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CAPÍTULO 2 – Internet, redes digitais, infraestrutura e disputas de poder

2.2. Tecnologias digitais e novas assimetrias de poder

Ao menos dois escândalos recentes levaram o debate sobre vigilância e concentração de poder na internet até as primeiras páginas dos jornais em muitos paCses e para além de cCrculos que já se debruçam sobre esse tema. A partir dos anos 2000, as revelações feitas por Edward Snowden em relação às práticas da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA, na sigla em inglês)19 colocaram em evidência a cooperação entre os aparatos de vigilância estatais e as grandes

empresas da internet. Mais recentemente, em março de 2018, as denúncias midiáticas colocaram um esquema de coleta e uso indevido de dados de milhões de usuários para influenciar comportamentos polCticos no centro do debate público. A empresa Cambridge Analytica20, envolvida em campanhas

polêmicas, como a eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos e o plebiscito sobre a saCda do Reino Unido do bloco europeu (Brexit), passou a ser investigada em um processo que levou o diretor executivo (CEO) do Facebook, Mark Zuckerberg, ao parlamento dos Estados Unidos para prestar esclarecimentos21.

No Brasil, o cenário de ataques que marcou a corrida eleitoral de 2018 gerou uma grande busca por mais informações sobre segurança digital, sobretudo por pessoas e grupos que foram percebidos como em maior risco, como comunicadores e pessoas LGBTQ+. A eleição de Jair

19 Sobre as revelações de Edward Snowden ver: GREENWALD, G. Sem lugar para se esconder. Rio de Janeiro: Sextante, 2014.

20 Link para matéria: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/03/19/O-uso-ilegal-de-dados-do-Facebook-pela- Cambridge-Analytica.-E-o-que-h%C3%A1-de-novo>. Acesso em: 1 out. 2018.

21 Os principais pontos do depoimento foram transcritos na cobertura em tempo real realizada pelo jornal The Guardian. DisponCvel em: <https://www.theguardian.com/technology/live/2018/apr/10/mark-zuckerberg-testimony- live-congress-facebook-cambridge-analytica>. Acesso em: 27 dez. 2018.

Bolsonaro trouxe ainda os questionamentos sobre a capacidade de processamento de dados para predição e influência de comportamentos (e escolhas polCticas) para as notCcias do cotidiano. Uma reunião entre um dos filhos do então candidato com Steve Bannon, ex-estrategista-chefe e criador da narrativa polarizada que elegeu Donald Trump nos Estados Unidos, gerou especulações sobre a aplicação de uma tática semelhante no Brasil22 e dos limites – éticos e segundo a legislação eleitoral

– do uso de WhatsApp23 na disputa e sobre os impactos da desinformação no processo.

Os escândalos midiáticos ajudam amplificar debates como a digitalização crescente da atividade humana e não humana em gigantescos bancos de dados; o controle desses dados por poucas empresas que concentram imenso poder; os usos e trocas monetárias que são feitos com os dados de forma nada transparente; a capacidade de influenciar comportamentos para gerar novas formas concentração de poder, lucro e acumulação; sua cooperação com aparatos governamentais e seu papel em disputas polCticas que parece estar, em alguma medida, associada a emergência de lideranças autoritárias em diferentes paCses24.

Outros aspectos desse fenômeno e como eles se conectam a esses debates, porém, ganharam menos visibilidade nos escândalos: o controle sobre as infraestruturas, sua opacidade no dia a dia de milhões de usuários da internet e os diferentes impactos que terão sobre os diversos contextos e grupos sociais. As tecnologias, muitas vezes, passam ilesas nos escândalos, sendo percebidas como algo neutro, cujo uso polCtico só acontece fora delas e pela agência de polCticos como Trump e Bolsonaro ou de presidentes de corporações como a Cambridge Analytica e o Facebook.

A partir das perspectivas que propõem crCticas que não recorram a oposições simples, os Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia passam a reposicionar os saberes em relação às TICs e à internet, considerando que as redes digitais não se tratam apenas de novas mCdias ou de ferramentas que só ganharão sentido polCtico em sua utilização, mas sim de construções que são por si só polCticas e permeadas por tensões. Diferentes vertentes da sociologia contemporânea problematizam a distinção entre ciência, tecnologia e polCtica na sociedade – rejeitando concepções como a de que

22 Em entrevista, Bannon declarou apoio a Jair Bolsonaro, mas negou participação direta na campanha. DisponCvel em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45989131>. Acesso em: 21 de setembro de 2018.

