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A FUNÇÃO DA ALTERIDADE EM FACE DO DESAMPARO NO PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO SUBJETIVA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Instituto de Psicologia

Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica

A FUNÇÃO DA ALTERIDADE EM FACE DO DESAMPARO

NO PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO SUBJETIVA

NATÁLIA DE TONI GUIMARÃES DOS SANTOS

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A FUNÇÃO DA ALTERIDADE EM FACE DO DESAMPARO NO PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO SUBJETIVA

NATÁLIA DE TONI GUIMARÃES DOS SANTOS

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica.

Orientadora: Regina Herzog de Oliveira Co-orientadora: Maria Isabel de Andrade Fortes

Rio de Janeiro Fevereiro/2012

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A FUNÇÃO DA ALTERIDADE EM FACE DO DESAMPARO NO PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO SUBJETIVA

Natália De Toni Guimarães dos Santos Orientadora: Regina Herzog de Oliveira Co-orientadora: Maria Isabel de Andrade Fortes

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica.

Aprovada em:

______________________________________ Profa. Dra. Maria Isabel de Andrade Fortes (UFRJ)

______________________________________

Profa. Dra. Silvia Maria AbuJamra Zornig (PUC-RIO)

______________________________________ Prof. Dr. Joel Birman (UFRJ)

Rio de Janeiro Fevereiro/2012

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Santos, Natália De Toni Guimarães dos

A função da alteridade em face do desamparo no processo de constituição subjetiva.

Natália De Toni Guimarães dos Santos. Rio de Janeiro: UFRJ/IP, 2012

113 f.; 29,7 cm.

Orientadora: Regina Herzog de Oliveira

Co-orientadora: Maria Isabel de Andrade Fortes

Dissertação (Mestrado) – UFRJ/IP/Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, 2012.

Referências Bibliográficas: f. 109-113.

1. Desamparo. 2. Alteridade. 3. Constituição subjetiva. 4. Psicanálise. 5. Dissertação (Mestrado). I. Fortes, Maria Isabel Andrade. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Instituto de Psicologia/ Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica. III. Título

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DEDICATÓRIA

A todos aqueles que, de coração, desejam dedicar-se à criação de um novo ser humano.

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AGRADECIMENTOS

A Isabel Fortes, pelo prazer de usufruir de sua orientação cuidadosa e tranquila, A Joel Birman e Silvia Zornig, pelas primorosas colaborações ao longo desta jornada, A todos os professores e funcionários da UFRJ que deixaram sua contribuição. Agradeço a meus colegas, especialmente a Pétria Fonseca, pela parceria e amizade, A Leandro Salgueirinho, pela valiosa revisão.

Agradeço a todas as forças que me acompanharam na execução deste trabalho: À força da Natureza, que me conduz na Sua imensa sabedoria;

À força de meus pais, sempre presente nos momentos em que dela preciso; À força do carinho de minhas irmãs, familiares e amigos que me trazem vigor; À força de meu marido, meu companheiro, pelo amor que me alimenta.

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RESUMO

A FUNÇÃO DA ALTERIDADE EM FACE DO DESAMPARO NO PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO SUBJETIVA

Natália De Toni Guimarães dos Santos Orientadora: Regina Herzog de Oliveira Co-orientadora: Maria Isabel de Andrade Fortes

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Teoria Pasicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica.

A espécie humana é marcada por uma precariedade biológica que impõe uma abertura à dimensão da alteridade como meio de sobrevivência e subjetivação. O recém-nascido, por causa de sua imaturidade motora e psíquica, é incapaz de satisfazer por si só as suas necessidades vitais de sobrevivência. Em contrapartida, surge o desamparo psíquico e a dependência do outro, os quais se instauram no psiquismo como condição estruturante do próprio sujeito. Debruçar-nos-emos sobre esse estado característico do início da vida, que lança o homem ao campo do Outro, da linguagem e da cultura, para mostrar como se dá o processo de constituição psíquica. Propomos que o estado de desamparo está associado à incerteza e à ausência de garantias provindas do outro. Abordaremos, então, a função da alteridade em face do desamparo no processo de constituição subjetiva, tendo como referência o binômio desamparo-alteridade. Analisaremos em Freud e Lacan os primórdios da vida psíquica, desde a instauração dos primeiros traços mnêmicos e do desejo, até o narcisismo, a constituição da instância egóica, do imaginário e da ordem simbólica. Investigaremos, finalmente, a alteridade como um complexo de dupla face, tecido em uma relação que remete

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o sujeito ao mesmo tempo ao semelhante e ao estranho, o que engendra um risco para o mesmo: não há qualquer garantia quanto ao que se pode esperar do outro.

Palavras-chave: Desamparo. Alteridade. Constituição subjetiva. Psicanálise.

Rio de Janeiro Fevereiro/2012

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ABSTRACT

THE ROLE OF OTHERNESS AGAINST TO THE HELPLESSNESS IN THE PROCESS OF SUBJECTIVE CONSTITUTION

Natália De Toni Guimarães dos Santos Orientadora: Regina Herzog de Oliveira Co-orientadora: Maria Isabel de Andrade Fortes

Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica.

Human species is marked by a biological precariousness that imposes an openness to the dimension of the otherness as a means of survival and subjectivity. The newborn, because of his motor and mental immaturity, is incapable of satisfying his own vital needs. As a result, the psychic helplessness and dependence on others are established in the psyche as a structural condition of the subject itself. We will focus on this characteristic state of early life, which impels man into the field of the Other, of language and culture, to show the process of psychic constitution. We propose that the state of helplessness is associated with the uncertainty and lack of guarantees derived from the other. We will discuss then the role of helplessness against the otherness in the process of subjective constitution, with reference to the binomial helplessness-otherness. We will analyze on Freud and Lacan the beginnings of psychic life, from the introduction of the first memory traces and desire, to narcissism, the constitution of the body ego, of the imaginary and of the symbolic order. Finally we will investigate otherness as a double-sided complex, developed in a relationship that deals the

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subject at the same time with the similar and the stranger, which engenders a risk to him: there is no guarantee as to what to expect from the other.

Keywords: Helplessness. Otherness. Subjective constitution. Psychoanalysis. Thesis (Master).

Rio de Janeiro Fevereiro/2012

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“Fala-se tanto da necessidade de deixar um planeta melhor para os nossos filhos e, esquece-se da urgência de deixarmos filhos melhores para o nosso planeta.” (Desconhecido) “Um bebê é a opinião de Deus de que o mundo deve continuar.” (Carl Sandberg)

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SUMÁRIO

Introdução 13

Capítulo 1 – Desamparo: nostalgia do objeto perdido 16

1.1 A prematuração biológica do ser humano e a instauração do desejo 16 1.2 A relação entre o biológico e a sexualidade em Freud e Lacan 20

A) A teoria do apoio em Freud 20

B) A referência orgânica em Lacan 24

1.3 Princípio de realidade e objeto perdido 27

1.4 O desamparo como condição humana 33

Capítulo 2 – Narcisismo: a constituição imaginária do eu 40

2.1 A hipótese do narcisismo primário 40

2.2 Estádio do espelho e unificação do eu: a fundação do imaginário 46 2.3 Deiscência e complexos familiares: a complexa entrada

no mundo humano 52

2.4 Transitivismo e agressividade: o processo de diferenciação 55

Capítulo 3 – Linguagem e alienação ao Outro 61

3.1 Do caos do excesso à ordem psíquica: o outro como polo de ligação 61 3.2 O percurso da pulsão e a constituição do sujeito psíquico 65 3.3 O Outro como intérprete: o grito como apelo e

a antecipação do desejo do sujeito 69

3.4 Alienação: o sujeito e o Outro 74

Capítulo 4 – O sujeito e a dupla face do outro: o processo de constituição psíquica 81

4.1 Complexo de Nebenmensch: a dupla face do outro 81

4.2 O excessivo, o estranho, o hostil 84

4.3 Relação de dominação: a face hostil do outro 89 4.4 Falta de garantias: a função da alteridade em face do desamparo

no processo de constituição psíquica 97

Considerações finais 103

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Introdução

Este trabalho consiste numa pesquisa psicanalítica sobre a função desempenhada pela alteridade frente ao desamparo originário do ser humano, que o remete ao estabelecimento de uma relação com o outro, de quem é dependente tanto no registro da ordem vital como no registro do desejo. Para tanto, apoiar-nos-emos nas referências teóricas de Freud e Lacan, principalmente, bem como nas contribuições de alguns de seus comentadores. Ambos os autores atribuem à alteridade a importante função de ser fundadora do eu, embora abordem esta noção de forma diferenciada e privilegiem aspectos diversos dessa relação fundamental.

