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Capítulo 2 – Narcisismo: a constituição imaginária do eu

2.1 A hipótese do narcisismo primário

Conforme abordamos no primeiro capítulo, a teoria do apoio (Freud, 1905/1976) propõe que o despertar da sexualidade no sujeito humano se dá em conexão com a satisfação das necessidades somáticas vitais. Com a entrada no autoerotismo, em que a criança toma como objeto sexual alguma parte de seu próprio corpo, ocorre a desvinculação da pulsão sexual das funções de autopreservação, que a partir daí têm funcionamento independente. No entanto, resquícios desse vínculo original entre o sexual e o biológico permanecem intactos no psiquismo, uma vez que os primeiros objetos sexuais de uma criança derivam de suas primeiras experiências de satisfação e, dessa forma, coincidem com as pessoas que se preocuparam com sua alimentação, proteção e cuidados.

O primeiro objeto sexual, a mãe ou quem exerça esta função, é fruto de um tipo de escolha objetal denominada por Freud (1914/1976) como “anaclítica” ou “de ligação”. Ele é revestido de enorme valor e influencia todas as escolhas de objeto posteriores. No entanto, o estudo clínico do homossexualismo conduziu Freud a elaborar a ideia de um amor por um igual ou o amor por si mesmo, ao observar que certas pessoas não tomam a mãe como modelo para a escolha objetal, mas os seus próprios eus, configurando uma escolha de objeto de tipo narcísica. Este achado clínico indica para Freud a existência de um narcisismo primário, um tempo no curso normal do desenvolvimento em que o próprio eu é objeto do investimento

libidinal do sujeito. A partir dessa hipótese, então, Freud postula que o ser humano tem originalmente dois objetos sexuais: a mulher que cuida dele e ele próprio (1914/1976). Ambos os tipos de escolha objetal estão disponíveis para cada indivíduo, embora ele possa demonstrar preferência por um ou por outro.

Com isso, inaugura-se um novo par dialético na teoria da libido: libido do objeto e libido narcísica ou libido do eu, a qual seria o “complemento libidinal do egoísmo do instinto [pulsão] de autopreservação” (Freud, 1914/1976, p. 90). Freud afirma que “a diferenciação da libido numa espécie que é adequada ao ego e numa outra que está ligada a objetos é o corolário inevitável de uma hipótese original que estabelecia distinção entre os instintos sexuais e os instintos do ego” (Freud, 1914/1976, p. 94). A sexualização do ego ocorrida dessa maneira fez com que a oposição entre a pulsão sexual e a pulsão de autopreservação perdesse força, uma vez que o amor dirigido ao próprio eu e a luta por sua autoconservação muitas vezes se confundem.

Ainda assim, a manutenção do dualismo pulsão sexual v. pulsão do ego se justifica, uma vez que, de fato, o indivíduo leva uma existência dúplice: uma voltada para os seus próprios fins, para a obtenção de prazer, e outra voltada para a reprodução biológica, com vistas à perpetuação da espécie. O reconhecimento de um investimento libidinal no ego demanda, dessa forma, uma reformulação da teoria da libido, a qual, no entanto, pôde ser executada ainda no âmbito do primeiro dualismo pulsional. Acrescenta-se, então, do lado da pulsão sexual, a diferenciação em libido de objeto e libido narcísica: quanto mais investimento libidinal de um tipo, menos do outro. Há sempre certo quantum de energia sexual psíquica disponível, que é então distribuída entre as catexias objetais e narcísicas, num balanço energético em que, quando um se enriquece, o outro deve necessariamente empobrecer-se.

Deste modo, concebida a partir do material clínico como um postulado da teoria da libido, a hipótese de um narcisismo primário – menos fácil de se apreender por observação direta do que por inferência na clínica – ganha lugar dentro do curso regular do desenvolvimento libidinal. No narcisismo primário, o eu incipiente da criança é objeto de todos os investimentos, sendo revestido de enorme grandeza e majestade. O eu do narcisismo se constitui, portanto, como um eu ideal, depositário de uma perfeição sem limites, a qual propicia a sua integração enquanto objeto do desejo do outro.

