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CAPÍTULO 1 – Situando a pesquisa, a pesquisadora e os percursos

1.4. Quem matou Marielle e Anderson?

Marielle Franco, mulher, negra, mãe, defensora de direitos humanos nascida no complexo da Maré. Socióloga com mestrado em administração pública, vereadora no Rio de Janeiro/RJ, eleita em 2016 para o mandato 2017-2020 com 46.502 votos – a quinta mais bem votada na cidade.

No dia 14 de março de 2018 – o mês em que se celebra o Dia Internacional da Mulher – foi assassinada em um Rio de Janeiro que vivia a intervenção federal na segurança pública e o avanço da militarização e da violência de Estado que a vereadora tanto denunciava. Treze tiros atingiram o carro em que voltava da roda de conversa Mulheres Negras Movendo Estruturas, atingindo Marielle e também o motorista do veCculo Anderson Pedro Gomes de forma fatal. Até o fechamento deste trabalho, não havia informações consistentes sobre a motivação e todos os envolvidos no crime. A pergunta “quem matou Marielle e Anderson” permaneceu aberta até março de 2019, ou seja, durante praticamente todo o percurso de pesquisa. Com a prisão dos acusados de serem os executores do disparo14, em março de 2019, a questão foi atualizada e a pergunta “quem mandou matar e por que”

ainda permanece15.

Na manhã do dia 15 de março de 2018, seria realizado o II Encontro Internacional Ciberfeminista em Salvador/BA, com a expectativa de se formar uma rede nacional nessa frente. O encontro faria parte da pesquisa de campo – porém, não foi marcado por trocas sobre tecnologias feministas, mas sim por um grande luto. A atividade foi suspensa em consenso pelas pessoas presentes para que todas participassem de uma marcha em homenagem à memória de Marielle e Anderson e para marcar uma reivindicação coletiva por justiça. O assassinato de Marielle é emblemático em relação aos adiamentos e violências estruturais que atravessam nossas experiências de resistência e construção de redes na América Latina.

Os tiros em Marielle impactaram toda uma geração de mulheres, especialmente de mulheres negras, que se viam nela e que renovavam a esperança diante da sua presença em um espaço institucional de poder público. Silvana Bahia, Diretora de Programas do Olabi e

14 Em 12 de março de 2019, o policial militar reformado Ronnie Lessa e o ex-policial militar Elcio Vieira de Queiroz foram presos pela PolCcia Civil do Rio de Janeiro e denunciados pelo Ministério Público pelos crimes de homicCdio qualificado de Marielle e Anderson e por tentativa de homicCdio de Fernanda Chaves, assessora de Marielle. Mais informações disponCveis em <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47539123>. Acesso em: 19 abr. 2019. 15 O site que era do mandato da vereadora, após o assassinato, tem se dedicado a prestar homenagens e registrar a

memória de Marielle e também de cobrar a responsabilização dos autores do crime: https://www.mariellefranco.com.br

coordenadora do PretaLab, uma iniciativa focada em estimular o envolvimento de mulheres negras e indCgenas nas tecnologias, estava em Salvador para o encontro nesse 15 de março. Depois, ela definiria:

Marielle era uma de nós. Inspirava pela inteligência, coragem e sorriso. Era uma mulher negra, mãe, lésbica, socióloga, cria da Maré e muito mais. Leonina que contagiava com seu brilho e força. Por isso, os tiros não acertaram apenas ela. Bateu uma dor, uma desesperança coletiva. Ainda está doendo. Quem matou a Marielle e por quê são perguntas que não saem da cabeça. Para mulheres negras da minha geração e para as que vieram depois de mim o fato dela “ter chegado lá” na estrutura da polCtica institucional — e o jeito que ela fazia polCtica com afeto e coragem — representavam esperança não só de mover, mas de balançar as estruturas. Mas sabCamos (e agora tenho certeza) que ela não poderia ser única. Ficamos muito vulneráveis quando somos exemplares avulsos. Precisamos andar juntas para avançar nas conquistas16.

Outra frase viralizou na internet e nos atos que seguiram o assassinato de Marielle: “quiseram te enterrar, mas não sabiam que era semente”.

Um pequeno acréscimo pós eleições no Brasil

As violências estruturais e adiamentos perpassariam este trabalho muitas outras vezes no pequeno perCodo de 24 meses no Brasil. Sete meses depois do assassinato de Marielle, o paCs passou pelo processo eleitoral de 2018 que elegeu para a presidência Jair Bolsonaro – conhecido por uma trajetória, enquanto parlamentar, de declarações machistas, homofóbicas, racistas e de apologia a Ditadura Militar de 1964 e das torturas praticadas por esse regime.

Num ambiente de polarização, a corrida eleitoral foi marcada por sucessivos episódios de ameaças, ataques virtuais e fCsicos direcionados a pessoas que expressaram suas opções polCticas, jornalistas, comunicadores, ativistas, bem como a intensificação de violências discriminatórias, como contra mulheres, pessoas negras e LGBTQ+17.

16 DisponCvel em: <https://medium.com/@olabimakerspace/é-necessário-estarmos-juntas-para-seguir- dd2d3a41c61d>. Acesso em: 1 out. 2018.

17 Um levantamento realizado pela Agência Pública em parceria com a Open Knowledge Brasil revelou que houve pelo menos 70 ataques no inCcio de outubro de 2018 no paCs. DisponCvel em: <https://apublica.org/2018/10/apoiadores-de-bolsonaro-realizaram-pelo-menos-50-ataques-em-todo-o-pais/>. Acesso em: 19 mar. 2019.

