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CAPÍTULO 2 – Internet, redes digitais, infraestrutura e disputas de poder

2.4. Uma proposta anticapitalista

Além do chamado pela descolonização tecnológica, o desejo por uma postura anticapitalista também é uma marca que caracteriza esse universo. Como vimos rapidamente até aqui, existe uma série de discussões na literatura mobilizada nesta pesquisa sobre os impactos do capitalismo na conformação de tecnologias digitais atualmente e vice-versa: as novas formas de acumulação que emergem do encontro entre cibernética, ciência de tecnologia (HARAWAY, 2009; SANTOS, 2003); a expansão de dinâmicas de monetização e acumulação capitalista baseadas na mediação computacional e na extração de dados para predição e influência de comportamentos (ZUBOFF, 2015); os processos de concentração de poder e oligopólios globais que se instauram em diferentes camadas internet (VICENTIN, 2017). Entre as muitas análises e abordagens possCveis a partir do olhar sobre diferentes dimensões da associação entre tecnologias digitais e capital, nesta pesquisa mobilizamos uma dimensão em que o capitalismo aparece também como um sistema organizativo da vida social que age como uma força de sufocamento do imaginário e de não ação – algo que limita experimentações e resistências. Nesse sentido, romper ou escapar dessas limitações é uma ação anticapitalista.

A contribuição de Isabelle Stengers e Philipe Pignarre (2011) vem no sentido de dialogar com essa dimensão. Em La sorcellerie capitaliste (A feitiçaria capitalista, em português), ao analisar as imbricações entre ciência moderna e capitalismo desde uma perspectiva polCtica, os autores apontam que é necessário que muitas pessoas desempenhem o capitalismo cotidianamente, ainda que esse sistema seja percebido como problemático sob muitas perspectivas. Essas pessoas, apontam os autores, estão ‘enfeitiçadas’, enxergando a continuidade daquele desempenho como a única alternativa possCvel.

Stengers e Pignarre chamam de ‘alternativas infernais’ o “conjunto de situações que parecem não deixar outra escolha senão a resignação”, por um lado, ou conduz, por outro lado, a realização de uma “denúncia sonora”, que é impotente na medida que conclui de forma genérica que “todo o ‘sistema’ que tem que ser destruCdo”, paralisando também a ação (PIGNARRE;

STENGERS, 2011, p.24. Tradução minha38). É justamente pela limitação das alternativas possCveis

e pela imposição de falsas escolhas que se constrói uma ideia coletiva de sacrifCcios necessários e de resignação ou de impotência diante da árdua tarefa de ‘derrubar todo sistema’, levando um grande número de pessoas, ainda que insatisfeitas, a desempenharem a reprodução do capitalismo. A noção de alternativas infernais, assim, carrega a hipótese de que o modo de funcionamento do capitalismo pressupõe um sufocamento da ação polCtica:

Onde quer que uma alternativa infernal seja constituCda, a polCtica dá lugar à submissão, e mesmo aqueles que resistem podem ficar presos, isto é, podem definir sua oposição nos termos fabricados pela alternativa. (PIGNARRE; STENGERS, 2011, p. 25. Tradução minha39)

Nesse sentido, ao refletir sobre esta obra, o pesquisador brasileiro Renato Sztutman define as alternativas infernais como uma forma de chantagem que suprime os possCveis e a polCtica, sintetizando:

A pretensa invencibilidade do capitalismo estaria refletida na sua capacidade de surpreender oponentes, de tirar lucro de qualquer oportunidade, tirar proveito de qualquer desatenção, de produzir, enfim, a impotência nas pessoas. Eis justamente o tema de um livro como La sorcellerie capitaliste: apostar em uma “polCtica do possCvel” – quiçá outro nome para a cosmopolCtica – contra a “polCtica do provável”, que não cessa de nos amortecer (SZTUTMAN, 2019, p.347).

Para Stengers e Pignarre, os regimes de invisibilidade e silenciamentos construCdos pela universalização e hierarquização promovida pelas ciências modernas são estruturantes nessa operação. Ao defender uma ideia de resistência baseada na reativação (reclaim) e no empoderamento (empowerment)40, os autores propõem reavivar aquilo que foi expelido e

considerado marginal pela razão moderna, retomando a ideia de bruxaria e a prática de bruxas

38 Na versão em inglês: “We will give the name 'infernal alternatives' to that set of situations that seem to leave no other choice than resignation or a slightly hollow sounding denunciation. (Such a denunciation is powerless because this situation offers no hold and the conclusion always comes back to the same thing: it is the whole ‘system’ that has to be destroyed” (PIGNARRE; STENGERS, , 2011, p. 24).

39 Na versão em inglês: “Wherever an infernal alternative is constituted, politics gives way to submission, and even those who resist may be trapped, that is to say, may define their opposition in the terms fabricated by the alternative” (PIGNARRE; STENGERS, 2011, p. 25).

