliográfica e de campo – foram pensados num prisma horizontal, mesclados em alguma medida em todos os capCtulos. As categorias que podem ser consideradas nativas, próprias da pesquisa de campo, importam tanto quanto os conceitos acadêmicos, e os textos da pesquisa documental e de entrevistas são tão relevantes quanto as bibliografias. Os conhecimentos são pensados na perspectiva de encontros (e das tensões e desestabilizações que surgem deles e que são aqui compreendidas como potências e não como contradições passCveis de serem estabilizadas). O

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texto não oculta a primeira pessoa, seja no singular ou plural, e não se pretende neutro – é importante expressar desde já meu interesse em olhar para as resistências e escapes acreditando que elas são necessárias e com o compromisso de fortalecer as iniciativas que buscam descolonizar nossas tecnologias e ciências.

Nesse sentido, esta pesquisa também se apoia no processo de pesquisa-ação. Ao defender que este método pode ser uma forma de potencializar o nosso aprendizado ao acompanhar experiências, Tripp (2005) resgata definições recentes de pesquisa-ação, como a de Elliott (1991, p. 69): “o estudo de uma situação social com vistas a melhorar a qualidade da ação dentro dela”8. Isso

não significa olhar para esses movimentos de maneira acrCtica ou com uma expectativa de pureza, mas, como definiu Donna Haraway (1995, p.15), buscando manter uma “relação crCtica, reflexiva em relação às nossas próprias e às práticas de dominação de outros e nas partes desiguais de privilégio e opressão que todas as posições contêm”.

Nesse sentido, é importante registrar que só a oportunidade de realizar um mestrado acadêmico já é sinal dos lugares de privilégio que também ocupo como uma mulher que é cis9,

branca, de classe média e com acesso à pós-graduação pública no Brasil. Esses privilégios são parte desta pesquisa, tanto quanto a vontade de avançar no questionamento aos legados colonialistas e androcêntricos na produção acadêmica. Nesse sentido, é importante explicitar que, embora use o tempo verbal e pronome pessoal do ‘nós’ em alguns momentos para marcar que não compreendo a pesquisa acadêmica como um processo individual e autoral, reafirmando que esse texto é um diálogo com muitas vozes e saberes, ele não é um sinônimo de ‘nós mulheres’, nem a pretensão de colocar no mesmo plano as diferentes vozes que atravessaram esse processo.

Também é importante registrar que a consciência dos privilégios, das ausências e dos riscos que acompanham os lugares de fala que me atravessam e que atravessam esta pesquisa demanda uma mudança de atitude que vai além de simplesmente declará-los neste texto final: requer manter a escuta, praticar a reflexão e a indagação constante, questionando ações e escolhas durante todo o processo. Claro que alcançar ruptura total com as assimetrias de poder que atravessam a realização desta pesquisa como um ‘resultado final' é impossCvel – o que expresso aqui não é a busca de pureza, mas um compromisso com a construção de processos de pesquisa a partir de outros

8 Considerando que essa pesquisa passa também por etapas caracterCsticas da pesquisa-ação, como as apontas por Tripp (2005) – a participação, o papel da reflexão, a necessidade de administração do conhecimento e a ética do processo – no decorrer da pesquisa, buscando contribuir com as práticas, passei a colaborar em iniciativas da MariaLab/Vedetas em São Paulo/SP.

9 Cis ou cisgênero são termos utilizados para se referir às pessoas que se identificam, em todos os aspectos, com o gênero atribuCdo ao nascer. Vale pontuar que neste trabalho sempre que nos referimos a mulheres, estamos considerando pessoas cis e trans.

(26)

paradigmas, que passam pela experimentação, por expressar escolhas e subjetividades, questionar assunções e assumir contradições e vulnerabilidades.

1.3. Uma visão de sobrevoo do percurso de pesquisa

Considerando os compromissos e vontades apresentados até aqui, para realizar a pesquisa

de campo e conhecer saberes produzidos para além do espaço acadêmico, logo após o ingresso no

Programa de Mestrado passei a participar de oficinas, encontros e eventos que contemplavam experimentações e debates tecnopolCticos e que aconteceram entre 2017 e 2018. Os eventos costumam ser momentos importantes de encontro ao reunir em um mesmo espaço fCsico muitos grupos que atuam em contextos distintos, sendo uma oportunidade de troca e interação entre diferentes perspectivas, incluindo perspectivas feministas diversas e não feministas.

Para construir as reflexões deste trabalho, destaco cinco eventos, alguns exclusivos para mulheres e pessoas trans e outros não, em que busquei mapear os debates públicos e apresentações em torno de redes autônomas e comunitárias e/ou infraestruturas feministas: o Laboratório de redes autônomas Vedetas; a Cryptorave, edições de 2017 e 2018; a Primavera Hacker; e o II Encontro Internacional Ciberfeminista. O fluxograma e a legenda que seguem buscam organizar os eventos, grupos que pude conhecer por meio deles e que abriram fontes de informação diversas para a pesquisa documental:

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Figura 1 – Fluxograma dos encontros e eventos acompanhados na pesquisa de campo e dos grupos/iniciativas presentes que atuavam com redes comunitárias e/ou infraestruturas

feministas Legenda: Eventos

Evento País e ano

Breve apresentação Site

Laboratório de redes autônomas Vedetas

Brasil, 2017

O Laboratório de redes autônomas foi um minicurso em dois módulos, um sobre infraestruturas de redes e outro sobre servidoras, realizado exclusivamente para mulheres e pessoas trans pelas coletivas10

