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CAPÍTULO 4 – O que pode mudar quando uma rede sociotécnica é pensada na

4.3. Segurança e cuidado: não mexe comigo que eu não ando só

Eu já recebi muitos ataques, fCsicos inclusive, por estar invadindo a tecnologia. Eu sempre me emociono com esse negócio, porque essa é uma frase muito forte (...) E em momentos que depois eu passei ‘n’ tipos de violências, essas mesmas mulheres me perguntando ‘como é que você tá?’ E aC você fala assim: ‘ ah, não tô tão bem’. Ou então me encontrar na rua e sentir no meu semblante que eu tava diferente e me chamar pra um café, um sorvetinho e perguntar isso. E uma outra questão também é elas não só estarem nessa coisa de apoio, mas enfrentarem por mim em momentos que eu não tava conseguindo enfrentar as minhas próprias lutas. Quando eu não tinha forças fCsicas. e elas irem por mim, falarem por mim, lutarem por mim. Então, por isso que eu falo: não mexe comigo que eu não ando só (GEISA, entrevista 3, anexo 1).

Diante dos processos de vigilância e concentração de poder e das violências discriminatórias que atravessam a internet, em muitos espaços que estive o debate sobre redes autônomas e comunitárias passou a ser realizado em paralelo com a discussão sobre como fortalecer medidas de segurança. Nesse sentido, as tecnologias feministas lembram que as medidas de

97 A manifesta, entre outros pontos, afirma: “pautamos a interseccionalidade nas nossas ações, não toleramos machismo, homofobia, transfobia, misoginia, lesbofobia, xenofobia e racismo”. Está disponCvel da página da coletiva hacker feminista: <https://marialab.org/>. Acesso em: 10 julho 2018.

98 DisponCvel em: <https://we.riseup.net/cryptorave/politica-anti-assedio>. Acesso em: 99 DisponCvel em: <https://phacker.org/codigo_de_conducta.html>. Acesso em: 3 set. 2018.

segurança também não são universais e que a construção de espaços seguros passa por uma combinação de subjetividades, co-responsabilidades e cuidado mútuo.

A Guia Prática de Estratégias e Táticas para a Segurança Digital Feminista100, um dos

arquivos disponibilizados por padrão na Fuxico, desenvolvidas por mulheres ativistas aponta: Somos pessoas diferentes, estamos em contextos diferentes e as possibilidades de estarmos em uma situação de perigo, seja on-line ou não, são múltiplas. Por isto, antes de entrar na paranoia, sabendo de todas as possCveis vulnerabilidades que enfrentamos na nossa vida, é essencial analisarmos as ameaças que são especCficas do nosso contexto101.

Enquanto alguns grupos podem se preocupar, especialmente, com a vigilância de aparatos de repressão do governo, como feministas que lidam com a questão do aborto no Brasil; outros podem estar sob risco a partir do conflito de grandes interesses econômicos, como acontece com algumas comunidades impactadas por mineradoras, por exemplo. Outros grupos ainda podem estar sob risco de ataque de seus pares, como mulheres que sofrem violências na rede e fora dela de parceiros ou ex ou de pessoas de sua convivência que carregam valores misóginos, LGBTQI+fóbicos ou racistas, por exemplo. Os ataques podem ser direcionados ainda a propagar o discurso de ódio numa tentativa de promover a autocensura e silenciar vozes diversas. É preciso considerar, enfim, que mesmo num pequeno grupo respostas para perguntas como – o que faz você se sentir seguro ou inseguro – podem variar muitCssimo e que as medidas de segurança devem ser contextualizadas.

Tem um exemplo que eu dei, que eu falei assim ‘gente, não fala nada de Signal, porque eu tenho certeza que vai ter celular aqui que nem é GSM ainda. E vai ter no Windows Phone, vai ter gente que não vai conseguir colocar o Signal, porque eu tenho um equipamento, um dispositivo que vocês ficam falando aC, que eu não consigo me comunicar com vocês porque meu celular é antigo e eu não vou comprar outro porque eu não tenho dinheiro. E eu tenho certeza que vão ter outras pessoas nesse mesmo estilo aqui’. E dito e feito, a gente tava fazendo oficina e a pessoa tava lá sozinha, ela se excluiu daquele momento e aC você vai perguntar e ela fala: ‘meu celular é de pobre, meu celular é velho’. Sabe, a pessoa já fica até triste. Eu não acho interessante que a gente diga, eu também concordo que não se deve usar WhatsApp, Facebook, mas as pessoas precisam de informação e depois que elas vão decidir o que elas vão fazer com essa informação e como é que elas vão se comportar a partir daquele momento em que elas souberam o que é feito com as informações que ela deixa naquela rede. Mas, é uma decisão dela (GEISA, entrevista 3, anexo 1).

