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CAPÍTULO 2 – Internet, redes digitais, infraestrutura e disputas de poder

2.3. A internet foi colonizada?

Diante desse cenário mais amplo, a proposta de universalização do acesso à internet e as apostas na inclusão digital passam a ser problematizadas. Nos eventos que pude frequentar ao realizar a pesquisa de campo, a expectativa de descentralização e horizontalidade que esteve associada à internet praticamente já não ressoava. Por outro lado, havia intensos debates sobre os monopólios e oligopólios que concentram poder em relação às diferentes camadas da rede em nCvel mundial. Os nomes das cinco grandes empresas que capturam a navegação de uma grande quantidade de usuários no mundo todo e dominam o mercado de dados digital – as GAFAM, como são conhecidas pelo acrônimo de seus nomes: Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft – eram amplamente citados.

26 No Brasil, segundo a mais recente Pesquisa Sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nos Domicílios Brasileiros, havia 42,1 milhões de domicClios com acesso à internet em 2017, ou seja, cerca de 61% do total, um aumento de sete pontos percentuais em relação ao ano anterior. Apesar do crescimento, as desigualdades regionais e socioeconômicas se mantinham, “com maiores percentuais de domicClios conectados em áreas urbanas (65%) e nas classes A (99%) e B (93%), frente a percentuais ainda reduzidos entre domicClios de áreas rurais (34%) e classes DE (30%)”. Fonte: TIC DomicClios 2017. DisponCvel em: <https://cetic.br/media/docs/publicacoes/2/tic_dom_2017_livro_eletronico.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2019. 27 A pesquisa aponta ainda que o número de usuários de Internet no Brasil representa 67% da população com dez anos

ou mais, atingindo 120,7 milhões de usuários, sendo que 96% usou a internet pelo telefone celular e quase a metade (49%) acessaram a rede apenas por meio desse dispositivo.

28 Em relação às atividades, a pesquisa TIC DomicClios 2017 indica que os usuários de Internet brasileiros seguiram utilizando a internet principalmente para realizar atividades de comunicação, com o uso de serviços de mensagens (90%) e redes sociais (77%). Além disso, também foi frequente a realização de atividades culturais na rede, como assistir a vCdeos e ouvir músicas.

29 Neutralidade de rede é um princCpio de desenho e regulação para a internet que propõe que o tráfego de todos os conteúdos, serviços e aplicações aconteça igualmente e sem discriminações. Mais informações disponCveis em <http://www.timwu.org/network_neutrality.html>. Acesso em: 19 mai. 2019.

A questão do acesso à internet passa a ser acompanhada de discussões sobre vigilância, monetização dos dados de usuários, produção de inteligência a partir dos dados para controle e para influenciar comportamos, a relação desse processo com o fortalecimento de forças polCticas anti- democráticas e sobre medidas de segurança digital para estar nessa rede. Crescem também os debates sobre a necessidade de autonomia também na camada das infraestruturas.

Nas formulações do cyberpunk norte-americano Bruce Sterling (apud Vicentin, 2016), a concentração que as GAFAM exercem na camada de aplicações de internet é definida como “five stacks”, espécies de pilhas que estabelecem uma dinâmica em que cada empresa busca que seus ambientes privados se tornem sinônimo de internet para um número cada vez mais usuários, capturando sua navegação:

Em 2012, o cyberpunk Bruce Sterling declarou que já́ não faz mais sentido falar de internet, porque, quase sempre, quando dizemos “internet” estamos na verdade nos referindo ao que ele chama de “five stacks” o grupo formado por Facebook, Google, Microsoft, Apple e Amazon. Cada stack (pilha, torre armazém) é definido como um “império de mCdia social verticalmente integrado” cuja principal função é tirar os usuários da internet e trazê-los para dentro de sua própria “pilha” sem que esses últimos sequer percebam (VICENTIN, 2016, p.3).

O pesquisador brasileiro lembra ainda que, além da navegação, no campo da conexão a concentração também é grande: poucas grandes empresas de telecomunicações construCam oligopólios como provedoras de internet mundialmente. Segundo Vicentin (2016), essas empresas, apoiadas na convergência entre redes sem fio e celulares (wireless-mobile) e no avanço da banda larga móvel, se apropriaram do espectro eletromagnético para monetizá-lo ao longo das últimas décadas:

Com a onda de privatizações que varreu o setor nas duas últimas décadas do século XX, e a série de fusões e aquisições que tomou conta do mercado internacional desde então, hoje essas empresas se configuram como enormes conglomerados transnacionais que concentram em si uma série de serviços, como: telefonia (fixa e móvel), Internet banda larga (fixa e móvel), TV a cabo, TV por satélite, e outros tantos (VICENTIN, 2017, p. 4).