Assim, ao se identificar com o amor dos pais que lhe é dirigido, a criança, aos poucos, passa a se reconhecer como indivíduo, possibilitando o processo de integração psíquica, na medida em que ela se torna objeto para si mesma, investindo em sua própria imagem

conforme os pais lhe apresentam. Este movimento psíquico no sentido de apropriar-se de si mesmo caracteriza o processo de unificação do eu que se dá na fase do narcisismo primário, pois uma unidade comparável ao ego não existe desde o início, ele precisa se desenvolver a partir do autoerotismo. O narcisismo primário das crianças é, então, fruto de uma nova ação psíquica que se adiciona ao autoerotismo, dando origem a uma formação narcísica, ou seja, a uma primeira forma egoica (Freud, 1914/1976).

É o investimento libidinal do outro, geralmente dos pais, que permite à criança tomar- se a si mesma como objeto de amor, tal como é para eles, na medida em que esse investimento no si mesmo, que configura o narcisismo primário, só é possível a partir do investimento prévio dos pais, que revivem através do filho os seus narcisismos perdidos. São eles que constituem “Sua Majestade o Bebê” através da supervalorização de seus desejos e atos psíquicos em relação à criança, que, por sua vez, se identifica com essa onipotência de pensamento dos pais. Por isso, Narciso é o personagem mitológico que dá nome ao narcisismo, símbolo da autossuficiência do amor perfeito, o qual se expressa na semelhança entre o próprio corpo e o corpo de um objeto sexual tratado como um todo, afagado, contemplado e acariciado (Laplanche, 1985).

Na atitude dos pais com as crianças, manifestam-se a supervaloração, o sentimento megalomaníaco de onipotência e a idealização. Esse investimento tão desmesurado na criança, que permite aos pais reviver através dela a fase em que os seus próprios egos eram os seus ideais, consiste em uma ilusão de completude, uma tentativa de atenuação do desamparo que confrontam a todo instante ante as incertezas da vida humana. Ao se investir nos filhos refugiando-se neles, gozando a partir deles, de alguma forma, alcança-se a imortalidade do ego. Com isso, é comum os pais lhes oferecerem tudo de que foram privados, reivindicando privilégios que eles próprios não tiveram e esperando, inconscientemente, que os filhos realizem os sonhos antigos que eles próprios não puderam realizar.

Assim, cada recém-nascido é investido numa missão logo que chega ao mundo, missão que é parte da transmissão transgeracional dos fantasmas dos pais, um “fantasma no berçário” (Fraiberg et al., 1975 apud Monti, 2008) que encarna as expectativas conscientes e inconscientes das gerações anteriores. Monti (2008) denomina “contrato narcisista” essa função tripla do investimento dos pais no infans: assegurar-lhe uma origem, manter a continuidade entre as gerações e o sentido de continuidade, e proporcionar-lhe o direito de ocupar um lugar no seu grupo familiar. Precisamente para lhe assegurar um lugar, os pais têm que investir narcisicamente a criança. Isso confere ao sujeito, que assim se constitui enquanto

indivíduo, um sentido de pertença, fazendo com que ele se sinta um membro reconhecido pelo grupo (Monti, 2008).

“O amor dos pais, tão comovedor e no fundo tão infantil, nada mais é senão o narcisismo dos pais renascido, o qual, transformado em amor objetal, inequivocamente revela sua natureza anterior” (Freud, 1914/1976, p. 108). Freud vê aí a prova do narcisismo infantil, que teria sido um dia o dos pais e ao qual eles se voltam por ocasião do nascimento da criança. Esse amor idealizado representa, assim, uma restauração desse momento primordial de plenitude através da identificação com o filho. A onipotência e a megalomania da criança, nesse sentido, nada mais são do que a onipotência e a megalomania dos pais invertida. (Laplanche, 1985).