Antes, porém, de apresentarmos os pilares deste trabalho, consideramos fundamental explicitar de onde ele surgiu. A motivação para esta pesquisa nasceu ainda nos anos de graduação em psicologia. O estágio realizado na Maternidade-Escola da UFRJ, atendendo gestantes tanto na modalidade ambulatorial como nas enfermarias, sensibilizou-me para a delicadeza das relações iniciais entre mãe e bebê. As mais diversas situações poderiam ser encontradas, desde uma criança conscientemente planejada e esperada até casos da dita “gravidez indesejada”. Em psicanálise, entendemos que não há gravidez sem desejo, ou antes, que não há nada na realidade humana que se constitua sem desejo. Nesse sentido, cabia procurar compreender, ao nível do desejo inconsciente de cada mulher, o lugar que aquela criança ocupava em seu psiquismo, em sua vida simbólica.

Em meio às rotinas médicas obstétricas e pediátricas de uma maternidade pública com diversas problemáticas no que tange aos preceitos de um atendimento “humanizado”, o desamparo de mãe e bebê frente aos de jaleco branco saltava aos olhos e, mais ainda, o desamparo do recém-nascido em sua imensa fragilidade e vulnerabilidade diante dos cuidados que lhe eram destinados. Assim, acompanhar os procedimentos pediátricos logo após o nascimento de uma criança foi algo bastante impressionante em termos mesmo da própria dor física que o bebê parecia estar vivenciando. Estas observações me fizeram pensar sobre o grau de importância – que me parecia ser alto – das primeiras experiências do ser humano em seu encontro com a alteridade para a constituição de seu psiquismo.

Surgiram daí as minhas questões com relação às marcas do início da vida em todo o desenvolvimento humano posterior. Inicialmente, talvez impactada por um curso de capacitação em intervenções precoces, minha posição figurava mais entre as teorias deterministas da psicologia, no sentido de acreditar que um início marcado por traumas e violências seria condicionante de toda estruturação psíquica, como se o sujeito estivesse para

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sempre condenado ao que nos primórdios se fez presente em sua experiência com o outro, sem chances de resistência e transformação.

O estudo da psicanálise, no entanto, foi, como se pode perceber ao longo deste texto, bastante esclarecedor no se refere à complexidade da vida psíquica. Se o início da vida é basilar para a constituição do sujeito, ele não é, contudo, determinante, pois os conteúdos inconscientes, primários, estão sempre pressionando no sentido de sua atualização na cena psíquica, o que ressalta a capacidade de elaboração do sujeito e, portanto, de retranscrição dessas marcas infantis ao longo da vida. Ainda assim, procuramos salientar, segundo nossos objetivos, a importância dos primórdios da vida psíquica na fundação do sujeito, através da relação entre a figura da alteridade e o desamparo humano. O eixo deste trabalho é, dessa forma, o binômio desamparo-alteridade, naquilo em que esses dois termos se implicam mutuamente, imbricando-se teoricamente.

Nossa análise atravessará a obra freudiana no que tange ao desenvolvimento da noção de desamparo, partindo do “Projeto para uma Psicologia Científica”, de 1895. Investigaremos o estado de desamparo do recém-nascido e a função da alteridade no processo de constituição subjetiva, a partir da experiência de satisfação. Explicitaremos então o surgimento do desejo que, em Freud, está ligado à ordem vital, apontando as divergências com relação à abordagem lacaniana deste processo, conforme O Seminário: livro XI: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964/1985). Em seguida, abordaremos a estruturação psíquica do sujeito em sua relação com a realidade. Nesse ponto, além dos textos de Freud de 1895 e 1911, analisaremos, na obra de Lacan, principalmente O Seminário: livro VII: A Ética da Psicanálise (1959-60/1988). Pretendemos, então, levar nossa pesquisa até os textos freudianos da segunda tópica, tais como “Inibição, Sintoma e Angústia” (1926/1977), “O Futuro de uma Ilusão” (1927/1977) e “Mal-estar na Civilização” (1930/1977), onde o desamparo representa uma condição estrutural do ser humano que não é passível de superação ou cura. Esta é a temática de nosso capítulo primeiro.

Após pensar o surgimento do desejo e, com ele, a falta primordial que acompanha o ser humano em sua condição de desamparo, partiremos, no segundo capítulo, para a constituição narcísica do sujeito em Freud, traçando paralelos com a noção de estádio do espelho de Lacan. A partir dos processos de identificação com a alteridade primordial, na medida em que esta porta um investimento libidinal particularmente endereçado ao sujeito, uma instância egoica pode ser forjada, passando o sujeito a tomar a si próprio como objeto. Lacan reconhece aí o momento inaugural do imaginário, em que o eu se constitui pela via da imagem e da alienação ao Outro. Para esta discussão, iremos nos apoiar principalmente no

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artigo freudiano de 1914, “Sobre o narcisismo: uma introdução”, e no texto de Lacan intitulado “O estádio do espelho como formador da função do eu” (1949/1966), assim como em outros textos deste período do ensinamento de Lacan.

Na teoria lacaniana, a ideia de alteridade ganha enorme projeção e alcance através do conceito do grande Outro, entendido como o tesouro dos significantes e a partir do qual toda ordem simbólica se torna possível. Debruçar-nos-emos, então, sobre o registro simbólico, o campo das representações, no terceiro capítulo, tendo como referência o texto “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” (1953/1966), de O Seminário: livro VI: O desejo e sua interpretação (1958-59), bem como o Livro XI, citado anteriormente, além de comentadores de Lacan. O Outro antecede e constitui o sujeito de forma alienada, na medida em que este se faz como efeito do significante, o qual está primeiro no campo do Outro. O sujeito é, portanto, uma produção, estruturando-se a partir do desejo do Outro.

Por fim, realizaremos uma análise sobre a ideia de alteridade que, em Freud, está embutida no conceito de Nebenmensch. Além do “Projeto” de 1895, não poderemos nos abster do estudo minucioso de “O Estranho”, texto de 1919, que consiste na leitura do outro como um complexo com dupla face – semelhante e estranha. A primeira, a face semelhante, familiar, apazigua as tensões pulsionais e, por isso, é possível identificar-se com ela; a outra é estranha, violenta, traumatizante, excessiva. O outro, então, por conta do seu duplo posicionamento diante do sujeito, é ao mesmo tempo quem acolhe e quem abandona o sujeito ao desamparo. Esta inevitável dicotomia na forma de apresentação da alteridade deixa o sujeito sem garantias, vulnerável e dependente do outro, que pode ou não acolhê-lo em suas necessidades e singularidades. Com este quarto capítulo, encerraremos nossa dissertação, a qual, sem dúvida, deixará instigações para futuras pesquisas.

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Capítulo 1 – Desamparo: nostalgia do objeto perdido

Discorreremos neste capítulo sobre o estado de desamparo do ser humano, conforme trabalhado por Freud no “Projeto para uma Psicologia Científica”, de 1895. A noção de desamparo, que, na obra freudiana, aparece pela primeira vez neste artigo, é evocada no contexto da primeira experiência de satisfação do recém-nascido, atrelada à prematuração inerente à espécie, o que promove uma necessária abertura para a dimensão da alteridade. Abordaremos o surgimento das primeiras inscrições psíquicas e do desejo, articulado à dominância do princípio de prazer no funcionamento psíquico, para mostrar como a entrada no sexual marca a subjetividade nascente com a perda do objeto. Apresentaremos, então, como contrapartida da prematuração biológica, o desamparo psíquico, que, ao longo da obra freudiana, vai sendo cada vez mais compreendido não como um estado passageiro, mas como uma condição estruturante do sujeito.