Outro levantamento realizado pela Abraji registra mais de 130 casos de violência contra jornalistas em contexto polCtico-eleitoral DisponCvel em: <http://abraji.org.br/noticias/abraji-registra-mais-de-130-casos-de-violencia- contra-jornalistas-em-contexto-politico-eleitoral>. Acesso em: 19 mar. 2019.

Ataques virtuais, verbais e fCsicos se multiplicaram como parte de um mesmo fenômeno de violações, que chegou ao extremo de alguns homicCdios, como o de Moa do Katendê em Salvador (BA). Segundo informações jornalCsticas, o assassinato aconteceu no contexto de uma discussão polCtica, após a vCtima declarar ter votado no candidato Fernando Haddad no primeiro turno. DisponCvel em: <https://extra.globo.com/casos-de-policia/mestre- de-capoeira-morto-com-12-facadas-apos-dizer-que-votou-no-pt-em-salvador-23139302.html>. Acesso em: 19 mar. 2019.

Foi marcada ainda uma disputa em torno do que é o universal e o neutro – discussão central nesta pesquisa. A campanha de Jair Bolsonaro, como em outros momentos históricos de fortalecimento da extrema direita, construiu uma narrativa de combate às ideologias (acompanhadas de adjetivos como marxista, feminista, de gênero, petista, comunista) – que pressupõe que só uma posição é neutra, não ideológica e, portanto, legCtima. Esse tipo de narrativa tenta impor apenas sua condição como aceitável, correta e legCtima, deslocando todas as outras para o campo do que a própria narrativa define e constrói como ‘doutrinação ideológica’. A multiplicidade, a crCtica e a oposição são apresentadas em uma perspectiva de ameaça à normalidade e que devem, portanto, ser aniquiladas. A mobilização de narrativas que buscam legitimar um pensamento único e a intensificação da polarização também são traços marcantes.

O ataque narrativo que marcou a disputa eleitoral segue presente nos primeiros meses de governo e agora, desde dentro do poder institucional, é acompanhado pelo anúncio de cortes em infraestruturas, recursos e polCticas públicas que de forma muito material impõem dificuldades a tudo que está fora do espectro polCtico do mandato. Entre muitos campos que passam por diversos temas como as polCticas ambientais, educacionais, exteriores, para as mulheres e raciais, trago exemplos que dialogam mais diretamente com o contexto desta pesquisa: os cortes de verbas de pesquisa, ensino e extensão em universidades e no campo da educação, como um todo, a desqualificação das ciências humanas, de ativismos e organizações da sociedade civil e, como em outros perCodos históricos, tentativas de controle do papel feminino18 num mandato que, de forma

emblemática, apagou a palavra gênero da Secretaria Nacional de PolCticas para Mulheres e filiou a pasta ao Ministério da Mulher, da FamClia e dos Direitos Humanos. O presidente e as forças que apoiaram sua eleição disputam, assim, em nCvel nacional, a régua do universal e do neutro, ao tentar silenciar dissidências e negar múltiplas formas de existir. Também intensificam e legitimam os

18 A historiadora feminista norte-americana Joan Scott recupera a importância do indivCduo e da subjetividade para apontar os limites de análises históricas que buscam compor uma causalidade geral e universal da ordem social. Para Scott, é imprescindCvel substituir a noção de que o poder social é unificado, coerente e centralizado por algo próximo ao conceito foucaultiano de poder, entendido como constelações dispersas de relações desiguais constituCdas pelo discurso nos “campos de forças”. Ao propor um novo olhar sobre o fazer histórico, a historiadora ressalta que a ligação entre os regimes autoritários e o controle das mulheres tem sido bem observada mas não foi estudada a fundo: “num momento crCtico para a hegemonia jacobina durante a Revolução Francesa, na hora em que Stalin tomou o controle da autoridade, na época da operacionalização da polCtica nazista na Alemanha ou do triunfo aiatolá Khomeiny no Irã, em todas essas circunstâncias, os dirigentes que se afirmavam, legitimavam a dominação, a força, a autoridade central e o poder soberano identificando-os ao masculino (os inimigos, os “outsiders”, os subversivos e a fraqueza eram identificados ao feminino), e traduziram literalmente esse código em leis que colocam as mulheres no seu lugar “proibindo sua participação na vida polCtica, tornando o aborto ilegal, proibindo o trabalho assalariado das mães, impondo códigos de vestuário às mulheres. Essas ações e a sua programação tem pouco sentido em si mesmas. Na maioria dos casos, o estado não tinha nada de imediato ou nada material a ganhar com o controle das mulheres. Essas ações só podem adquirir um sentido se elas são integradas a uma análise da construção e da consolidação de um poder” (SCOTT, 1989).

processos que vulnerabilizam vidas e corpos, que estão suscetCveis a preconceitos, discriminações, violências e explorações em larga escala.

Trazer as informações sobre o contexto nacional que atravessa esta pesquisa marca uma questão que deve atravessar a produção de pesquisa hoje em dia, em especial na área de humanidades. Particularmente, com relação ao tema deste trabalho, essa rápida contextualização auxilia a compreender não só os desafios enfrentados no Brasil e na América Latina em relação ao campo de pesquisa feminista, mas que a experimentação e construção de redes autônomas e comunitárias vão muito além de novos usos para hardwares, softwares e soluções de conectividade. Passam por adiamentos, desejos não concretizados, discriminações e violências que são históricas e estruturais e, muitas vezes, pela imposição da necessidade de sobrevivência sobre outras articulações e potências possCveis – como sintetiza outra frase bastante repetida no Brasil no final de 2018: “resistir para existir”.