40 Por meio do conceito de reclaim se estabelece um diálogo com os movimentos polCticos propostos pela escritora e ativista neopagã e feminista Starhawk. Já a noção de empowerment é associada ao suporte coletivo que permite a criação de partes capazes (e que não teriam se tornado capazes sem esse coletivo). Sobre isso, ver: SZTUTMAN, 2019.

ativistas feministas41 para recuperar e potencializar agenciamentos que escapam às alternativas

infernais:

A história das bruxas queimadas é, com efeito, a história do triunfo da modernidade cristã e do próprio capitalismo. Nomear a feitiçaria, a magia ou o animismo é, portanto, reativar – retomar ou simplesmente ativar – a feitiçaria, a magia ou o animismo. Não se trata de recuperar um passado ou se apropriar de algo inteiramente outro, mas sim de produzir agenciamentos, novas conexões (SZTUTMAN, 2019, p.344).

A reativação é um ato de resistência, que, como aponta Sztutman (2019), não é balizada pela reação ou denúncia, mas como um modo de afirmar uma existência e de criar novos possCveis ou, nas palavras do autor, de compreender “resistência como modo de recusar a captura pelo Estado e pelo regime de subjetividade capitalista, recusar a supressão de um ‘comum’” (SZTUTMAN, p.341, 2019).

Essa perspectiva teórica nos interessa para dialogar com o campo das infraestruturas feministas, como veremos mais adiante, para pensar o chamado anticapitalista e pela descolonização na perspectiva de libertar nossas tecnologias e conexões de alternativas infernais que fiquem limitadas às denúncias sonoras ou contraposições. É nesse sentido que, além de denunciar as brechas digitais de gênero42 e as novas expressões de violências discriminatórias na

internet, os feminismos nessa frente também têm proposto a valorização de saberes locais, o resgate da memória e da narrativa de mulheres, assim como têm recolocado uma proposta de imaginação e experimentação na ação polCtica. Também emergem aqui tensionamentos em relação aos processos de captura em relação as possibilidades de futuro que nos condicionam a reproduzir o presente, ainda que haja o desejo de transformá-lo.

41 Em uma dimensão diferente, a proposta de retomada da bruxaria como prática anticapitalista é proposta também pela historiadora feminista italiana Silvia Federici em o Calibã e a Bruxa – mulheres, corpo e acumulação primitiva (2017). A transição para o capitalismo na Europa, retoma a autora, foi marcada por um processo altamente violento, que incluiu a colonização dos continentes americano e africano e a escravidão de seus povos e o controle do corpo feminino, operacionalizado em grande parte pelo fenômeno da caça às bruxas no século XVIII. O emprego da violência foi a forma pela qual o novo sistema produtivo e social mudou a forma como os indivCduos se relacionavam com o mundo – desde seus próprios corpos, que deveriam agora se tonar máquinas disciplinadas para o trabalho e passCveis de exploração, até a forma como as pessoas se organizavam, impondo processos de individualização da vida, aceleração do tempo e hierarquias. Autora reforça que as resistências, porém, nunca deixaram de existir.

42 De acordo com Natansohn (2013) diferentes autoras (CASTAÑO, 2008; ALONSO, 2007; WACJMAN, 2006) têm se debruçado sobre a “brecha digital de gênero”, que se refere tanto as dificuldades e diferenças de acesso, quanto a barreiras “que as mulheres enfrentam para apropriarem-se da cultura tecnológica devido a hegemonia masculina nas áreas estratégicas de formação, pesquisa e no emprego das TIC’s”. Essa brecha, prossegue a autora, “engloba dimensões da vida que não podem ser entendidas unicamente através de métodos estatCsticos que medem presença e ausência por gênero, idade, classe social e demais indicadores sociais. Melhor dizendo, compreender essas brechas supõe conhecer, interpretar e entender como o gênero opera sobre a construção da ciência e da tecnologia e como as hierarquias da diferença de gênero afetam o desenho, o desenvolvimento, a difusão e a utilização das tecnologias (WACJMAN, 2006; KELLER, 1991), não só no nCvel dos sistemas de produção cientCfica e técnica, mas também na dimensão subjetiva dos indivCduos”.

Nesse sentido, o debate sobre redes autônomas e comunitárias ganha novo impulso, uma vez que extrapola o campo das soluções de conectividade para lugares e populações sem acesso à internet, e se liga a uma agenda crCtica que busca descolar infraestruturas e tecnologias digitais do androcentrismo, colonialismo e capitalismo. Ao se considerar que a instalação e manutenção de uma rede autônoma no território permite que o desenho e a gestão das infraestruturas seja feito localmente, de modo compartilhado e a partir de acordos que podem ser estabelecidos, verbalizados e visibilizados, e, quando necessário, repactuados, esse campo passa a ser compreendido também como alternativa para a experimentação e para a ativação polCtica de múltiplos lugares.