1.1 A prematuração biológica do ser humano e a instauração do desejo

O humano só advém a partir de outros humanos. Diferente de outros animais, o filho do homem é um ser absolutamente dependente e vulnerável, que não sobrevive sozinho, nem mesmo no registro da ordem vital. Essa dependência, contudo, não se limita ao campo da necessidade, mas concerne, fundamentalmente, ao campo do desenvolvimento libidinal. Assim, uma alteridade que porte um investimento psíquico particularmente endereçado ao bebê é condição sine qua non para o processo de subjetivação, pois ele é marcado por uma precariedade constitucional que o torna impotente diante da tarefa de manutenção da sua própria vida.

Abordaremos, primeiramente, algumas ideias presentes no trabalho que inaugura a metapsicologia freudiana. Apesar da formação de neurologista, calcada nas ciências naturais, na biologia, Freud migra, com a psicanálise, para o campo das ciências da interpretação, adentrando cada vez mais a seara da filosofia, da linguagem e dos símbolos. O “Projeto” de 1895, texto onde são esboçados conceitos-chave da psicanálise – como, por exemplo, a ideia de pulsão1 e sua economia –, lança as bases para toda a teorização freudiana. Neste trabalho, já é postulada a condição humana de desamparo no início da vida, que leva o vivente a

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depender inteiramente de outrem para sobreviver e subjetivar-se, a partir da construção de seu próprio aparelho psíquico.

Freud (1895/1976) afirma que, ao nascer, o humano é um soma que precisa descarregar suas excitações endógenas e ter suas necessidades satisfeitas. Devido às excitações internas oriundas das necessidades vitais, das quais não é possível esquivar-se, ocorre um acréscimo da tensão, impondo uma exigência de trabalho ao psíquico para manter ao nível mais baixo possível a energia interna do organismo, segundo o princípio da constância2, mas esta não pode ser dominada pelo aparelho psíquico da criança, ainda em vias de estruturar-se. O aparelho psíquico é, assim, um requisito obrigatório para a conservação da vida, é parte do organismo; por outro lado, é justamente o que propicia ao sujeito ser mais do que simplesmente um organismo ou um animal; ele se apoia no biológico e o ultrapassa, retirando o homem do domínio estrito da natureza e arremassando-o ao mundo da cultura, ao mundo eminentemente humano. Devido a sua condição de precariedade e imaturidade, ele não consegue por si mesmo aplacar essas excitações, encontrando-se em estado de desamparo.

Da mesma forma, para Laplanche (1987), o lactente, ao nascer, já é munido de montagens fisiológicas e psicofisiológicas, mas estas são imperfeitas e só se estabilizam progressivamente, fazendo com que ele possa, por exemplo, morrer por um forte calor ou desidratar sem que se perceba. Por outro lado, essas montagens apresentam esquemas perceptivo-motores que lhe permitem uma abertura para o mundo. O lactente permanece, contudo, profundamente desamparado no confronto com tarefas de nível demasiadamente alto relativamente ao seu grau de maturação psicofisiológica.

Sloterdijk (2000), em Regras para o parque humano, afirma que a precariedade biológica da espécie é um dado inquestionável, uma predeterminação, e marca a condição humana, desde o início, com o selo do desamparo. O autor defende que, entre o homem e o animal, não há uma diferença de gênero ou espécie, mas uma diferença ontológica, pois a “aventura da hominização” teria feito do homem um animal aberto e capaz para o mundo. O modo de ser do homem distingue-se do de todos os outros seres, pois ele está no mundo e tem um mundo (Welt), enquanto os outros seres apenas estão em seus ambientes (Unwelten).

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Antes de postular o princípio da constância como manutenção de um certo nível energético, Freud propõe um princípio da inércia, pelo qual os neurônios tenderiam a esvaziar-se completamente da quantidade de excitação. No decorrer deste trabalho, no entanto, supõe a existência de uma tendência para a constância, como uma função secundária imposta pela urgência da vida (reter energia para realizar a ação específica), modificando o princípio da inércia. Em Além do Princípio do Prazer (1920), o princípio da constância é apresentado como o fundamento econômico do princípio do prazer (Laplanche & Pontalis, 1970).

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Como este mundo não constitui um meio ambiente, como no caso do animal, o ser humano é obrigado a conviver com uma desadaptação radical. Se o homem está no mundo, é porque toma parte de um movimento que o traz e o abandona ao mundo.

Podemos pensar nesta aventura da hominização como a passagem de uma esfera instintual, animal, marcada pela fixidez dos determinantes da espécie, para uma esfera pulsional, propriamente humana, marcada pela abertura ao outro e ao mundo. Justamente por lhe faltar acabamento, o homem ganha sentido: tudo pode ser interpretado. Não há uma chave fixa de codificação para o homem, tal como há para os animais. Há desejo, uma força que o impulsiona a ir para o mundo, a buscar conhecê-lo e a si mesmo – veremos a seguir como o processo de constituição do desejo nos primeiros tempos da vida psíquica se articula com a prematuração biológica do ser humano, segundo a teoria freudiana.

O fato de o ser humano ter podido se tornar o ser que está no mundo tem raízes na história da espécie, afirma Sloterdijk. Nos longos períodos da história pré-humana primitiva, teria surgido, do mamífero vivíparo humano, um gênero de criaturas de nascimento prematuro, as quais saíram para seus ambientes ainda muito vulneráveis, com um “excesso crescente de inacabamento animal” (Sloterdijk, 2000, p. 33). Neste momento, consumou-se, na espécie, o que o autor chama de revolução antropogenética: a ruptura do nascimento biológico. Devido à precariedade do aparato biológico, não se nasce mais como animal propriamente: tem lugar o vir-ao-mundo. “O homem é o produto de um hiper-nascimento que faz do lactente (Säugling) um habitante do mundo (Weltling)” (Sloterdijk, 2000, p. 34). Nascer no mundo e não no ambiente nos trouxe como herança o desamparo, pois estar no mundo e ser mobilizado pelo desejo implica necessariamente uma abertura à alteridade. Eis aqui a imbricação entre a referência orgânica, marcada pela prematuração, e a experiência psíquica que advém dessa condição de inacabamento no plano vital: o desamparo originário, que remete ao outro como fundamento primordial para a emergência do sujeito.

Esse fator de fragilidade e desassistência do vivente estabelece as primeiras situações de perigo, na medida em que ele se encontra desprotegido frente ao “excesso de falta”, que, segundo Sloterdijk (2000), caracteriza o ser humano. Devido a essa prematuração, o infans precisa do auxílio do outro que lhe proveja um objeto de satisfação que reduza a tensão ocasionada pela necessidade (Freud, 1895/1976). A alteridade, então, de quem se depende para a manutenção da vida, adquire uma condição de onipotência, influenciando de forma decisiva a estruturação do psiquismo, destinado a se constituir inteiramente nessa relação com outrem. A dependência do outro engendra as primeiras formas de comunicação e, ao mesmo tempo, instaura a necessidade de ser amado, como equivalente a ser protegido das situações

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de perigo. Nas palavras de Freud:

Ela [a ação específica] se efetua por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa experiente é voltada para um estado infantil por descarga através da via da alteração interna [por exemplo, pelo grito da criança]. Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais. (1895/1976, p. 431, grifos do autor)

Vemos, dessa forma, como o desamparo torna-se a própria fonte da moral, pois se trata de um estado que remete diretamente ao campo da alteridade. Quando a pessoa que auxilia o infans realiza essa ação específica, este fica em condição de executar sozinho, desde o interior de seu corpo, a remoção do estímulo endógeno. Efetua-se uma descarga que suspende provisoriamente a urgência que causou o desprazer: eis a experiência de satisfação. Como efeito, ocorre uma facilitação entre as catexias dos neurônios que correspondem à percepção do objeto e as catexias dos neurônios que realizaram a descarga pelo movimento reflexo liberado que se segue à ação específica. Ou seja, a satisfação, a partir desse momento, fica associada à imagem do objeto que a proporcionou e à imagem do movimento reflexo que produziu a descarga.