Vedetas, Periféricas e a Kefir.

https://vedetas.org/ inscreva-se-no-mini- curso-de-redes-autonomas-feministas/ e https://vedetas.org/mini curso-servidora/

10 Usaremos ao longo do trabalho a conjugação feminina de algumas palavras, reproduzindo uma prática verificada na pesquisa de campo, em que foi comum me deparar com termos como coletiva, servidora e roteadora. Usar a conjugação feminina é um mecanismo adotado por mulheres envolvidas nas iniciativas acompanhadas que aponta a estrutura sexista da nossa linguagem e como ela, por vezes, pode transmitir a ideia de alguns assuntos são masculinos, como as tecnologias, como discutiremos mais adiante.

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Cryptorave Brasil, 2017 e 2018

A CryptoRave é um evento aberto, gratuito e autônomo, realizado com financiamento coletivo e chamado aberto de atividades para compor a programação. Ao longo de 36 horas, são realizadas diversas atividades sobre temas como segurança, criptografia, hacking, anonimato, privacidade e liberdade na rede. Acontece em São Paulo/SP desde 2014 e é encerrado com uma festa.

https://cryptorave.org/

Primavera Hacker Chile, 2017

A Primavera Hacker é um evento semelhante à CryptoRave em alguns aspectos: um encontro organizado de forma independente de empresas e do poder público com atividades variadas propostas pelo próprio público num evento aberto e gratuito. Traz uma perspectiva latino-americana. https://phacker.org/ II Encontro Internacional Ciberfeminista: Brasil,

2018 Aproveitando a realização do Fórum Social Mundial em Salvador/BA, algumas instituições propuseram a realização de um encontro para a formação de uma rede entre ciberfeministas e ciberfeministas antirracistas. A proposta era trocar experiências e “discutir formas de defesa do ativismo feminista (cis e trans) na internet, focando na privacidade e na segurança digital do ponto de vista de uma internet feminista”. Na véspera, porém, a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Pedro Gomes foram

assassinados no Rio de Janeiro/RJ e, apesar de reunir as participantes, a programação da atividade foi cancelada.

h ttps://wsf2018.org/es/ atividades/ii-encontro- ciberfeminista- internacional- descolonizando-internet/ Experiências Coletiva/o, organização, projeto

País Breve apresentação Site ou fontes de informação para saber

mais:

MariaLab e Vedetas

Brasil A MariaLab é uma coletiva

transhackerfeminista. Reúne de mulheres e pessoas trans interessadas em cultura hacker e conhecimentos que unem polCtica, gênero e suas tecnologias. Conta com um espaço fCsico que recebe atividades em São Paulo/SP. Vedetas é uma iniciativa de tecnologias feministas e segurança digital

https://marialab.org e

(29)

ligada à MariaLab.

Periféricas Brasil Periféricas é um coletivo transfeminista em Salvador/BA que desenvolve projetos sociais para promover a educação de hackers em grupos de pessoas que não têm acesso às tecnologias digitais. Uma das

desenvolvedoras, junto a Vedetas e Kefir, da Fuxico.

http://

www.perifericas.com.br

Fuxico Brasil É um dispositivo móvel feminista para troca de conteúdos por uma rede Wi-Fi digital entre pessoas que estão no mesmo território. As trocas acontecem fora da internet.

http://

redeautonomafeminista. org/fuxico/

Casa dos Meninos e Rede Base Comum

Brasil É uma associação cultural sem fins lucrativos que mantém a rede comunitária Rede Base Comum na zona sul de São Paulo/SP. A rede é gerida por mulheres.

http://

www.casadosmeninos.o rg.br

Cl4ndestinas Brasil É uma iniciativa de mulheres que operam uma servidora feminista e autônoma na América Latina.

https://clandestina.io

Coolab Brasil É uma cooperativa que trabalha com projetos

de conexão comunitária. http://www.coolab.orghttp://wiki.coolab.org e

Kéfir México É uma cooperativa feminista de tecnologias livres e infraestrutura digital para ativistas, defensores de direitos humanos, jornalistas, organizações sociais, coletivos, artistas.

https://kefir.red e

https://wiki.kefir.red

Rizhomática México É uma organização que busca aumentar o acesso às telecomunicações móveis no México a partir do estCmulo a construção e gestão autônoma de redes GSM (Sistema Global para Comunicações Móveis, na sigla em inglês).

https://

www.rhizoma tica.org e

https://wiki.rhizomatica .org

Mais do que fazer uma descrição ou análise em profundidade de cada uma dos grupos ou dos eventos em que estive, a proposta aqui foi montar uma visão de sobrevoo do percurso de pesquisa, para situar os eventos, cujos traços distintivos ajudaram a colocar em perspectiva discussões que serão retomadas ao longo deste trabalho.

Esses eventos foram momentos-chave para conhecer grupos, fontes documentais e estabelecer relações e afetos com pessoas diretamente envolvidas com redes autônomas e comunitárias e/ou infraestruturas feministas. Ao longo dos eventos pude acrescentar, assim, uma

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