Como vimos no capítulo anterior em relação à experiência de satisfação, o homem se mostra incapaz de abrir mão de suas primeiras satisfações, buscando sempre reeditá-las. Dessa forma, ele não está disposto a renunciar à perfeição narcisista de sua infância, exigida pela civilização como condição para o estabelecimento de laços sociais. Assim, com o progresso do desenvolvimento libidinal, o eu ideal tem de ser abandonado para que, com a entrada no complexo de Édipo, a criança atinja o amor objetal. É ao genitor do sexo oposto que esse amor se dirige, mas, por ser este um objeto incestuoso, proibido, a criança é confrontada com a ameaça de castração que a obriga a recalcar tais catexias libidinais, constituindo o ideal do eu como um modelo a ser perseguido, na medida em que está fundado nas exigências morais dos pais.

Nesse sentido, a questão da configuração dos ideais ganha, no contexto do narcisismo, seu lugar fundamental. Devido ao fato de a criança precisar desistir de tais investimentos em nome de sua preservação e em nome do amor dos pais por ela, o eu ideal dá lugar ao ideal do eu, numa tentativa de recuperar essa perfeição narcísica perdida. Desse modo, o narcisismo, caracterizado pela edificação do eu ideal, alvo do amor de si mesmo – que, durante essa fase, é usufruído pelo ego real –, surge deslocado em relação a um novo ideal, o qual, assim como o ego infantil, se acha revestido de toda perfeição e valor. Nas palavras de Freud, “o que ele projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual ele era o seu próprio ideal” (Freud, 1914/1976, p. 111).

O eu ideal funda-se a partir de uma imagem de completude, em que o ego real coincide com seu próprio ideal e goza de uma satisfação narcísica, ou seja, ele mesmo é seu objeto sexual. Há aqui uma autossuficiência, um autocontentamento do qual o outro está excluído, embora tenha a função prévia de depositar todas as expectativas de que este novo sujeito, objeto de seu investimento libidinal, possa ir além do que ele próprio foi e alcançar a

realização de seus antigos sonhos abandonados. Assim, no percurso do desenvolvimento egoico, todo sujeito precisa atravessar a passagem do ego infantil, idealizado, fechado em si mesmo, para o ego adulto, castrado, inserido no registro cultural e, por isso, amparado por ideais que norteiam o eu, pelo ideal do eu, herdeiro do complexo de Édipo e sucessor do eu ideal. O narcisismo do eu ideal é, então, deslocado para o ideal do eu, perseguido pelo sujeito na esperança de reaver a satisfação narcísica perdida, pelo menos em parte.

Podemos perceber, dessa forma, que a constituição de uma unidade comparável ao ego é fruto de um processo de desenvolvimento a partir das pulsões parciais autoeróticas que agem inicialmente de forma descoordenada, sem unidade, evidenciando a fragmentação corporal e psíquica característica dos primeiros tempos de vida, do autoerotismo. “O narcisismo vem unificar o funcionamento autoerótico e lhe dar ‘forma’, embora tido como primário, apareça como que preparado por um processo já complexo.” (Laplanche, 1985, p. 77-78).

Assim, à medida que o investimento afetivo dos pais na relação – física e subjetiva, real e fantasística – com o filho vai podendo ser incorporado pela criança, pela via da identificação primordial, vai se estruturando o que se poderia chamar de ego, ainda que em estado incipiente. Essa relação originária, marcada pela contemplação e pelos cuidados e carícias dispensados à criança, nos indica que o ego deriva, em última análise, de sensações corporais, sobretudo das que se originam na superfície do corpo, na medida em que elas recebem a impressão de conteúdos inconscientes oriundos da sexualidade dos pais. Pode-se dizer, então, que o ego seria uma projeção mental da superfície do corpo (Freud, 1923/1976), a qual se estrutura a partir do desenvolvimento da percepção visual, permitindo apreender o corpo como um objeto, conforme veremos com mais aprofundamento em Lacan. Dessa forma, a manipulação do corpo da criança – de fato, toda relação corporal que se estabelece com ela – representa a constituição e a confirmação da forma total, do limite, do invólucro fechado que constitui o revestimento cutâneo.

