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Do caos do excesso à ordem psíquica: o outro como polo de ligação

Capítulo 3 – Linguagem e alienação ao Outro

3.1 Do caos do excesso à ordem psíquica: o outro como polo de ligação

A figura do excesso está presente em Freud desde o “Projeto” de 1895 como uma energia em ebulição no organismo, desde o início da vida, pressionando constantemente no sentido do escoamento, da descarga, da redução de tensão, com vistas ao restabelecimento da homeostase. No entanto, a excitação proveniente do interior do corpo do bebê, justamente por sua incapacidade de pôr em ação os mecanismos que levam ao restabelecimento do equilíbrio, é sempre excessiva e atesta o estado de desamparo, de desajuda, a que o ser humano está entregue. Esta prematuração biológica leva o infans a precisar do auxílio do outro para prover-lhe um objeto de satisfação que reduza a tensão ocasionada pela necessidade. Assim, a partir da ajuda do outro, o aparelho psíquico tem como finalidade biológica a infindável tarefa de dominar estímulos.

Aqui é importante observar que a satisfação orgânica não garante a calmaria do aparelho psíquico. Embora a pressão das necessidades vitais tenha um ritmo natural e cesse temporariamente ao ser satisfeita, um processo de natureza sexual tem início aí, reativando a pressão no aparelho psíquico que, desta vez, age de forma constante, não concedendo qualquer trégua ao longo de toda a vida do sujeito. Estes estímulos que se originam continuamente dentro do organismo e alcançam a mente, impondo uma exigência de trabalho

ao psíquico, são denominados de pulsão (Freud, 1915/1976). Vindos do interior, os estímulos pulsionais atuam diretamente sobre a mente, como representantes psíquicos das forças orgânicas, como medida da exigência feita à mente de trabalhar em consequência de sua ligação com o corpo. Por ser um conceito limite entre o psíquico e o somático, o ser da pulsão não pode ser estudado em si mesmo, mas apenas através de seus representantes-representação no registro psíquico (Birman, 1993).

Dentre as principais características da pulsão, podemos apontar a fonte interna e a força constante, visto que ela jamais atua como um impacto apenas momentâneo. Como, apesar da ação muscular, esses estímulos persistem, sinalizam a existência de um mundo interno, de necessidades pulsionais, sobre as quais nenhuma ação de fuga pode prevalecer. Com efeito, exercer pressão é a característica de todas as pulsões – é a sua própria essência, de fato. Em momento algum a pulsão deixa de buscar seu alvo ou finalidade, a satisfação sexual, a qual só pode ser obtida eliminando-se o estado de estimulação na fonte da pulsão. Porém, como vimos, há sempre um resto que não pode ser capturado pelo aparelho psíquico, nem descarregado, e que retorna incessantemente.

Com este artigo metapsicológico de 1915, “A Pulsão e os Destinos da Pulsão”, a definição de pulsão como força constante confere maior ênfase à ideia de um excesso originário. A impossibilidade da satisfação pulsional ser completa, já que o objeto de satisfação originário está perdido – e uma vez que a urgência da vida impõe a manutenção de certa quantidade de energia no aparelho psíquico para os fins da autoconservação –, coloca o sujeito em permanente estado de desejo, sempre confrontado com sua falta constitucional, o que faz com que a pressão pulsional seja permanente. A descarga de prazer, com a satisfação sexual, é, nesse sentido, uma descarga insuficiente e insatisfatória. É, portanto, a partir da prematuração biológica que se constitui um psiquismo marcado pela falta. Assim, se a satisfação é sempre parcial e provisória, e se, em contrapartida, as exigências pulsionais são insaciáveis, o desamparo é a condição do próprio sujeito, o efeito da condição pulsional do psiquismo.

Como a pulsão visa primordialmente à descarga – o que é inviável para a constituição da ordem psíquica, que advém justamente do domínio da força pulsional –, é necessário que esta última seja submetida a um trabalho de ligação e de simbolização para que possa inscrever-se no psíquico. Por meio deste trabalho, que possibilita a inscrição psíquica da pulsão, inaugura-se o registro representacional e a ordem da linguagem, na medida em que as representações são ligadas umas às outras por elos associativos, dando origem à rede de representações e à capacidade de simbolização. Neste sentido, a exigência de trabalho –

descrita por Freud neste ensaio como uma pressão exercida sobre o psiquismo – pode ser entendida como uma exigência de ligação e de simbolização, resultado da captura do excesso pulsional pelo aparelho psíquico. O psiquismo opera, assim, como uma insistente e interminável interpretação do movimento pulsional (Birman, 1993). O desamparo, portanto, está para além dos limites e condições de possibilidade do próprio processo de simbolização.

Dessa forma, a alteridade, em sua onipotência, funciona como uma forma de contenção do processo de descarga, um solo a partir do qual poderá constituir-se o sujeito, quando ocorre a ligação desse excesso oriundo do caos pulsional. Pensar, então, o sujeito como efeito da ligação do caos pulsional faculta indicá-lo como algo que não é dado desde o início, sendo efeito da presença da alteridade no circuito pulsional, do laço indissociável entre pulsão e outro. Nesse sentido, “o indeterminismo [do sujeito] seria o correlato do caos pulsional de onde adviria, num segundo momento lógico e histórico, a ordem do psiquismo” (Birman, 1995, p. 47). Ordem essa, frisamos, articulada aos registros do objeto, da representação e da alteridade.