Assim, sempre que o organismo for novamente acometido por um estado de tensão, lançará mão de seus registros psíquicos para reinvestir a imagem desse objeto, buscando reproduzir a experiência de satisfação. Esse investimento, que consiste num movimento automático mobilizado pelo processo primário, produz, no entanto, uma alucinação. Não há condição de se certificar de que o objeto não está realmente presente, pois a alucinação tem o mesmo “indício de realidade” que uma percepção. No estado de indiferenciação primária, antes da formação de uma primeira instância egoica, o bebê ainda não é capaz de distinguir entre fantasia e realidade, mundo interno e mundo externo. Como de fato não se encontra objeto real, a alucinação leva a uma satisfação descontinuada, na medida em que não terá o poder de produzir descarga, confrontando o sujeito com a falta inerente à precariedade de seu aparato fisiológico e instaurando, assim, o desejo.

O conjunto da experiência de satisfação real e alucinatória constitui a base do desejo. Ele tem sua origem numa procura da satisfação real, mas se constitui segundo o modelo da alucinação primitiva, que guiará toda a procura ulterior por objetos (Laplanche & Pontalis, 1970). Desejo é, portanto, movimento, aspiração, uma moção psíquica que busca evocar a situação da experiência primária de satisfação, segundo as leis dos processos primários, e que tem como modelo o conceito de arco reflexo importado da biologia, ou seja, visa à descarga

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imediata e total. Sua finalidade é estabelecer, pelo caminho mais curto, uma identidade de percepção, isto é, reproduzir, na modalidade alucinatória, as representações a que a experiência de satisfação original conferiu um valor privilegiado.

O desejo está, portanto, indissoluvelmente atrelado a traços mnêmicos da primeira experiência de satisfação e encontra sua realização na reprodução alucinatória das percepções tornadas sinais de satisfação. Ele não se relaciona com objetos reais, mas fundamentalmente com a fantasia, com formações imaginárias, ilusórias. Estes objetos atendem às exigências do campo pulsional, da sexualidade, uma vez que se constituem a partir do desamparo, que impõe a necessidade do amor do outro, tanto como meio de garantir a sobrevivência quanto como fonte de satisfação sexual. Assim, além de cumprir a função de saciar a necessidade, o objeto fornecido pelo outro adquire um valor sexual e, nesse movimento incessante que é a pura expressão do desejo, evoca os traços do outro primordial que tornou possível a primeira experiência de satisfação.

1.2 A relação entre o biológico e a sexualidade em Freud e Lacan

A) A teoria do apoio em Freud

De acordo com a teoria do apoio, apresentada em Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (1905/1976), ao mesmo tempo em que, a serviço da manutenção da vida e da autoconservação, há a satisfação das necessidades, ocorre também a satisfação sexual decorrente da erogeneização da zona ou do órgão em contato com o objeto, gerando um prazer para além da satisfação orgânica. O termo apoio ou anáclise designa a relação que as pulsões sexuais originalmente mantêm com as funções vitais que lhes fornecem uma fonte orgânica, uma direção e um objeto específicos, apoiando-se, portanto, no próprio instinto. Na primeira mamada do bebê, o objeto específico não é o seio, mas o leite que sacia a fome. A sucção tem a finalidade de obter o alimento que satisfaz o estado de necessidade orgânica, mas, paralelamente, dá-se também um processo de natureza sexual: a excitação dos lábios e da língua pelo seio, produzindo uma satisfação que não se reduz à saciedade alimentar, uma satisfação sexual que ganha autonomia sobre aquela.

Vemos que a boca, órgão do sistema digestivo que tem a finalidade biológica de incorporar o alimento, é passível de ser erogeneizada e funcionar também a serviço do prazer sexual. Da mesma forma, todo órgão cuja excitação confere à pulsão um caráter sexual, isto é, libidinal, deve ser designado como zona erógena. A pele é a zona erógena por excelência e

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alguns órgãos são especialmente destinados à excitabilidade, mas qualquer parte do corpo pode assumir esta função. A energia pulsional, portanto, tem sua fonte no processo somático excitatório em um órgão ou parte do corpo que tome para si as propriedades de uma zona erógena, dando origem às pulsões parciais.

Reflexo da fragmentação do ser, esses componentes pulsionais são independentes entre si em seus esforços pela obtenção de prazer. Como emanam de uma grande variedade de fontes orgânicas, as pulsões parciais são numerosas e só alcançam uma síntese quando a serviço da função reprodutora. Antes disso, a finalidade de cada uma delas é a consecução do “prazer de órgão” (Freud, 1915/1976). Nesse sentido, embora as pulsões sejam inteiramente determinadas por sua origem numa fonte somática, na vida mental nós as conhecemos por suas finalidades, pela pressão que exercem no sentido de sua satisfação. Por isso, o conhecimento exato das fontes está fora do campo da psicologia e não é imprescindível para a investigação psicológica.

Desse modo, a noção de apoio é a chave para a compreensão da pulsão, efeito marginal desse apoio-desvio, que rompe com a ordem do natural. É a instauração de uma diferença, um momento de ruptura que designa a relação primitiva da sexualidade com a conservação da vida e, ao mesmo tempo, assinala a distância entre esta função conservadora e a pulsão sexual. “Dessa forma, o apoio marca não a continuidade entre o instinto e a pulsão mas a descontinuidade entre ambos.” (Garcia-Roza, 1988, p. 120). A questão do objeto da pulsão evidencia esse hiato com relação ao instinto, pois este último implicaria em padrões fixos: objeto específico e objetivos restritos à conservação da espécie. O objeto da pulsão, ao contrário, é a coisa através da qual a pulsão é capaz de atingir a sua finalidade; é o que há de mais variável na pulsão e, originalmente, não está ligado a ela, só lhe sendo destinado por ser peculiarmente adequado a tornar possível a satisfação. “É provável que, de início, a pulsão sexual seja independente de seu objeto, e tampouco deve ela sua origem aos encantos deste.” (Freud, 1905/1976, p. 139).

Assinalamos aqui o ponto de vista distinto de Laplanche que, embora seja o responsável por dar visibilidade e destaque no campo psicanalítico pós-freudiano à noção de apoio, tem uma compreensão um pouco diferenciada da mesma, inserindo novas nuances na questão da relação da sexualidade com o biológico. Conforme citação acima, em 1905, Freud levanta a hipótese da independência da pulsão, desde o início, em relação a um objeto, o que, para Laplanche, soa como uma “espécie de estado de idealismo biológico, ainda mais impensável que o solipsismo filosófico”, uma “certa aberração do próprio pensamento freudiano relativo ao ‘objeto’ e à ausência primitiva de objeto” (Laplanche, 1985, p. 26).

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Segundo ele, afirmar que o autoerotismo, momento intimamente ligado ao apoio, caracteriza-se pela ausência do objeto e pela atividade caracteriza-sexual não dirigida a uma pessoa, caracteriza-sendo caracteriza-seu objetivo determinado pela atividade de uma zona erógena, implica em admitir que o objeto apareceria posteriormente ex nihilo, do nada, num toque mágico, a partir de um estádio inicial tido como anobjetal, uma vez que o ser humano necessita abrir-se para seu mundo. Assim, Laplanche considera muito pouco provável que o objeto surja de um estado sem objeto.