23 Em 18 de outubro, o jornal Folha de S. Paulo revelou que empresários impulsionaram disparos por WhatsApp contra o PT – tema que passou a ocupar as páginas de diferentes veCculos de mCdia. DisponCvel em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/empresarios-bancam-campanha-contra-o-pt-pelo-whatsapp.shtml>. Acesso em: 06 dez. 2018.

24 A operação deste esquema na América Latina também segue como uma caixa preta, embora o debate tenha se intensificado após o processo eleitoral brasileiro de 2018 e veCculos já venham noticiando, por exemplo, encontros entre Cambridge Analyticas com representantes de uma extrema direita que vêm se fortalecendo no paCs:

https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/08/politica/1539022069_401682.html

https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/12/08/O-que-a-Cambridge-Analytica-que-ajudou-a-eleger-Trump- quer-fazer-no-Brasil

tecnologia seria a aplicação da ciência ou esquemas que separavam a ação humana (polCtica) das descobertas cientCficas, artefatos e técnicas, que seriam apolCticos ou neutros (FEENBERG, 2010; HARAWAY, 1995; SANTOS, 2003; WINNER, 1986). Nesse sentido, o estudo sobre a digitalização e homogeneização do orgânico e inorgânico em bases de dados, cada vez maiores, ganhou novos contornos a partir de produções teóricas que se voltam para sua articulação como novas expressões de exercCcio do poder e da acumulação na contemporaneidade.

O sociólogo Laymert Garcia dos Santos (2003) trabalha com o conceito de ‘tecnociência’ para sintetizar a aliança que se consolida entre capital, ciência e tecnologia em nCvel planetário a partir da Segunda Guerra Mundial. A ‘virada cibernética’ – descrita pelo autor como o conjunto de mudanças no campo da ciência e da técnica que levaram a consagração da inovação tecnológica enquanto meio de hegemonia econômica e polCtica – permite e amplifica a abertura do mundo ao controle tecnocientCfico por meio da informação digital e/ou genética:

A informação enquanto diferença que faz a diferença reconfigura o trabalho, o conhecimento e a vida, enquanto a virada cibernética transforma o mundo num inesgotável banco de dados. Em toda parte, e sempre que possCvel, o capitalismo de ponta passa a interessar-se mais pelo controle dos processos do que dos produtos, mais pelas potências, virtualidades e performances do que pelas coisas mesmas (SANTOS, 2003, p. 17).

A virada cibernética inaugura, segundo o autor, um processo em que a aceleração tecnológica e a aceleração econômica do capitalismo global praticamente se fundem e criam, assim, condições para que novas formas de acumulação emerjam. Entre os muitos impactos dessa configuração, o pesquisador destaca que a informação (e as novas tecnologias de informação) passam a ter centralidade crescente em todos os setores da atividade humana – agora suscetCveis a codificação, digitalização e monetização. Por outro lado, aponta uma ameaça de extermCnio em relação às culturas, temporalidades e ritmos diversos que não são compatCveis com a aceleração imposta pela tecnociência.

Em sentido semelhante, Donna Haraway faz um chamado para que sejam visibilizados (e desmontados) os impactos polCticos perversos das tecnologias digitais na contemporaneidade, apontando a capacidade das ciências da comunicação e biológicas de promover “a tradução do mundo em termos de um problema de codificação, isto é, a busca de uma linguagem comum”, em que toda a “heterogeneidade pode ser submetida à desmontagem, à remontagem, ao investimento e à troca” (HARAWAY, 2009, p.64). A autora também aponta, assim, a existência de um risco de apagamento da heterogeneidade a partir desse movimento, denunciando que “uma grande massa de mulheres e homens pertencentes aos grupos étnicos, e especialmente as pessoas de cor”, são

confrontadas por tentativas de controle “por aparatos repressivos high-tech que vão do entretenimento à vigilância e ao extermCnio”.

A autora destaca que a ideia não é, com isso, criar um discurso determinista ou de aversão às tecnologias, nem relativista, mas sim compreender que o encontro entre cibernética e neoliberalismo e a aliança entre capital, ciência e tecnologias configuram novas formas de poder – o que demanda novas formas de análise e de ação polCtica para resistência. Ao propor uma renovação das análises, Haraway sinaliza ainda que as novas tecnologias biológicas e digitais reforçariam o esgotamento da distinção humano-máquina e, portanto, aguçam também o questionamento do que a autora (2004) chama de um “labirinto de dualismos”25 no pensamento sobre a ciência e tecnologia.