Com isso, a segurança não é pensada numa camada de ferramentas e ações individuais a serem acionadas no uso de determinadas tecnologias, mas atrelada a uma construção coletiva, que

100 A Guia Prática de Estratégias e Táticas para a Segurança Digital Feminista reúne informações sobre alguns casos de ataques sofridos por mulheres e traz exemplos de medidas de segurança que podem ser pensadas em cada caso. Ela é um dos conteúdos incorporados por padrão na biblioteca da Fuxico e na internet está disponCvel em:

http://feminismo.org.br/guia/guia-pratica-seguranca-cfemea.pdf.

passa pela prática do cuidado mútuo e pela construção e desconstrução do que é coletivamente considerado aceitável ou não aceitável. Também por um compromisso de compartilhamento de saberes que possam ajudar a informar decisões, considerando possibilidades e limites em contextos especCficos, sem acionar narrativas generalizadas sobre perigos inevitáveis que podem conduzir a paranoia, considerando que preservar o bem-estar das pessoas envolvidas numa experiência compartilhada é também uma medida de segurança, pensada de forma mais holCstica, e de autocuidado coletivo.

Quando a gente separa segurança e paranoia como dois conceitos, um conceito que é fCsico e patrimonial e outro conceito que é psicológico, é puramente da psique, da nossa relação com o ambiente, da relação inclusive com o próprio sentir medo, a gente separa esse lugar binário e convida as pessoas a entender qual que é o caminho – o terceiro, o quarto, o quinto caminho dentro desse espaço construCdo como binário, onde a nossa segurança está em jogo, mas ela também pertence a um lugar individual e coletivo, mas não privado. A gente sai desse contexto do público e privado hCbrido para entrar no conceito de pessoal, coletivo, institucional, multidimensional. E quando a gente repensa uma cultura anti- paranoia, a gente novamente volta interseccionar, né? A interseccionalizar esses corpos que, ao mesmo tempo que estão sob vigilância, precisam estar visCveis, né? Ao passo que a internet é um veCculo de comunicação, esses corpos comunicam e esses corpos não estão só em constante vigilância, estão em constante presença. E a ausência desses corpos acaba tornando, não só a paranoia maior, mas o estado de vigilância como um vencedor de uma guerra que só tem ou vencedor ou perdedor. Então, quando a gente desvincula a paranoia e começa a trabalhar entendimentos de cuidado com relação à segurança, a gente parte do pressuposto de que você não precisa estar invisCvel para estar segura (NANDA, entrevista 4, anexo 1).

Outro dispositivo acionado nesse sentido é a criação de espaços seguros – os encontros exclusivos para determinados grupos sociais, como só mulheres ou só de mulheres negras. Nas oficinas de redes das Vedetas, por exemplo, buscando criar um ambiente de fala seguro, homens cis não podem participar.

Quando consideramos que as universalizações que atravessam lugares de fala como a branquitude e a cis-heteronormatividade podem fomentar a sensação de que certos espaços não devem ser ocupados por mulheres, pessoas trans e negras, por exemplo, os espaços exclusivos acabam sendo extremamente importantes para, por alguns momentos, remover fisicamente algumas camadas de hierarquização. Eles, porém, não podem ser adotados ou olhados como uma prática isolada, sob o risco de serem percebidos equivocadamente como uma forma de segregação, quando se desenham como um esforço de prática de autocuidado e de condição de trânsito.

Para mim foi muito importante espaço seguro para aprendizagem. Foi muito importante e foi muito difCcil ter espaços seguros. Enfim, era sempre ‘mas vocês estão negando a gente de alguma coisa’ e essa incapacidade de ver que existe uma negação muito grande para tudo. Sei lá, quantas vezes eu já fui negada de jogar bola com meu irmão, com os meninos, porque eu era menina ou, enfim, de entrar numa rodinha ou de brincar de determinadas brincadeiras. E aC quando a gente fala, ‘não a gente quer fazer a nossa’, é tipo ‘ah, não, não

pode’. E eu acho que para a aprendizagem é bem importante, é bem importante mesmo (BRUNZ, entrevista 1, anexo 1).

Nas experiências acompanhadas, assim como a construção dos acordos e pactos, os espaços seguros, o acolhimento e a perspectiva de cuidado mútuo se mostraram bastante importantes para que determinados corpos, depois, voltassem para as experiências mais coletivas de modo fortalecido para atuar sobre as desigualdades que estão presentes nas relações que se estabelecem.

O primeiro ponto é que o espaço seguro não é só seguro, é um espaço de acolhimento. É um espaço onde você se sente a acolhida, se sente pertencente, sem nenhum julgamento público. O que não quer dizer que a gente acabe tendo nossos próprios julgamento, porque somos pessoas falhas e somos corpos em constante descolonização. Então, vai haver momentos em que isso passa por um crivo de um julgamento, de uma falsa ética, de uma moral religiosa em conflito, imputada. Mas, a capacidade de transpor o que é o julgamento pessoal para o não julgamento coletivo é essencial para criar esse processo de acolhimento. É nesses espaços que a gente consegue minimamente desenvolver um processo de acolhimento que seja horizontal. Uma outra concepção importante dos espaços seguros dentro das tecnologias feministas é entender e questionar constantemente o que é segurança. Primeiro, subjetivizar e entender o que é seguro para cada pessoa e depois construir acordos coletivos que sejam capazes de minimamente de incluir ou tentar não excluir pelo menos na medida do possCvel que essas pessoas estejam presentes nas discussões, nas decisões, na escuta (NANDA, entrevista 4, anexo 1).