De acordo com Laplanche, há, por um lado, objeto desde o início, mas, por outro, a sexualidade de fato não tem objeto real, uma vez que o leite é objeto da função vital em que a pulsão sexual se apoia. Em sua leitura, é justamente esse objeto real, objeto da necessidade – o leite –, o objeto perdido, a partir do qual surge o prazer sexual. Assim, o objeto sexual não é idêntico ao objeto da função, na medida em que está deslocado em relação a este, numa relação de contiguidade que o faz deslizar insensivelmente de um para o outro, do leite ao seio, como seu símbolo. O objeto perdido não pode ser o mesmo que se deseja reencontrar, uma vez que pertence ao campo instintual dos objetos reais que, pela relação de contiguidade com o objeto fantasmático da pulsão, é revestido de elevado valor simbólico. Nesse sentido, a fonte da pulsão seria o “instinto todo” (Laplanche, 1985, p. 29).

Assim, quando o objeto seio é abandonado, o objetivo e o objeto da pulsão sexual tornam-se independentes da alimentação e a necessidade de repetir a satisfação sexual desliga-se da necessidade de nutrição. O chuchar ou sugar com deleite, modelo das manifestações sexuais infantis, consiste na “repetição rítmica de um contato de sucção com a boca (os lábios), do qual está excluído qualquer propósito de nutrição”. (Freud, 1905/1976, p. 168). Esta atividade alia-se a uma absorção completa da atenção e leva ao adormecimento, ou mesmo a uma reação motora, numa espécie de orgasmo. Constitui-se, dessa forma, a instauração do desejo e a entrada no sexual.

Um importante índice desse processo é o desenvolvimento da atividade de chupar o dedo, que é tida como o protótipo da sexualidade oral, dando início ao autoerotismo, o que confere à criança autonomia em relação a um objeto exterior. Logo, o objeto pode ser até parte do próprio corpo do indivíduo. Um recanto do lábio, o dedo ou qualquer outra parte do corpo pode ser tomada como objeto sobre o qual se exerce a sucção: “A inferioridade dessa segunda região a levará, mais tarde, a buscar em outra pessoa a parte correspondente, os lábios (‘Pena eu não poder beijar a mim mesmo’, dir-se-ia subjazer a isso).” (Freud, 1905/1976, p. 170).

Nesse sentido, ao se desvincularem das funções somáticas vitais, as pulsões sexuais impõem constantemente uma busca pela repetição da satisfação sexual primeira, aquela que

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traria novamente a experiência de completude ao ser, por carregar a marca de um prazer absoluto, anterior a qualquer vivência de falta que, inevitavelmente, a criança experimenta ao buscar a reedição desse prazer, impossível de alcançar nos mesmos termos. Ainda assim, ele não cessa de ser buscado; primeiro pela alucinação, mobilizada pelos processos primários que visam à descarga imediata; posteriormente, pela vigência do princípio de realidade, que instaura a capacidade de discernir entre o objeto fantasístico e o real. “O ato da criança que chucha é determinado pela busca de um prazer já vivenciado e agora relembrado.” (Freud, 1905/1976, p. 170).

Podemos dizer, então, que, “embora sejam [as pulsões] a suprema causa de toda a atividade, elas são de natureza conservadora; o estado, seja qual for, que um organismo atingiu dá origem a uma tendência a restabelecer esse estado assim que ele é abandonado” (Freud, 1938/1976, p. 161). Mamar no seio familiarizou a criança com este prazer que a pulsão sexual tentará sempre reencontrar, tornando-se modelar para todos os relacionamentos amorosos, conforme abordaremos no próximo tópico. As marcas do despontar da sexualidade, apesar de encobertas pela amnésia infantil, permanecem, portanto, no psiquismo, atualizando-se durante toda a vida.

Em alguns momentos, Freud parece manifestar-se contraditoriamente quanto à participação do outro nesse processo originário. Há indicações de que Freud deixa uma “pedra solta” nas suas formulações sobre esse tema. Por um lado, afirma que a sedução não é necessária para despertar a vida sexual da criança, já que esta pode surgir espontaneamente, a partir de causas internas. Diz, inclusive, que a sedução pode confundir nosso olhar ao apresentar prematuramente à criança um objeto sexual do qual a pulsão sexual infantil não tem necessidade alguma.3 Mais adiante no texto, no entanto, hesita com relação a isso: “Contudo, devemos admitir que também a vida sexual infantil, apesar da dominação preponderante das zonas erógenas, exibe comportamentos que desde o início envolvem outras pessoas como objetos sexuais.” (p. 179). Como exemplo, aponta a pulsão escópica, que, embora fundamental para a formação do ego, mantém certa independência das zonas erógenas, mas está condicionada à presença do outro.

Conforme demonstramos acima, parece que, neste âmbito, Freud, hesitante, não confere grande importância à dimensão intersubjetiva, relacional, no surgimento da pulsão, dando prioridade à fonte interna de estimulação. Com isso, toda função, todo processo vital,

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Na Carta 69 (1897/1976), Freud já reconhecia que as moções sexuais atuavam normalmente nas crianças de mais tenra idade, sem nenhuma necessidade de estimulação externa (Freud, 1905/1976).

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poderia “secretar” sexualidade. Laplanche (1987), por sua vez, sublinha a necessária participação do outro, do adulto cuidador, para que o pulsional se instaure, numa imbricação entre o exógeno e o endógeno: é preciso que haja a intersubjetividade para que o intrapsíquico se constitua, para que se funde uma interioridade. É, então, a relação primária com o outro, que ele denomina situação originária, que introduz o pulsional, na medida em que os cuidados corporais dispensados ao filho pela mãe ou substituto provocam a erogeneidade do corpo, conforme Freud mesmo reconhece:

O trato da criança com a pessoa que a assiste é, para ela, uma fonte incessante de excitação e satisfação sexuais vindas das zonas erógenas, ainda mais que essa pessoa – usualmente, a mãe – contempla a criança com os sentimentos derivados de sua própria vida sexual: ela a acaricia, beija e embala, e é perfeitamente claro que a trata como o substituto de um objeto sexual plenamente legítimo. (Freud, 1905/1976, p. 210).

Deduzimos, então, que a relação do psiquismo e da sexualidade com o organismo é de suma importância no campo psicanalítico, na medida em que estamos tratando do alicerce do sujeito, do originário, que não poderia deixar de trazer imensa complexidade. Prova disto é o fato de Freud ter inserido modificações nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade ao longo de toda a evolução de sua obra. Citamos aqui duas passagens do prefácio da terceira (1914) e da quarta edição (1920), respectivamente, que mostram o quanto este pesquisador continuou a sempre indagar a noção do biológico: “A rigor, meu objetivo foi sondar o quanto se pode apurar sobre a biologia da vida sexual humana com os meios acessíveis à investigação psicológica.” (1905/1976, p. 124). E, posteriormente: “Mas a parte da doutrina que faz fronteira com a biologia, cujas bases são fornecidas neste pequeno escrito, continua a enfrentar um dissenso indiminuto...” (1905/1976, p. 125).

B) A referência orgânica em Lacan

No artigo “A voz como primeiro objeto da pulsão oral” (2000), Marie-Christine Laznik, autora francesa de orientação lacaniana, balizando-se em observações clínicas, retoma ideias desenvolvidas por Freud no “Projeto” de 1895 para problematizar a noção de apoio apresentada por ele em 1905. Segundo ela, no “Projeto”, Freud afirma que, após a experiência de satisfação, quando novamente a tensão interna aumentar, o bebê poderá reevocar de forma alucinatória os traços mnêmicos dessa experiência, bem como os traços deste próximo assegurador, Nebenmensch, aquele que está atento às necessidades do recém-nascido e que

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com ele estabelece relação.

Por outro lado, nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, antes de consolidar a teoria do apoio, Freud (1905/1976) postula a sexualidade infantil perverso polimorfa como autoerótica, anobjetal e presente desde um tempo muito precoce. Como mencionamos, ele inclusive chega à hipótese de um autoerotismo inato, embora isso representasse uma contradição, dado que “Eros vem a se opor a todos os mitos autogeradores” (Laznik, 2000, p. 86), está sempre do lado do sexual e supõe um laço com o Outro4 primordial, que depende de sua intervenção. Assim, ainda que solitária, a sexualidade autoerótica é sustentada por fantasmas, implicando o Outro.