Vale lembrar que na camada fCsica, a internet comercializada pelas empresas de telecomunicação necessita de uma infraestrutura global para trafegar, algo que é operacionalizado por uma rede de cabos submarinos que também estão carregados de escolhas polCticas e assimetrias de poder. Os mapas do projeto Submarine Cable Map30 apareceram em alguns dos eventos

acompanhados e são reveladores em relação a algumas dessas assimetrias:

Figura 2 - Mapa do Submarine Cable Map31

Quando consideramos que praticamente todos os cabos submarinos mundiais passam pelos Estados Unidos e Europa, enquanto outras áreas têm poucos pontos de conexão, já fica evidente uma assimetria de poder entre paCses e mesmo entre o norte e o sul global32. Ao operar por uma

complexa rede de cabos submarinos, é possCvel imaginar ainda que a infraestrutura da internet exige investimentos consideráveis e acaba sendo desenvolvida por grupos que já concentram relevante poder econômico. O projeto Submarine Cable Map informa ainda a propriedade de cada um dos cabos33, lembrando que são operados por consórcios entre empresas multinacionais – fica evidente

que há distâncias consideráveis entre os interesses e a realidade vivida por quem define e controla essa infraestrutura e as muitas comunidades que serão atravessadas por elas.

31 O The Submarine Cable Map é um recurso gratuito que mapeia os cabos submarinos existentes, atualizado regularmente da TeleGeography. DisponCvel em: <https://www.submarinecablemap.com>. Acesso em: 20 jan. 2019.

32 Trabalhos como o livro The Undersea Network (2015), de Nicole Starosielski, e o artigo The Seven Companies That Really Own the Internet (2015), de Yudhanjaya Wijeratne, se debruçam sobre a materialidade destas redes de cabos, do seu carácter proprietário e discutem algumas das assimetrias que elas carregam. Wijeratne chega a definir a internet como “uma coleção de redes privadas conectadas umas às outras”, apesar de ser muitas vezes compreendida como um “corpo único e abstrato”.

33 De acordo com o projeto The Submarine Cable Map, no inCcio de 2019, havia aproximadamente 378 cabos submarinos em serviço em todo o mundo. O projeto informa ainda que, tradicionalmente, a propriedade dos cabos tem sido de consórcios e empresas privadas de telecomunicação, havendo uma mudança recente, já que provedores de conteúdo, como Google, Facebook, Microsoft e Amazon, tem emergido como grandes investidores em novos cabos. DisponCvel em: <https://www2.telegeography.com/submarine-cable-faqs-frequently-asked-questions>. Acesso em: 17 jul. 2019.

Essa concentração de poder em diferentes camadas – fCsica e lógica – tem feito o termo ‘colonizada’ aparecer associado à internet em boa parte dos eventos e falas alcançados na pesquisa de campo, como na Primavera Hacker 2017, realizada em Santiago (Chile) em dezembro de 2017, e no II Encontro Internacional Ciberfeminista: descolonizando a internet, que aconteceria em Salvador (Brasil), em março de 2018.

A Primavera Hacker é um evento semelhante à CryptoRave em alguns aspectos: é um encontro organizado de forma independente de empresas e do poder público com atividades variadas propostas pelo próprio público num evento aberto e gratuito. Não há atividades especificamente sobre redes autônomas e comunitárias na programação da edição que pude acompanhar em Santiago, mas há atividades que discutem feminismo, gênero e tecnologia e outras que debatem infraestruturas e redes. Chama atenção que, no encontro entre diferentes realidades latino-americanas, há um chamado por ações não coloniais e anticapitalistas. O convite para a quinta edição afirma:

Devemos questionar e discutir a tecnologia que usamos da América Latina e da periferia para entender até que ponto o colonialismo se expandiu por meio das tecnologias digitais e como podemos desenvolver autonomia sobre nosso território. A quinta versão da Primavera Hacker é um convite para que organizações, coletivos e pessoas do continente participem do esforço conjunto para realizar este evento34.

Este chamado aparece também no encontro que seria realizado em Salvador. Aproveitando a realização do Fórum Social Mundial (FSM) em Salvador, algumas instituições35 propuseram a

realização do II Encontro Internacional Ciberfeminista: descolonizando a internet para a formação de uma rede entre ciberfeministas e ciberfeministas antirracistas. A proposta do segundo encontro era trocar experiências, mas no dia a programação da atividade foi cancelada em consenso entre todas as presentes, que seguiram juntas para uma marcha em homenagem à Marielle e Anderson, descrita anteriormente no CapCtulo 1, e em protesto a sua execução, que mobilizou a maior parte dos participantes do FSM.