A unificação corporal, que torna possível tomar a si próprio como objeto e reconhecer- se enquanto indivíduo, é a constituição de uma primeira representação de si mesmo a partir da relação com o outro. A fase inicial do desenvolvimento do ego, o narcisismo primário, não alcançaria esse desenvolvimento, caso não houvesse, invariavelmente, este período durante o qual todo indivíduo é inerme, desamparado ante a sua prematuração biológica, necessitando de cuidados, pois suas necessidades prementes só podem ser satisfeitas por um agente externo. É devido ao desamparo, que remete o sujeito à dependência ao outro, gerando a necessidade de ser amado pelo outro como meio de sobrevivência e subjetivação, que o

narcisismo se institui enquanto constituinte do ego, mas à custa de um desconhecimento radical de si mesmo por conta da alienação ao outro.

Dessa forma, o eu não é o sujeito. Desde o “Projeto”, o eu é concebido como uma formação particular no interior dos sistemas mnésicos, um objeto interno investido pela energia do aparelho, tendo função inibidora e defensiva, a partir de sua capacidade de efetuar a ligação da energia psíquica (Freud, 1895/1976). O ego, então, não é o lugar do desejo nem mesmo o lugar de origem da pulsão, mas ele pode dar-se como tal (Laplanche, 1985), oferecendo-se como receptáculo dessas moções, como objeto de amor. Assim, o ego deve sempre guardar certa quantidade de energia, para então enviá-la a objetos, tal qual uma ameba e seus pseudópodes. O ego funciona como um reservatório da libido, de onde a energia libidinal parte e para onde está sempre pronta a voltar (Freud, 1923/1976). Ele é, portanto, o ponto de convergência entre a ordem vital e a ordem sexual, na medida em que se encarrega de funções vitais como percepção e comunicação, ao mesmo tempo em que está a serviço do amor.

Nesse sentido, a relação narcisista originária apresenta-se como um apelo à ordem, na proporção em que as identificações primordiais têm efeito estruturante e definitivo, acarretando uma mudança fundamental no ser psíquico, que incide na origem de uma nova instância (Laplanche, 1985). Tais mudanças estruturais, primárias, fundadoras, fazem do narcisismo um momento de fechamento, marcando a constituição de um nó subjetivo que, aos poucos, vai se modelando e se enriquecendo através das novas identificações que se somam às primeiras, num verdadeiro processo de sedimentação. A identificação “egoica”, ainda que rudimentar, uma identificação com o invólucro da pele, deve se dar muito precocemente, pois representa a instauração de um limite que torna compreensíveis mecanismos tão antigos quanto os da introjeção e da projeção, já presentes no ego-prazer originário (Freud, 1911/1976) e do qual tratamos brevemente no primeiro capítulo deste trabalho.

Assim, através do processo de identificação primária, ocorre uma primeira formação narcisista, quando o sujeito introjeta a imagem que a alteridade lhe designa como sendo a sua e passa a reconhecer-se nela. No entanto, o que ele reconhece ali nada mais é do que o reflexo do desejo do outro, do investimento que este dirige à criança. A constituição subjetiva se dá de forma alienada ao desejo dos pais, ao que eles lhe atribuem. A formação do eu ideal a partir da maturação singular que atingem a percepção visual e a função do olhar, é marcada pela fase preliminar da pulsão escopofílica, que tem como objeto o próprio corpo do sujeito (Freud, 1914/1976). A esse respeito, Jacques Lacan nos apresenta sua teoria do estádio do

espelho, de grande valia para a compreensão desta relação especular e libidinal que funda o eu como formação imaginária.