Neste contexto, a noção de apoio é elaborada exatamente com a função de suturar essas conjecturas que dicotomizam o intrapsíquico e a intersubjetividade no que diz respeito à instauração da sexualidade, ao postular o surgimento da pulsão sexual a partir da satisfação da necessidade vital. Essa concepção permite integrar o autoerotismo e a constituição psíquica na historicidade da relação com o Outro, mas faz com que qualquer experiência psíquica derive do fisiológico. No entanto, a observação de bebês com patologias alimentares radicais ensina que, se as necessidades vitais são apaziguadas, eles podem empregar suas competências na busca de um outro objeto, diferente daquele da satisfação da necessidade, um objeto de amor, de forma desvinculada da satisfação orgânica (Laznik, 2000).

É importante frisar que, em relação à teoria do apoio, Lacan assume uma perspectiva diferente e, de certo modo, não conciliável com a de Freud, que associa o surgimento da pulsão sexual a uma fonte orgânica, análoga à da necessidade vital. Lacan (1964/1985) entende a referência orgânica como estando relacionada ao estado de urgência da vida – o qual necessariamente impõe às pulsões a parcialidade, uma vez que o campo pulsional não constitui uma totalidade biológica – e chama a atenção para uma não adaptação radical do ser humano. “É em razão da realidade do sistema homeostático que a sexualidade só entra em jogo em forma de pulsões parciais.” (Lacan, 1964/1985, p. 167). Embora Freud afirme que as pulsões sexuais são numerosas e atuam em princípio independentemente uma da outra, alcançando uma síntese mais ou menos completa numa fase posterior, para Lacan, pela própria essência do pulsional, essa síntese é impossível, sendo a pulsão sempre pulsão parcial.

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O Outro a que nos referimos aqui, remetendo à teoria lacaniana, e do qual trataremos mais especificamente no capítulo 3, é o registro simbólico, o lugar da linguagem, o grande transmissor que antecede e constitui o sujeito. Não se trata, necessariamente, da mãe biológica, já que representa uma função que pode ser realizada com igual eficácia por mãe substituta, desde que porte um investimento libidinal particularmente endereçado à criança.

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O fato de a sexualidade só se realizar por operação das pulsões parciais nos conduz a uma problematização do alvo da pulsão. Em Freud, a satisfação pulsional pode ser alcançada desde que tenha sido vivenciada antes, para que reste daí a necessidade de repeti-la (diante do aumento da tensão). No entanto, ele supõe que, ao se atingir a fase genital do desenvolvimento libidinal, com a síntese pulsional, o alvo normal da pulsão é a união genital e a reprodução (Freud, 1905/1976). Já em Lacan, a pulsão pode atingir sua satisfação sem atingir seu alvo, definido pela função biológica, pela realização do emparelhamento reprodutivo, pois não é esse o alvo da pulsão parcial. Nesse sentido, a satisfação é sempre paradoxal, representando uma categoria do impossível.

“Se a pulsão pode ser satisfeita sem ter atingido aquilo que, em relação a uma totalização biológica da função, seria a satisfação ao seu fim de reprodução, é que ela é pulsão parcial, e que seu alvo não é outra coisa senão esse retorno em circuito.” (Lacan, 1964/1985, p. 170). Para Lacan, a pulsão é marcada pela dialética do arco e flecha, onde o que é fundamental no nível de cada pulsão é o vaivém em que ela se estrutura. O psicanalista francês enfatiza o caráter circular do percurso da pulsão, aludindo à imagem de uma flecha (Drang, força) que atravessa a superfície – a borda (Quelle, fonte, zona erógena), aquilo que está na fronteira entre o interno e o externo e se presta à função sexual –, fazendo uma curva que parte e retorna à borda, fechando-se sobre si mesma (Lacan, idem).

Se, na teoria freudiana, a satisfação pulsional deriva da ligação simultânea da zona labial com a alimentação, sendo impossível discernir, em um recém-nascido, o que pode ser atribuído à satisfação da necessidade (ingestão do leite) e o que poderia ser apenas o prazer de sugar, na teoria lacaniana a importância do biológico não se dá por meio de um objeto específico relativo às funções vitais, pois o despertar da pulsão não está colado à satisfação instintual. Daí a crítica de Lacan à ideia de apoio, uma vez que, para ele, a sexualidade está desde sempre apartada do biológico por sua própria constituição. O Not des Lebens é, assim, o fato da premência de satisfação, da necessidade vital em geral, e não a simultaneidade da pulsão a um objeto, pois nenhum objeto da necessidade pode satisfazer a pulsão. Não é pelo alimento que a boca se satisfaz, mas pelo prazer da boca, que não poderia ser reduzida à mera função de adaptação. Distinguir-se-ia, portanto, no começo da dialética da pulsão, a necessidade da exigência pulsional (Lacan, idem).

Laznik (2000) cita o caso de uma criança que, mesmo não tendo sido jamais alimentada por via oral, por conta de uma má formação digestiva grave, não apresenta nenhum atraso na organização simbólica ou da linguagem, já que pôde incorporar as “palavras alimentadoras” de seus pais que se mantiveram em intensa relação com a filha

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desde o nascimento. “Desde a origem, a criança se alimenta tanto de palavras quanto de pão, e perece por palavras.” (Lacan, 1956-57/1995, p. 192). Portanto, não é necessariamente no ato mesmo de satisfação de uma necessidade que se inaugura o desejo, ou que se desperta a pulsão sexual, por apoio no fisiológico. Isso pode se dar independentemente do campo das necessidades.

Nesse sentido, podemos afirmar que a pulsão sexual surge a partir da relação com o Outro. “Algo do desejo da mãe sobre a criança seria traduzido pelos traços de seu rosto” (Laznik, 2000, p. 81), bem como por seu olhar e sua voz, identificados pelo bebê antes mesmo da primeira mamada, ou seja, antes mesmo de qualquer experiência de satisfação. Para a autora, o que subjetiva realmente não é a inscrição psíquica da experiência de satisfação da necessidade pela via oral, despertando um prazer sexual que depois a criança busca reeditar, mas a incorporação dos traços dos pais, daqueles que investem libidinalmente nessa relação primordial.

A pulsão é, então, o efeito dessa ruptura com a ordem do natural, lançando o ser humano no abismo de uma falta insuperável, uma vez que é constitucional, estruturante, inerente à precariedade biológica da espécie. É nesse sentido que Lacan nos fala de uma deiscência característica da espécie humana, que se expressa na radicalidade da fragmentação e na tensão entre fragmentação e unificação corporal no narcisismo. O inacabamento do sistema nervoso e o consequente despedaçamento funcional dos primeiros tempos implicam em uma experiência psíquica de dilaceramento original e de total descoordenação, configurando uma discordância primordial no homem, uma ruptura estrutural entre seu organismo e sua realidade. Na medida em que essa insuficiência orgânica marca de forma indelével a estruturação psíquica, efetiva-se a separação constitutiva entre o biológico e o pulsional. A contrapartida dessa desadaptação é o desamparo psíquico, em que predomina um sentimento de impotência diante da manutenção da própria vida e da permanente insatisfação do pulsional, conforme veremos no terceiro capítulo.

1.3 Princípio de realidade e objeto perdido

Com a experiência primária de satisfação, as marcas do prazer são impressas no psiquismo nascente, onde para sempre permanecerão intactas e nunca mais poderão ser apagadas, nem mesmo silenciadas. Os traços da entrada no sexual a partir do encontro com o outro constituem as primeiras inscrições psíquicas, dando origem ao que Freud (1911/1976) chama de ego-prazer, um embrião de ego que tem a sua existência referida a experiências de

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prazer. Esta forma originária de funcionamento psíquico, o ego-prazer, “nada pode fazer a não ser querer, trabalhar para produzir prazer e evitar o desprazer” (Freud, 1911/1976, p. 283). Inicialmente, são os impulsos pulsionais orais, os mais antigos, que comandam a busca de satisfação, introjetando tudo o que é bom e ejetando de si o que é mau. Assim, “aquilo que é mau, que é estranho ao ego, e aquilo que é externo são, para começar, idênticos” (Freud, 1925/1976, p. 297). Nesse sentido, a delimitação eu-outro, interno-externo, não é primária.