Assim, é preciso que o Outro ofereça possibilidades de satisfação para a pulsão, de forma que esta não precise descarregar imediatamente e, então, se articule num campo de objetos através dos quais a satisfação e a inscrição no campo das representações possa se realizar. No entanto, Birman (1993) nos indica que o salto do corpo para o psíquico é uma démarche complicada, na medida em que a resistência ao Outro se apresenta como um obstáculo para a inscrição pulsional, pois nem todos os impulsos pulsionais conseguirão se transportar para o campo do Outro. Existem pulsões que ficam sem representação por não se inscreverem no psiquismo como representantes-representação, compondo, assim, para além do eixo Consciência-Inconsciente, o caldeirão energético do Id, no âmbito da segunda tópica (Freud, 1923/1976), que é mais abrangente que o sistema Inconsciente.

Este processo de ligação energética consiste no estabelecimento de um circuito pulsional, um circuito de prazer que dá uma configuração ao excesso do processo primário (Davi-Ménard, 2001). O Outro, aqui, ao investir no corpo erógeno do bebê, possibilita sua unificação narcísica a partir da amarração dessa energia livre em núcleos de sentido, formando, assim, uma cadeia simbólica a partir da qual a vida psíquica se desenvolve. Mais adiante, neste capítulo, veremos especificamente no que consiste o conceito de Outro, que, como já apontamos, relaciona-se com o campo da linguagem que antecede e constitui o sujeito humano. Configuram-se, dessa maneira, nas vivências mais primárias, as marcas primordiais que estruturam a subjetividade.

A passagem da força pulsional para o universo da representação exige a presença do Outro como intérprete, condição necessária dessa transposição. É através de seu investimento que a figura materna permite a sexualização do corpo infantil e a colocação em movimento do sujeito interpretante pelas inscrições pulsionais. (Birman, 1993, p. 20).

Nesse sentido, diante do desamparo originário (em face do excesso pulsional que acomete o infans de forma caótica e constante), a constituição do aparelho psíquico se impõe para dar conta da falência do aparelho reflexo. Essa precariedade do aparato orgânico estabelece as primeiras situações de perigo, na medida em que o sujeito se encontra desprotegido frente a seu próprio excesso. Tal estado, conforme aponta Freud desde o “Projeto” de 1895, instaura a necessidade de ser amado pelo outro como forma de proteção contra as situações de perigo, contra o abandono a sua própria sorte. Ao corresponder ao desejo dos pais para ser digno de seu amor, a impotência original do ser humano transforma- se na “fonte primordial de todos os motivos morais” (Freud, 1895 apud Pereira, 1999), pois a criança precisa do Outro como suporte para a inscrição pulsional.

Desde o Projeto para uma psicologia científica, Freud assinalava a absoluta necessidade da figura materna como intérprete das demandas do infante, sem o que a pulsionalidade infantil não se inscreveria como representante-representação no universo da representação. Os Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade insistem no lugar da mãe como Outro, condição sine qua non para a constituição do corpo erógeno. (Birman, 1993, p. 20).

Assim, é pelo corpo e a partir do corpo que um sujeito psíquico se constitui, na medida em que os registros da corporalidade são marcados fundamentalmente pelo investimento do Outro e pelos símbolos ordenados pela linguagem (Birman, 1989). Na relação com o Outro, para além do fornecimento do objeto pulsional que promove a ligação pulsional, toda uma geografia corporal se transforma num espaço de trocas, de prazeres e impossibilidades. Na medida em que certos lugares do corpo (como boca, ânus e genitais) são privilegiados pela criança e seu cuidador, passam a funcionar como o suporte onde as pulsões vão se fixar em representantes no universo da representação (Birman, 1993).

O Outro, portador da palavra e transmissor da ordem sexual, marca o corpo do infans, sobre um fundo de desamparo, com os enigmas da sexualidade e do inconsciente, já que a criança não possui, no início, os caminhos pulsionais para sobreviver. Há, desse modo, uma total vulnerabilidade diante do Outro, de quem se é inteiramente dependente para a obtenção dos objetos de satisfação necessários à dominação da força pulsional. Objetos esses que a alteridade, enquanto potência, pode ou não prover. Quanto maior o grau de desamparo, maior

a influência do Outro. Nesse sentido, toda relação que se estabelece com a criança produz efeitos na sua subjetivação. Ao longo da vida, os impactos e acasos dos acontecimentos históricos, marcados na sua experiência pulsional, indicam porque a satisfação se dá num certo campo de objetos e não em outro. A alteridade primeira, o modo de relação primária que se estabeleceu a partir do desejo do Outro, está para sempre presente e atualizada nos laços, nas relações com os “pequenos outros” que estabelecemos ao longo da vida, refletindo o funcionamento pulsional do sujeito e as marcas de suas identificações. “Então, seria preciso superar a identidade que o indivíduo se atribui através de seu ego e em sua relação com outros egos, para que se pudesse apreender a dinâmica pulsional e seus destinos identificatórios.” (Birman, 1993, p. 18). Tais marcas identificantes, que constituem o narcisismo, caracterizam o percurso pulsional em sua relação com os objetos de satisfação e em sua relação com o Outro.

Assim, ao fornecer os objetos que satisfazem necessidades orgânicas do bebê, o Outro convoca a pulsão, dando-lhe um destino e proporcionando a descarga através de uma experiência erógena e significante, que promove a inscrição psíquica da pulsão e funda o sujeito. Na medida em que essas representações da pulsão são ligadas e organizadas em circuitos, constitui-se uma primeira formação egoica, marcada pela incorporação do desejo do Outro, quando o sujeito é antecipado. O psiquismo e o sujeito do inconsciente seriam, portanto, destinos das pulsões (Birman, 1995), pois a singularidade do sujeito evidencia-se no destino dado ao excesso pulsional através dos laços com os primeiros objetos de satisfação.