Mais recentemente, a professora da Harvard Business School e pesquisadora norte- americana Shoshana Zuboff (2015) se debruçou sobre a emergência de um novo modelo de negócios e de novas modalidades de monetização – explorados por gigantes como Google e Facebook e até mesmo por startups tecnológicas. A partir de uma análise de artigos do economista- chefe do Google, Hal Varian, Zuboff analisa o funcionamento deste novo modelo e como ele opera necessariamente em conexão com a computação, pela quantidade de dados extraCdos e analisados em tempo real para não apenas prever, como influenciar comportamentos.

Zuboff (2015) conceitua como “capitalismo de vigilância” a emergência de uma nova lógica de acumulação baseada na associação entre a informatização, a busca pela extração crescente de dados e no uso dos imensos volumes de dados extraCdos (big data) para conhecer, controlar e influenciar comportamentos. E aponta a necessidade de análises que se debrucem sobre esses processos:

Esta nova forma de capitalismo informacional objetiva prever e modificar o comportamento humano como meio de produzir receitas e controle de mercado. O capitalismo de vigilância foi se constituindo gradualmente durante a última década, incorporando novas relações sociais e polCticas que ainda não foram bem delineadas ou teorizadas (ZUBOFF, 2015, p. 75).

Diante da opacidade dessas tecnologias e dos processos que envolvem o uso dos dados de usuários, para a autora, nessa nova etapa há uma ruptura da noção de contrato por fatores como a enorme assimetria de poder entre as partes – o Google e um de seus usuários quando aceita os termos de serviço da plataforma, por exemplo: “o capitalismo de vigilância estabelece uma nova forma de poder em que o contrato e as regras legais são substituCdos pelas recompensas e punições de uma nova forma de mão invisCvel”, aponta Zuboff (2015, p. 82). Em outras palavras, essa

25 Segundo a autora, tais dualismos estão conectados a estruturas de dominação ocidentais e conduzem a polarização e redução da reflexão, sendo insuficientes para pensar como as novas tecnologias transformam as relações cotidianas no mundo atual.

expressão do capitalismo – que não substituiu, mas coexiste com outras formas de acumulação – é uma espécie de capitalismo não regido em que emerge uma nova forma de poder soberano.

Os usuários, nesse contexto, não são compreendidos apenas como a “matéria-prima” da extração de dados, como se tornam o foco de polCticas de controle – para lucro e para disputas de poder, o que parece ser uma perspectiva interessante quando olhamos para casos recentes que precisam ser analisados em maior profundidade, como o da Cambridge Analytica e das eleições de 2018 no Brasil. É importante lembrar ainda que, segundo a autora, nessa nova forma de acumulação, a democracia não é vista como um sistema que permite a prosperidade, mas como uma ameaça – o que é um elemento considerável quando pensamos não só sobre a acumulação que ora se estabelece, mas sobre os resultados polCticos institucionais que emergem de processos marcados pelo uso de grandes bases de dados digitais para influenciar escolhas.

A internet é decisiva nesse processo, já que permite que a mediação computacional alcance um estado de quase ubiquidade nas áreas cobertas por conexão, estando presente em muitas camadas e no cotidiano, das relações institucionais às esferas Cntimas da vida. Seu controle e expansão, assim, são vitais para essa nova lógica e para as disputas de poder que ela envolve.

Ao olhar para as formas de acumulação e poder que emergem associadas à internet, as pesquisas resgatadas até aqui ajudam a desenhar os contornos de um cenário em que os esforços do setor privado para ampliar globalmente a mediação computacional são notáveis e crescentes. São, também acompanhadas por um processo de concentração de poder sobre diferentes camadas da internet – a fCsica e a lógica, conforme resume o pesquisador Diego Vicentin (2017) ao descrever a importância das infraestruturas pelas quais o imenso volume de dados trafega:

Cedo ou tarde ficou claro que os princCpios polCticos da internet são desempenhados por sua arquitetura e modo de funcionamento, e que a maneira mais eficaz de fazer prevalecer tais ou quais princCpios polCticos e morais na rede passa por influenciar sua tomada de forma. A “infraestrutura” que dá suporte ao funcionamento da internet é caracterizada como o conjunto de meios materiais e lógicos que atualizam a transmissão, o armazenamento e o processamento do montante de dados produzidos pela digitalização da atividade humana e não humana. No entanto, a inteligibilidade da importância polCtica da técnica parece não surtir efeito, uma vez que o controle sobre as infraestruturas de comunicação e informação se exerce de modo cada vez mais concentrado e sob poder privado (VICENTIN, 2017, p. 2).