Como vimos, estando a criança desamparada ante a sua precariedade constitucional, ela depende inteiramente do auxílio do outro para que possa ocorrer a experiência de satisfação. Este outro, atento ao estado de desamparo da criança, propicia a ela experimentar um delírio de autorreferência, a partir da coincidência entre a alteração interna e o pronto surgimento do objeto de satisfação. Neste momento, portanto, a criança ainda não distingue o que lhe é interno ou externo, não tem consciência de si enquanto indivíduo, mas esta experiência de prazer é incorporada, dando início à formação de um primeiro núcleo egoico. Portanto, uma entidade tal como o eu não existe desde o início. É necessária uma nova ação psíquica para que o eu se constitua (Freud, 1914/1976).

A tendência inicial da criança de isolar o ego de tudo o que gera desprazer é correlata do programa do princípio de prazer, que regula o propósito da vida e, no âmbito da primeira tópica freudiana, domina o funcionamento psíquico desde o início. Nestes primeiros tempos da vida psíquica, o único tipo de processo mental é o processo primário, regido pelo princípio de prazer. Este é o registro da descarga imediata, da não ligação da energia psíquica, que urge pelo escoamento e não pode se ater a condições reais para sua satisfação. Assim, a partir do estado de indiferenciação primária, em que não há limites nem fronteiras para o psiquismo, a criança vai, gradativamente, aprendendo a se diferenciar do mundo, ao reagir a estímulos que identificará como internos ou externos, na medida em que, diante das excitações endógenas, não é possível fugir, nem mesmo eliminá-las pela via do processo alucinatório, que visa restabelecer a satisfação primeira, reinvestindo a representação mnêmica do objeto.

Essa tentativa de obter a satisfação empreendida pelo processo primário é fracassada, pois o aparelho ainda não distingue as atividades de memória das de percepção, apresentando uma precariedade justamente por não considerar a realidade. Então, na falta do objeto real, a criança é acometida pelo desprazer, o que promove a necessária introdução do princípio de realidade. Devido à descontinuidade da satisfação pela via do processo alucinatório, o aparelho psíquico precisa suportar um adiamento da satisfação, até que possa formar uma concepção a respeito das circunstâncias do mundo externo e efetuar nelas uma alteração, a fim de encontrar os caminhos para a satisfação real (Freud, 1911/1976). Podemos dizer, então,

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que o aparelho psíquico está condenado à desadaptação, pois o sistema não garante a satisfação da necessidade, o que torna imperativa a instauração do princípio de realidade.

A transformação do princípio de prazer em princípio de realidade está, portanto, relacionada com a falta, com o desencontro existente entre o estado de desejo, que faz o bebê gritar, chorar, alucinar, e a satisfação efetiva. Este hiato se refere tanto ao tempo necessário para que o objeto adequado seja provido quanto à qualidade mesma do objeto, que não será nunca igual ao objeto originário da primeira experiência de satisfação, o qual traria a completude, a verdadeira satisfação. Por isso, ainda que, com o princípio de realidade em vigor, seja possível uma satisfação real, o apaziguamento do aparelho psíquico não ocorre, já que a satisfação completa da pulsão sexual é, por definição, impossível. Embora a tendência de buscar o prazer e evitar o desprazer – ainda que através do princípio de realidade – seja formulada por Freud como um princípio regulatório, homeostático (Schneider, 1976), há sempre um resto que não pode ser capturado pelo aparelho psíquico, nem descarregado, e que retorna incessantemente sob a forma de desejo.

Assim, mesmo com a introdução do princípio de realidade, o aparelho psíquico será sempre, essencialmente, um aparelho de prazer e desprazer, tendo em vista que seu maior esforço é sempre no sentido da busca do prazer, da descarga pulsional. Por isso, os processos primários nunca perdem a força, ainda que se tenha alcançado o importante desenvolvimento dos processos secundários, processos de pensamento que implicam a ligação da energia em cadeias, propiciando a constituição do ego. O princípio de realidade, então, corrige e complementa o princípio de prazer, perseguindo o mesmo objetivo, embora por vias mais longas e mais efetivas, evitando o imediatismo da descarga mobilizada pelos processos primários, contrários a qualquer ligação psíquica.

Os processos secundários que permitem a percepção e o julgamento do que há na realidade externa são, portanto, oriundos dos impulsos pulsionais primários, constituindo uma elaboração, uma sofisticação do processo original através do qual o ego integra coisas a si ou as expele de si, de acordo com o princípio de prazer (Freud, 1925/1976). Assim, podemos considerar que, mesmo na vigência do princípio de realidade, o princípio de prazer se faz presente, na medida em que aquele é um desdobramento deste e serve a seus interesses, apesar de tomar caminhos diferentes, o que é imprescindível para a estruturação do psiquismo. Portanto, o princípio de prazer, este modo primário de funcionamento do aparelho psíquico, jamais pode ser superado ou silenciado, visto que está na origem do psiquismo e constitui o propósito da vida.

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Na realidade, a substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade não implica a deposição daquele, mas apenas sua proteção. Um prazer momentâneo, incerto quanto a seus resultados, é abandonado, mas apenas a fim de ganhar mais tarde, ao longo do novo caminho, um prazer seguro. (Freud, 1911/1976, p. 283).

No entanto, não há possibilidade alguma de o princípio de prazer ser executado, pois todas as normas do universo lhe são contrárias. “A doutrina da recompensa noutra vida pela renúncia — voluntária ou forçada — dos prazeres terrenos nada mais é que uma projeção mítica desta revolução na mente.” (Freud, 1911/1976, p. 283). Em nossa experiência, só derivamos prazer intenso por contraste, pois nossas possibilidades de felicidade são restritas por nossa constituição. O sofrimento, pelo contrário, é muito menos difícil de experimentar, principalmente em relação aos outros seres humanos, como aponta Freud em Mal-estar na Civilização – conforme abordaremos no quarto capítulo. Já a felicidade, em sentido estrito, é meramente episódica, na medida em que deriva da satisfação das necessidades (Freud, 1930/1976). Nenhum caminho leva a tudo o que desejamos.

Em sua releitura do Entwurf – o “Projeto” de Freud, de 1895 –, Lacan (1959-60/1988) afirma que o organismo parece feito não para satisfazer a necessidade, mas para aluciná-la, precisando de outro aparelho que se oponha a ele, exercendo uma instância de realidade e apresentando-se como um princípio de correção, de chamada à ordem. O princípio de realidade, mais do que um controle, faz retificação, compensa o que parece ser a tendência fundamental do aparelho psíquico e se opõe a ela. Embora se fale, essencialmente, da oposição entre princípio de prazer e princípio de realidade, na reflexão de Lacan, eles não são destacáveis um do outro; muito pelo contrário, implicam-se e se incluem um ao outro, numa relação dialética.

O princípio da realidade só é constituído por aquilo que é imposto para sua satisfação ao princípio do prazer, ele não passa de seu prolongamento e, inversamente, implica, em sua dinâmica e procura fundamental, a tensão fundamental do princípio do prazer. Ainda assim, entre os dois, e isso é o essencial da contribuição da teoria freudiana, existe uma hiância, que não se poderia distinguir se um fosse simplesmente a continuação do outro. (Lacan, 1959-60/1988, p.14).

O organismo é, portanto, predestinado ao fenômeno alucinatório da percepção, da falsa realidade, que não atende ao campo da necessidade: é a pura expressão do desejo. Há, portanto, um conflito ético inerente à constituição humana que aparece desde a origem de um organismo e o constitui enquanto sujeito: é preciso ir contra a profunda inadequação de um dos princípios de funcionamento psíquico, o princípio de prazer. Devido à oposição que se

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coloca entre o princípio do prazer e o princípio de realidade, entre o processo primário e o processo secundário, a orientação da conduta do homem implica em uma experiência ética, na medida em que ele é convocado a tomar posição diante da realidade, recusando a via alucinatória em nome de uma satisfação real, imprescindível ao biológico. É preciso encontrar a referência final, à qual a ação humana deve, no final das contas, reduzir-se (Lacan, 1959-60/1988).