Ainda assim, o evento que não aconteceu traz informações importantes sobre adiamentos e violências que nos atravessam e que devem ser consideradas nas nossas reflexões. A articulação prévia ao encontro acabou gerando também um documento de princCpios para a descolonização da

34 DisponCvel em: <https://phacker.org/>. Acesso em: 3 set. 2018.

35 A atividade foi chamada pela Associação Cultural e ArtCstica de Santiago do Iguape, Cachoeira/BA; Blogueiras Negras; PretaLab; InternetLab; Meninas Digitais-Regional Bahia; Escola de App; Intervozes; Barão de Itararé; Grupo de Pesquisa em PolCticas e Economia da Comunicação e da Informação (PEIC/ECO/UFRJ); Centro de Comunicação, Democracia e Cidadania (CCDC/FACOM/UFBA); e do Grupo de Pesquisa em Gênero, Tecnologias Digitais e Cultura (GIG@/FACOM/UFBA).

internet36, que foi uma fonte documental importante para as discussões deste trabalho e que prevê

entre seus 16 pontos:

[...] alimentamos a utopia de que outra internet é possCvel: anticapitalista, autônoma, não colonizada pelo comércio, pelo capital ou pelo estado; sustentada pela colaboração e gerenciada com autonomia, pela cultura do compartilhamento e do código aberto. Pela desgooglização e descolonização de nossa vida digital.

Os dois eventos acompanhados na pesquisa de campo demonstram que diferentes motivações parecem emergir para concluir que a internet foi colonizada. Por um lado, o termo apareceu bastante associado a debates sobre a concentração de poder por grandes empresas do norte global – ao se considerar que tanto as GAFAM quanto as teles são majoritariamente empresas multinacionais, o termo também apareceu como uma forma de se perceber a internet como uma nova fronteira em que multinacionais incidem sobre importantes decisões que atravessam territórios, incluindo paCses latino-americanos. É ainda uma forma de apontar o quão distante uma infraestrutura complexa de cabos submarinos, big data e algoritmos opacos pode estar de ideais e possibilidades de autonomia comunicacional via internet.

O cenário sinaliza que esse é um território que passa a ser controlado prioritariamente por uma cooperação entre Estados e empresas, ressaltando que a exploração econômica e produtiva que se estabelece, como em outros setores, também é baseada na exploração desmesurada de recursos “naturais”, minérios, e em processos de exploração de populações. A medida em que a aliança entre ciência, tecnologia e capital fica mais evidente, mais a internet é associada a novas formas da reorganização global capitalista e, ao operar desde interesses externos em territórios latino- americanos, se conecta a uma perspectiva colonial. O chamado pela descolonização e por uma agenda anticapitalista cruza, nesse sentido, diferentes eventos e documentos da pesquisa.

Assim como nesses eventos, no campo acadêmico também se estabelecem muitas discussões teóricas em torno do colonialismo nas atualizações dos arranjos capitalistas em relação às tecnologias digitais. Neste trabalho, o objetivo não é entrar nessas discussões. A proposta, a partir de perspectivas feministas, é compreender o colonialismo numa camada semelhante a que emerge nas crCticas de Donna Haraway (1995, 2004) e Djamila Ribeiro (2017) em relação às práticas epistemológicas e universalizações. Também na documentação sobre as infraestruturas feministas, o chamado pela descolonização, muitas vezes, é pensado numa perspectiva de desnaturalizar concepções que se cristalizaram e de valorizar saberes relegados, sob óticas normativas, à condição de marginal, ou de não ciência e tecnologia.

36 DisponCvel em: <http://gigaufba.net/ii-encontro-internacional-ciberfeminista-produz-principios-para-a- descolonizacao-da-internet/>. Acesso em: 3 set. 2018.

Os desafios que este cenário coloca para as mulheres, assim, vão muito além de uma reivindicação de acesso e passam por uma demanda pelo reconhecimento da diversidade de saberes e tecnologias e pelo não apagamento das diferenças. Também pela valorização de tecnologias e infraestruturas feministas, transbordando conceitos e práticas dos muitos feminismos para o debate sobre redes digitais e “propondo novas formas de politizar o debate sobre tecnologia e seus usos”37,

como discutiremos mais adiante.