Aqui, mais uma vez, cabe fazer uma ressalva em relação as generalizações. Embora sejam importantes para compreender processos que estão acontecendo e se modificando na contemporaneidade, as novas dinâmicas que parecem se estabelecer em nCvel global também precisam ser situadas. O pesquisador brasileiro Rafael Evangelista (2017) aponta para o cuidado de não tomarmos como universais alguns conceitos que cruzam os trabalhos que se debruçam sobre

esse campo – como vigilância, privacidade, liberdade e igualdade – destacando as assimetrias entre aqueles que concentram e fazem uso das grandes bases de dados e da inteligência produzida a partir delas e aqueles que não têm o mesmo acesso ou serão vistos como ‘alvo’ e que serão impactados de diferentes formas pelas assimetrias que se colocam:

Quero lembrar que essas tecnologias e as práticas culturais em torno delas não funcionam e não afetam igualmente a todos, a todos os paCses, a todos os gêneros, a todas as etnias e a todas as classes. Embora o Big Data, por exemplo, seja uma tecnologia que pretenda a maior captura possCvel de informações sobre todos os sujeitos, objetos e processos de todos os lugares, ambicionando o conhecimento de tantas instâncias quanto for possCvel captar e procurando por uma generalização de propósito instrumental, as tecnologias do Big Data e os algoritmos que nela operam foram construCdos para objetivos especCficos, planejados por segmentos sociais determinados, e financiados por setores que tem suas expectativas de retorno para essas tecnologias, especialmente de retorno financeiro (EVANGELISTA, 2017, p.245).

É importante lembrar ainda que os impactos das novas formas de assimetria de poder são agravados numa perspectiva interseccional – o que tem sido o foco de diferentes pesquisas feministas. Alguns de seus aspectos na América Latina encontram-se descritos nos diversos artigos que compõem a obra Internet em Código Feminino (NATANSOHN, 2013), que analisam os novos dilemas que a internet traz para o feminismo, como as brechas de acesso das mulheres e outros coletivos à rede e à cultura digital, os discursos misóginos e a violência de gênero na web, entre outros.

Natansohn (2013) recupera o legado de teóricas feministas que ajudam a situar a brecha digital de gênero (CASTAÑO, 2008; ALONSO, 2007; WACJMAN, 2006), que “não se refere somente às dificuldades de acesso à rede, mas também, aos obstáculos que as mulheres enfrentam para apropriarem-se da cultura tecnológica”. Esse afastamento não acontece da mesma forma, inclusive, para todas as mulheres, sendo mais acentuados por uma combinação de variáveis apontadas por Alonso (2007) como constitutivas de uma fratura tecnológica de gênero, em que as discriminações de gênero, raça e classe impactam no domCnio do que a autora aponta como requisitos de acesso à rede: saber ler e escrever, ter alguma compreensão da lCngua inglesa, a mais utilizada na linguagem técnica, a disponibilidade de recursos econômicos para custear o acesso e obter dispositivos. De uma perspectiva latino-americana poderCamos complementar esses requisitos quando consideramos que o próprio tempo para a experimentação e para as interações sociais em torno de tecnologias digitais é, em muitas realidades, um privilégio.

A existência de requisitos que colocam essa fratura, porém, não impediu o avanço da mediação computacional e a incorporação crescente de tecnologias digitais de diferentes formas em

diferentes realidades26. Esse avanço, por outro lado, não equacionou as brechas de acesso. Vale

destacar que parte dessa incorporação é viabilizada pelo acesso via celular27 no Brasil e mais restrita

navegação em grandes plataformas28, a partir da quebra da neutralidade da rede29, colocada em

questão quando o acesso a alguns aplicativos, como o WhatsApp e o Facebook, não é descontado da franquia de dados dos usuários. Também pelo esforço de “intuitividade” que marca a narrativa de empresas digitais como YouTube e o Facebook, cujo design é orientado a facilitar o manuseio dessas aplicações até para crianças de poucos anos de idade. A opacidade dos processos e escolhas por trás da superfCcie – quem detém e como operam as infraestruturas, que tipo de decisões tomam os algoritmos e que sujeitos e interesses orientam essas decisões; que dados são coletados e que inteligência é produzida a partir deles; quem usa essa inteligência e para que – são questões que trouxeram inquietações nos eventos que pude acompanhar. Essas indagações reforçam que o aumento do acesso de pessoas à internet não significa o aumento da participação na cultura cibernética, nem necessariamente maior autonomia comunicacional.