Nesse sentido, embora inicialmente Freud tenha tratado o aparelho psíquico em termos de neurônios e quantidade de energia, o modelo de aparelho elaborado por ele é um modelo de subjetividade que, em virtude do desamparo, estrutura-se como uma subjetividade aberta à alteridade, justamente por não possuir leis naturais de funcionamento (Rocha, 1999). A prematuração biológica reforça a influência da realidade do mundo exterior e, com isso, dos perigos desse mundo. A diferença entre ego e id é precocemente adquirida, na medida em que o aparelho psíquico é convocado a funcionar de forma a promover a adaptação do organismo, que em si não contém um esquema biológico capaz de dar conta de sua sobrevivência e manutenção. Como vimos, para isso o bebê precisa do outro primordial, o seu primeiro objeto de amor, o agente facilitador da primeira experiência de satisfação no campo das necessidades. Consequentemente, o valor desse objeto, o único que pode protegê-lo contra os perigos e substituir a vida intrauterina perdida, é enormemente engrandecido (Freud, 1926/1976).

Ganhar o mundo é, portanto, o preço a ser pago pela espécie humana por distanciar-se da esfera instintual e entrar no pulsional. Segundo Sloterdijk (2001), por carregar a marca da prematuridade e do inacabamento, o ser humano precisa do outro e, assim, se abre para a esfera do desejo. A energia sexual é, então, o grande determinante dessa subjetividade que só pode se constituir como verdadeiramente humana estando atrelada a ela e referenciada ao campo do Outro. É a erogeneização do corpo, o revestimento libidinal em torno do aparato biológico, que constitui um sujeito psíquico, fundando uma subjetividade com infinitas possibilidades de ser, embora fortemente marcada pelas experiências primordiais.

Vemos, dessa forma, que o aparelho psíquico constitui-se como um sistema desejante, na medida em que se organiza em torno de um objeto que promove a falta, dando origem à alucinação e ao processo primário. As marcas desse primeiro objeto, revestido de imenso valor por ter propiciado a experiência primária de satisfação, permanecem intactas no psiquismo, sempre retornando ao longo da vida do sujeito. Assim, esse objeto não cessa de ser buscado; primeiramente, através da alucinação, mobilizada pelos processos primários que

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visam à descarga imediata e, posteriormente, pela vigência do princípio de realidade, o qual instaura a capacidade de discernir entre o objeto fantasístico e o objeto real.

Nesta busca pelo objeto perdido que proporcionaria a satisfação plena, o sujeito entra na ordem sexual, na qual estará implicado por toda a sua vida, sem jamais poder encontrá-lo. A entrada no sexual, que marca a impossibilidade do desejo ser plenamente satisfeito, instaura no sujeito uma nostalgia com relação ao objeto perdido (Lacan, 1956-57/1995), pela qual a única maneira de encontrar o objeto é a continuação de uma tendência em que se trata de um objeto perdido, de um objeto a se reencontrar, que guiará por toda a vida as escolhas de objeto. A primeira experiência de satisfação, portanto, funcionará doravante como uma espécie de bússola na busca do prazer, o qual é irredutível à adaptação natural de um organismo.

A nostalgia do objeto perdido, através da qual se exerce todo esforço de busca, marca a redescoberta do signo de uma repetição impossível. Trata-se, aqui, de das Ding, a Coisa freudiana, o objeto causa do desejo, o objeto a lacaniano, que pertence ao registro real. O real é o que está no limite de nossa experiência, é o campo do que está antes, de tudo o que é anterior a um funcionamento simbólico. Anterior, portanto, ao eu, pois “antes que o Eu adviesse, havia alguma coisa, o isso era” (Lacan, 1956-57/1995, p. 43). Todavia, só podemos nos referir ao real teorizando por meio do simbólico, ou seja, por meio desses signos de uma repetição impossível. É através da busca de uma satisfação passada e ultrapassada que o novo objeto é procurado, sendo encontrado e apreendido noutra parte que não no ponto onde se procura. É nesse descompasso, nessa diferença constitutiva onde se insere a alteridade, que se dão os laços sociais e a entrada na cultura (Garcia-Roza, 1988).

É preciso, portanto, que haja a satisfação e o despertar do sexual para que se formem as primeiras representações psíquicas, tornando possível a alucinação, mas é fundamental também que haja a falta e o desprazer que lançam a criança na realidade, permitindo que dela se diferencie enquanto indivíduo, forjando um ego a partir da instauração dos processos secundários, da ligação da energia psíquica. É a partir desse lugar de falta que se formam, de maneira inconsciente, os processos secundários, orientados e dominados pela realidade, uma vez que se trata de o sujeito reencontrar o caminho para a satisfação efetiva. O objeto perdido da experiência primária de satisfação é, então, pré-condição para o teste de realidade, na medida em que remete à falta inerente à constituição humana, o que exige uma abertura para a alteridade e para o mundo.

Freud (1895/1976) afirma que o estado de urgência da vida, o qual impõe o armazenamento de certo nível de energia para a realização da ação específica, faz a descarga

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completa equivaler à morte do organismo, sendo responsável por configurar uma função psíquica secundária, uma segunda etapa na diferenciação do aparelho psíquico, que representa uma evolução do organismo. Temos aqui, portanto, um índice de estruturação do aparelho psíquico5 como um aparelho de transformação das excitações orgânicas em energia sexual psíquica ou libido, que realiza, por processos secundários, o trabalho de ligar as representações – traços mnêmicos das experiências infantis – entre si, mantendo certa estabilidade. Com isso, limita-se o escoamento das excitações e se engendra uma organização em cadeias associativas. Pode-se dizer que a formação de uma massa de neurônios bem ligados a partir das facilitações constitui um primeiro esboço de unidade psíquica, do que chamaremos de ego ou eu, uma primeira instância de diferenciação em relação ao mundo externo, que exercerá uma função reguladora, cujo principal papel é inibir o processo primário. Este é o embrião de um eu que se percebe como uma unidade corporal, o que caracterizará o narcisismo – de que trataremos no próximo capítulo.

1.4 O desamparo como condição humana

Ao debruçarmo-nos sobre o tema do desamparo, é importante termos em mente que tal noção adquiriu diferentes estatutos ao longo da obra freudiana. Primeiramente, como vimos até aqui, no “Projeto para uma Psicologia Científica”, de 1895, o desamparo inicial do bebê articula-se à sua insuficiência motora e inscreve-se no processo do desejo. Em 1926, no artigo sobre a angústia, o desamparo é fundamental para a concepção da segunda teoria da angústia, sendo analisado como uma espécie de reação frente às situações de perigo que geram angústia. A partir dos artigos “O Futuro de uma Ilusão” (1927/1976) e “Mal-estar na Civilização” (1930/1976), a noção é então formulada como condição fundamental da existência humana, como ausência de garantias definitivas para o sujeito. Trata-se, aqui, de olhar o desamparo não como um acidente ou uma situação, mas como condição estruturante do próprio sujeito (Pereira, 1999; Rocha, 1999).

Segundo Birman (1999), a construção do conceito de desamparo é tributária de uma descontinuidade, de uma fratura entre o primeiro momento da obra, anterior a 1920, e o segundo momento, após a viragem teórica de 1920. Nos escritos iniciais de Freud, havia um uso restrito e eventual da palavra desamparo como um adjetivo, um estado referente ao recém-nascido, mas, a partir da formulação do conceito de pulsão de morte, instaura-se uma

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Este termo só será utilizado por Freud em 1900, com a Interpretação dos Sonhos, obra inaugural da psicanálise (Laplanche & Pontalis, 1970).

Referências

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